2016-08-13 14:31:00

África do Sul comemora os 60 anos da Marcha de Mulheres em Pretória


Homens e mulheres lutaram juntos contra o Apartheid na África do Sul, mas houve momentos em que as mulheres sentiram a necessidade de tomar a dianteira e mostrar que não toleravam certas coisas. Foi o que aconteceu a 9 de Agosto de 1956, quando umas 20 mil mulheres manifestaram em Pretória contra o alargamento do cartão de acesso também ao mundo feminino. Havia muitos anos que os cartões de acesso como documento necessário para os negros poderem circular nas cidades era requerido aos homens, mas às mulheres não. Nesse ano o governo separatista da África do Sul decidiu que também as mulheres tinham de o possuir para poderem circular. As mulheres reagiram: marcharam em direcção ao chamado Union Buildings (o Palácio do Governo) em Pretória para falar com o Primeiro Ministro, Strijdom. Mas este não deu a cara. Perante isto as 20 mil mulheres detiveram-se silenciosamente em frente da sede do governo por 30 minutos com o braço direito levantado e o punho fechado e deixaram ao Ministro uma petição de 100 mil assinaturas. As 20 mil mulheres concluíram a sua marcha cantando canções de libertação, inclusive uma nova, composta expressamente para essa ocasião e que dizia: 

"Strijdom, agora mexeste com as mulheres, bateste numa rocha, mexeste com um grande penedo e agora vais ser esmagado e vais morrer"

A luta das mulheres contra o cartão de acesso não se limitou à marcha de agosto de 1956. Tendo iniciado já antes, continuou ainda por cerca de uma década. O governo separatista não desistiu, contudo, do seu intento. Muitas mulheres líderes foram presas, torturadas... e embora a imposição do cartão de acesso significasse para elas prisão, famílias fragmentadas, sofrimento, miséria, fome, desemprego, um insulto e uma nova forma de escravizar os africanos, por volta de 1960 cerca de 75% das mulheres utilizavam o cartão para poderem circular e sobreviver.... Mas, essa marcha constitui um marco indelével na luta contra o Apartheid. Daí a importância de a comemorar, dizia-nos em 2004,  Sheila Sisulu, sul-africana:

"É importante comemorar esta data porque, naquele dia mulheres sul-africanas de todas as camadas sociais, raças... religiões, de todas as partes do país  uniram-se na luta contra a repressão que estava a ser estendida de maneira específica às mulheres enquanto mulheres pelo governo da África do Sul de então. É importante também porque fez compreender ao governo que não podia vencer a batalha da opressão; que as mulheres iam juntar a sua  voz, a sua energia… às dos homens”.

As mulheres tinham lutado até então ao lado dos homens contra o Apartheid, mas essa foi a primeira vez que decidiram organizar-se em massa sozinhas e sair à rua para defenderem a dignidade dos africanos ... 

Havia só mulheres; havia alguns homens que assistiam. Eram mulheres que faziam parte do African Nacional Congress, mas não só. No seio do ANC os homens mostravam-se relutantes quanto a essa iniciativa das mulheres, duvidavam que as mulheres pudessem realmente organizar por si próprias uma marcha. Havia, contudo, algumas opiniões diferentes como Nelson Mandela, ou Walter Sisulo que apoiavam as mulheres nisso e diziam: dêem-lhes essa oportunidade, se elas pensam que podem organizar uma marcha deixem-nas fazer isso. Vocês só podem saber se elas são capazes de o fazer ou não se as deixarem fazer ... e foi realmente uma marcha bem sucedida”.

 A marcha foi bem sucedida e ficou na história. Os resultados não foram imediatos, pois as mulheres não conseguiram obter a abolição do cartão, como pretendiam. Mas a luta continuou. A última manifestação contra o cartão de acesso foi em março de 1960. A 8 de abril desse ano o Congresso Nacional Africano e o Congresso Panafricano foram postos fora de lei. Já enfraquecido pela detenção de muitos líderes, os membros desses dois partidos que ainda permaneciam em liberdade tiveram de optar pela luta clandestina, não podendo organizar manifestações de massa. A 26 de Outubro de 1962 o governo anunciou que a partir de Fevereiro de 1963 todas as mulheres negras de 16 anos para cima tinham de ter o cartão de acesso, ou o pass-law como era designado, para poderem circular. Nessa altura a Liga das Mulheres do ANC já tinha sido posta de lado e a Federação das Mulheres Sul-africanas tinha cessado de existir. Muitas das suas líderes encontravam-se na prisão... Mas a campanha das mulheres tinha durado mais de uma década. Protestos e demonstrações tinham envolvido cidades, vilas e aldeias em todo o país. Dezenas de milhares de mulheres tinham participado nessa forma de resistência, levando o governo a adiar de 11 anos a extensão do pass-law às mulheres. As mulheres resistiram de forma particular ao cartão de  acesso que tocava o centro da sua existência, a sua posição na sociedade, a possibilidade de criar os seus filhos, de prover o necessário para toda a vida familiar. As mulheres permaneciam, portanto agarradas àquele pouco de liberdade que lhes restava (a liberdade de movimento) com uma tenacidade até então desconhecida.

