2017-10-18 17:35:00

Tráfico Negreiro - A maior tragédia humana pela sua duração e amplitude


A UNESCO anunciou no dia 16 de Outubro 2017, oficialmente, o nome dos 9 candidatos em lista para a sucessão da actual Directora Geral, Irina Bukova. Natural da Bulgária, Irina Bukova está à frente desta organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura desde há seis anos.  Ao longo do seu mandato apoiou e fez progredir o Projecto “A Rota do Escravo” que definiu um “projecto farol da UNESCO”. Resta agora saber se a nova direcção geral da Organização da ONU para a Ciência e a Cultura continuará a apoiar este projecto, e isto num momento em que os Estados Unidos e Israel anunciaram a sua retirada da UNESCO. Mas em que consiste o Projecto a “Rota do Escravo”? É isto que vamos ver hoje, e que como compreendereis, está muito ligado à Década dos Afrodescendentes.

Há pouco mais de cinco séculos atrás, iniciava um dos mais hediondos crimes da Humanidade. O Tráfico Transatlântico de africanos reduzidos à escravatura. Esse comércio de seres humanos que alimentou e impulsionou a economia da Europa ao longo de quatro séculos, é praticamente desconhecido, pois que os seus autores acharam por bem não lhe dar o lugar que merece nos livros de História e de ensino, escondendo-o, pelo contrário, por detrás de ideologias que apresentavam  o negro como um ser inferior e sem cultura e que precisava, portanto, de ser civilizado e evangelizado. A humanidade toda foi, assim, considerando, ao longo dos tempo, o Tráfico Negreiro como um facto marginal da História do mundo, até que, em Maio de 2001, a deputada da Guiana francesa, Christiane Toubira-Dellanon, e o seu grupo, conseguiram fazer com que o Parlamento da França, país que teve um papel de relevo no Tráfico Negreiro, declarasse esse Tráfico e a própria escravatura perpetrada a partir do século XV contra populações africanas, um Crime contra a Humanidade.

Comentando na altura, aos nossos microfones, a adopção dessa lei pela França e na esperança que a ONU fizesse o mesmo a nível universal, o então Director do Sector Projectos Interculturais na UNESCO, o senegalês, Doudou Diènne, dizia que a Lei Toubira-Delannon é fruto da uma acção colectiva na base da qual estão diversos factores. Um deles é sem dúvida a coragem excepcional da deputada Toubira-Delannon. Outro factor importante foi a publicação nessa altura de um número especial da revista “Le Courrier de l’UNESCO” dedicado completamente ao tema “Escravatura, crime sem punição”. Um terceiro factor indicado por Doudou Diène foi o projecto “A Rota do Escravo”.

Em 2014, por ocasião dos 20 anos da adopção desse projecto a UNESCO fez um balanço muito positivo do seu andamento.

Mas para compreender melhor em que consiste, remontemos um pouco às suas origens, ouvindo uma entrevista que em 2001 fizemos com Doudou Diène:

“O projecto “A Rota do Escravo" foi lançado pela UNESCO em 1994 a pedido dos países africanos, do Haiti e de outros países das Caraíbas e isso com dois grandes objectivos:

Em primeiro lugar, estudar, da maneira mais completa e cientifica possível, as causas profundas e as modalidades do Tráfico Negreiro, porquê é que isso aconteceu e como é que se passou.

O segundo objectivo é trazer ao de cima as consequências do Tráfico de escravos africanos, quer dizer, as intercepções que esse fenómeno produziu entre as populações, as culturas, as civilizações da África, das Américas, das Antilhas e do Oceano Índico.

O Projecto centra-se num primeiro tempo na Escravatura e no Tráfico Transatlântico e do Oceano Indico, mas o Tráfico Trans-sahariano faz parte também do programa.

A razão pela qual a UNESCO lançou este projecto é também porque o Tráfico Negreiro Transatlântico é considerado por um dos maiores historiados franceses, Jean Duveau como “a maior tragédia humana pela sua duração e amplitude”. Ora, esta imensa tragédia que custou à África mais de uma centena de milhões de mulheres, crianças e homens, está literalmente ausente da memória da Humanidade, dos livros de História e mesmo dos livros da História da África. Trata-se, portanto, de um desafio da memória fundamental que a UNESCO quer enfrentar. Consideramos também que o Tráfico Negreiro foi o maior movimento de deslocação de populações da História humana porque não existe na História casos em que se tenha deslocado de maneira sistemática de um continente para outro durante um tão longo período (quatro séculos) um tão grande número de pessoas. Este movimento de populações deu origem a um encontro entre populações africanas e as que elas encontraram nas Américas, Antilhas e nos países do Oceano Índico.

Deste encontro – e este é o segundo objectivo importante do Projecto “A Rota do Escravo” – nasceram interacções de uma profundidade excepcional que, a nosso ver, fazem da região das Américas e do Oceano Índico a região onde se estão a verificar actualmente os mais complexos processos de multiculturalidade. Temos, portanto, de dar a conhecer ao mundo, este processo. São estes os dois grandes objectivo”.

- É, portanto, um Projecto a longo prazo. Até quando é que vai?

