2016-11-24 08:34:00

Misericórdia: chave de leitura do pontificado de Francisco (III)


Neste “Sal da Terra, Luz do Mundo”, o padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso ex-colega de redação, propõe a terceira e última parte da sua reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco.

O padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso colega durante muitos anos em Roma na redação de língua portuguesa da Rádio Vaticano, aposentou-se durante o ano de 2014 e rumou à sua diocese do Porto em Portugal.

Foi a partir daí que partilhou connosco uma reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco. Tema sobre o qual proferiu uma conferência para os leigos da diocese no Centro de Cultura Católica na cidade do Porto. Eis a terceira e última parte da sua reflexão:

“Estou-me a lembrar de duas intervenções: uma foi em novembro do ano passado quando interveio em Florença no V Congresso Eclesial Nacional Italiano que tinha como tema “Em Jesus Cristo, um novo humanismo”. Aí o Papa citou-se a si próprio e o que tinha dito na Exortação Apostólica “A alegria do Evangelho” de 2013 sobre a inclusão social dos pobres. Recordou, uma vez mais, que eles têm um lugar privilegiado no Povo de Deus e disse que ‘nós somos chamados a descobrir Cristo neles. Não só emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, escutá-los, compreendê-los e acolher’ – disse – ‘a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles’. Outra passagem é precisamente, na Exortação Apostólica de 2013 quando fala, no capítulo IV, da dimensão social da evangelização: aí fala da inclusão social dos pobres e recorda que ‘a falta de solidariedade em relação às necessidades dos pobres influi diretamente na nossa relação com Deus’. ‘Para a Igreja’ – escreve o Papa – ‘a opção pelos pobres é uma categoria teológica antes de ser uma categoria cultural, sociológica, política ou filosófica. E não se há de tratar apenas de ações ou de programas, mas é, acima de tudo, uma atenção muito pessoal, cheia de amor ao outro, dando valor ao pobre com o seu modo de ser, a sua cultura, o seu modo de viver a fé’. Aqui se inclui toda a insistência do Papa no valor e no respeito que merece a religiosidade popular que ele conhece bem da América Latina, em que este valorizar concretamente o mais débil é o que faz a diferença. Que diferencia a autêntica opção pelos pobres duma qualquer forma de ideologia ou de utilização dos pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos.”

“Encontrei também um texto que é mesmo dos primeiros tempos e que foi o primeiro encontro com novos embaixadores, que é sempre uma ocasião de lembrar alguns aspetos importantes, e ali era com seis embaixadores de países todos eles pequenos, mas de diversos continentes. Entre eles recordo o Botswana e o Luxemburgo. E o Papa, nesse encontro em maio de 2013, pouco depois da sua eleição, aproveitou para abordar a questão da pobreza falando a partir da relação distorcida com o dinheiro com uma referência direta à crise financeira. Disse o Papa nessa altura: ‘nós criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova versão na idolatria do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto nem finalidade humana’. E observou: ‘O ser humano passou a ser visto como um bem de consumo que se pode usar e deitar fora’. E terá sido aí que ele utilizou pela primeira vez a expressão: uma cultura do descarte, que precisa ser denunciada.  Lamentou que a solidariedade se tenha gasto como palavra e seja considerada contraproducente e contrária à racionalidade financeira. E foi ao ponto de dizer: ‘Por detrás desta atitude esconde-se a recusa da ética e a recusa de Deus porque a partir de certa altura Deus escapa às categorias do mercado. Deus aparece não regulável’. Mais ainda: ‘Deus aparece perigoso, na medida em que chama o homem à sua plena realização e à independência de todo o tipo de escravidão’. Não teve receio de citar S. João Crisóstomo quando dizia: ‘não partilhar com os pobres os próprios bens é roubá-los, é tirar-lhes a vida. Os bens que nós possuímos não são nossos mas são deles. Seria desejável uma reforma financeira que seja mesmo ética e que produza e conduza a uma reforma económica que seja salutar para todos’. “

“Estou a pensar quando foi a Assis, o Papa nunca tinha ido a Assis, e quando lá foi não fez uma visita de turismo religioso. Passou pela Basílica de S. Francisco, deteve-se em oração junto do túmulo do santo, mas o primeiro número do programa foi ir visitar longamente, quase uma hora, uma casa de acolhimento de deficientes profundos que os frades menores lá têm. Isto também foi um sinal. A prioridade está nisso e é nisso que se vê Francisco de Assis como modelo. Aliás, há uma citação muito importante sobre Francisco de Assis na Encíclica ‘Laudato Si’ em que o Papa diz, mais ou menos isto: ‘Francisco é o exemplo por excelência do cuidado por aquilo que é frágil, ele manifestou uma atenção especialíssima pelos mais pobres e abandonados. Ele vivia como peregrino com simplicidade, nele se vê como são inseparáveis a preocupação com a natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior’. Cá está esta visão bastante completa, ampla, em todas as direções, de uma atitude evangélica que é a atitude de Jesus, que ele (Papa Francisco) assume como sendo a única atitude a apontar à Igreja e a tentar viver dia após dia.”

“Logo no dia 19 de março de 2013, no Início Solene do Pontificado, na homilia, ele tinha lá à frente mais de 150 Chefes de Estado e de Governo de todos os lados, incluindo a Merkel, por exemplo, e a certa altura na sua homilia o Papa disse: ‘Eu queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade no âmbito económico, político ou social e também a todos os homens e mulheres de boa vontade, que sejamos guardiães da Criação, do desígnio de Deus inscrito na Natureza, guardiães do outro, do ambiente, porque tudo está confiado à nossa guarda. É uma responsabilidade que diz respeito a todos’.”

O padre José Maria Pacheco Gonçalves conclui, assim, as suas reflexões sobre a importância da misericórdia no pontificado de Francisco.

“Sal da Terra, Luz do Mundo”, é aqui na Rádio Vaticano em língua portuguesa.

(RS)








All the contents on this site are copyrighted ©.