Contrariamente aos homens que já tinham perdido essa liberdade décadas antes, as mulheres continuavam a esperar poder evitar o inevitável. Embora, tenham sido, como dizíamos, derrotadas no seu objectivo imediato, obtiveram uma vitória ainda maior. Ganharam um lugar digno, igual à dos homens,  na luta de libertação da África do Sul.  Mostraram que os homens não podiam esperar libertar-se a si próprios se as mulheres fossem relegadas a um estatuto de subordinação. Sem as mulheres a hora da libertação permanecia uma grande incógnita.  Tudo isso, tem um grande significado para as sul-africanas de hoje e não só - frisa ainda Sheila Sisulu...

Tem um grande significado para as mulheres de hoje na África do Sul. Por um lado porque as mulheres da África do Sul que agora gozam dos direitos garantidos pela Constituição precisam de saber que as mulheres combateram por esses direitos, e por isso, as mulheres mais jovens de hoje têm a responsabilidade de defender esses direitos. Isto por um lado, por outro lado porque os direitos consignados na Constituição devem ser plenamente respeitados, postos em prática. Por isso as mulheres de hoje devem continuar a ser participantes activas na luta pelo pleno respeito dos direitos na África do Sul. Portanto, proteger os que já foram conquistados e reconhecidos e fazer com que sejam plenamente realizados”.

Lillian Ngoye, Helen Joseph, Rahima Moosa, Sophia Williams eram as líderes da marcha de 1956. A corajosa Sofia tinha na altura apenas 18 anos. Numa das comemorações dessa data ela disse: “poder circular hoje no nosso país sem medo de ser molestada mostra os grandes passos que as mulheres já deram na África do Sul. Na marcha de 1956 não tínhamos medo porque atrás de nós estavam 20 mil mulheres”.

O mês de agosto é o mês das mulheres na África do Sul e recorda não só essa memorável marcha, mas também as pioneiras do movimento feminino no país que remonta a 1913, quando mulheres como Charlotte Maxeke abriram caminho para a criação da Liga das Mulheres do African National Congress e encorajou as mulheres a empenharem-se na luta pela liberdade.

Na lista das pioneiras contam-se ainda nomes como Cissy, Jaynab e Amina Gool que faziam parte das líderes da Liga Nacional de Libertação e da Frente Unida Não-Europeia (1930), ou outras como Amina Pahad, uma das primeiras voluntárias da Campanha passiva de Resistência (1946), Florence Matomela, uma das defensoras dos direitos dos trabalhadores e das mulheres, etc. etc.

Desde o acesso da África do Sul à Democracia, em 1994, a África do Sul já deu importantes passos no empoderamento da mulher em várias esferas da sociedade, lê-se na página web da Embaixada da África do Sul em Roma que dá alguns exemplos:

antes de 1994, mulheres no Parlamento eram apenas 2,7%; hoje já ultrapassam os 30%. No Governo já eram mais de 47% em 2009. Em 2014 foi instituído o Ministério das Mulheres como forma de dar maior atenção a questões ligadas à mulher na sociedade. Há várias mulheres em posições de liderança, como por exemplo, Nkosazana Dlamini Zuma, primeira mulher à frente da Comissão da União Africana; Phumzile Mlambo-Ngcuka, Sub-Secretária Geral e Directora Executiva do UN-Women, órgão da ONU para Mulher; Geraldine Frazer-Moleketi, Enviada Especial para questões de género no Banco Africano do Desenvolvimento; a juíza Navy Pillay, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, e assim por diante.

Ao elencar diversos casos de mulheres em lugares de chefia, a Ministra sul-africana da Mulher, Susan Shabangu, faz ainda notar que antes de 1994 a África do Sul só tinha uma mulher juíza. Hoje constituem 28% do corpo judiciário. E de exemplo em exemplo, ela acaba concluindo que não obstante os progressos no acesso da mulher ao mundo da política, educação e à esfera publica em geral, a marginalização as mulheres pobres compromete seriamente este progresso.

Muito resta, portanto, por fazer. E a mulher terá que continuar a demonstrar determinação e coragem na caminhada para a conquista dos seus direitos e para a construção de uma África do Sul cada vez mais humana, democrática e progredida, especialmente nesta fase em que o elã que marcou os anos de luta pelas sãs conquistas parece estar a esmorecer.

Oiça e aprecie também as músicas do tempo da luta e "God Bless the Women" do saudoso cantor sul-africano, Luky Dube, na rubrica "África.Vozes Femininas". 

(DA) 

 








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