“É um Projecto a longo prazo, absolutamente. Vai continuar até quando os Estados membros considerarem que os objectivos prefixados foram atingidos. E assiná-lo que o Projecto está estruturado à volta de quatro grandes programas. E são esses os quatro grandes resultados que queremos atingir: 

Primeiro, o programa central é o programa científico. Estamos a criar neste âmbito um evento centrado no conjunto dos três continentes, mas também no mundo inteiro para estudar de forma científica, objectiva, as grandes questões da Escravatura e as suas consequências.

Depois, ao lado dos programas científicos, estamos a desenvolver um programa de educação e ensino do Tráfico Negreiro, porque este acontecimento foi varrido da memória colectiva da Humanidade, e foi antes de mais excluído dos livros de História e de ensino. Por isso, o terreno do Ensino e da Educação é absolutamente fundamental, tanto mais fundamental na medida em que não se trata apenas de ensinar os factos fundamentais do Tráfico Negreiro e da Escravatura, mas de fazer com que este ensino seja também uma reflexão ética sobre os valores que levaram os povos da época a perpetrar esta tragédia, pois ao lado do programa cientifico há o programa de ensino.

O terceiro grande programa é centrado sobre questões ligadas à promoção da Memória do Tráfico Negreiro, isto é: queremos ajudar todos os países da África, Américas, Antilhas, Europa, do Oceano Índico envolvidos no Tráfico de escravos a promover e a restaurar todos os lugares de memória ligados a esse Tráfico, quer dizer, as fortalezes, os castelos, cidades, bairros, mercados de escravos, cemitérios camuflados, escondidos… fazer identificar, promover a restauração desses lugares, promover aquilo que chamamos de turismo de memória. Estamos convencidos de que esse tipo de turismo é um desafio considerável, porque milhares e milhares de pessoas nas Américas, Antilhas, Europa e em África desejam conhecer esses lugares. E no âmbito do desafio dos lugares de memória estamos a ajudar todos os países que o desejarem a criar Museus da Escravatura. É necessário criar esses lugares de memória nos países que o desejarem para que as populações e os visitantes possam ter uma ideia, um testemunho claro do Tráfico Negreiro. Isto fazemo-lo à maneira daquilo que foi feito à margem da Segunda Guerra Mundial quando a comunidade judaica fez questão de que os Campos de Concentração, testemunhos da tragédia do Holocausto fossem mantidos e que as pessoas os possam visitar.

Finalmente, a quarta vertente do programa diz respeito à promoção de todas as culturas que nasceram da interacção do Tráfico Negreiro e do Tráfico do Oceano Índico, quer dizer que do Tráfico Negreiro desabrocharam expressões artísticas, criações culturais, fenómenos de culinária, de música de expressão teatral de uma tão grande riqueza que é preciso pôr em dia de forma a permitir às pessoas compreender de onde vêm essas expressões culturais. Posso dar o exemplo do Rap, do Jazz, mas há também muitas outras formas de expressão. Este último ponto do programa centra-se, portanto, na promoção das culturas vivas que resultaram do Tráfico Negreiro e da Escravatura.

São estes, portanto, os grandes programas do Projecto “A Rota do Escravo”. Na medida em que esses programas forem realizados efectivamente, a UNESCO e os Estados membros decidirão que o Projecto já atingiu os seus objectivos.”

- Dr. Doudou Diène, em vários dos seus escritos sobre “A Rota do Escravo”, fala de “Arqueologia do Racismo”. O que quer dizer exactamente com isto?

“O que quero dizer é que no quadro do programa cientifico central de que falei há bocado, sobretudo o estudo das causas profundas e das modalidades do Tráfico Negreiro, não vamos só estudar a estrutura do Comércio Triangular que está na origem do Tráfico de Escravos, mas já começamos também a estudar a ideologia do Tráfico, ou seja, a ideologia que foi inventada a partir do século XV para justificar a venda de africanos como objectos. Para justificar esse comercio, inventou-se o desprezo cultura do Homem negro. A construção intelectual e histórico do racismo anti-negro vem precisamente dessa época. Era preciso justificar a venda de africanos como mercadoria - como os definiu o Código Negro. Foi, portanto, aí que nasceu a construção intelectual, filosófica “científica” (entre aspas) do racismo. Esta dimensão faz, portanto, é parte do Projecto. Organizamos em Lisboa juntamente com as Universidades de Lisboa e de Toulouse um encontro cientifico em que diversos intelectuais se debruçaram sobre os fundamentos ideológicos e jurídicos da escravatura. E vamos lançar uma rede de trabalho sobre esta dimensão. É importante que as pessoas compreendam que o racismo anti-negro não nasceu por acaso; que constituiu a ideologia de justificação do Tráfico anti-negro e que constituiu assim a ideologia de justificação de uma operação que no início era uma operação comercial. Nesse âmbito gostaria de por em foco um aspecto importante de que muitas pessoas não se dão conta e que não dão importância, isto é que o Tráfico do Oceano Índico de escravos constitui (quando se olha para o mapa é muito claro!) a primeira grande forma de mundialização da História, na medida em que o seu objectivo era antes de mais, económico e financeiro e também na medida em que ligou diversos continentes num sistema organizado e estruturado, organizado pelos Estados europeus da época, baseado numa ideologia de justificação do racismo e numa organização jurídica, o Código Negro. Por isso, constituiu a primeira forma de mundialização da História.”

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Doudou Diène, antigo responsável da Divisão Intercultural da UNESCO que nos falava da origem e objectivos do grande Projecto “A Rota do Escravo” numa entrevista concedida à Rádio Vaticano no ano 2001.  

(DA)








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