Em entrevista ao La Croix, Papa defende laicidade do Estado e expressão da própria fé


Cidade do Vaticano (RV) – Migrações, coexistência entre cristãos e muçulmanos, laicidade do Estado, pedofilia. Estes foram alguns dos temas da entrevista do Papa Francisco concedida aos jornalistas Guillaume Goubert e Sébastien Maillard, do jornal francês La Croix, recebidos na Casa Santa Marta na segunda-feira, 9 de maio.

O Papa confirmou que recebeu um convite do Presidente Hollande e do episcopado francês para visitar o país, mas ainda não existem datas. A cidade de Marselha poderá ser uma etapa da viagem, por representar “uma porta aberta ao sul do mundo” e nunca ter sido visitada por um Pontífice.

O tom descontraído do encontro foi marcado pela pergunta sobre o que a França representava para o Papa. “A filha mais velha da Igreja, mas não a mais fiel!”, respondeu Francisco, em meio a risos. “É uma periferia a ser evangelizada. Mas é preciso ser justo com a França – observou. A Igreja possui uma capacidade criativa.

A França é também uma terra de grandes santos, grandes pensadores: Jean Guitton, Maurice Blondel, Emmanuel Levinas – que não era católico – Jacques Maritain”. E Santa Teresa de Lisieux é a sua santa francesa preferida, confidenciou.

Leigos e Evangelização

Ao falar sobre a evangelização, Francisco sublinhou que “necessariamente não há necessidade de sacerdotes” para realizá-la, citando o exemplo histórico da Coreia, que depois da chegada dos primeiros missionários vindos da China, viu os leigos como protagonistas da evangelização por dez séculos.

“O Batismo – afirma o Papa – dá a força para evangelizar e o Espírito Santo nele recebido impele a sair para difundir a mensagem cristã com coragem”. “O Espírito Santo é o protagonista daquilo que a Igreja faz, seu motor. E muitos cristãos o ignoram”, afirmou.

O Papa mais uma vez voltou a alertar sobre o “clericalismo”, por ele definido como “um perigo”. “Os padres querem clericalizar os leigos e os leigos querem ser clericalizados, por facilidade”. A questão do clericalismo “é particularmente importante na América Latina", observou.

"Se a piedade popular é forte, é precisamente porque é somente uma iniciativa dos leigos que não foram clericalizados. E isto não é entendido pelo clero”.

Tolerância zero para pedofilia

O Papa respondeu ainda sobre os problemas atuais da Igreja na França, sacudida nas últimas semanas por casos de pedofilia. “Neste âmbito – observa – não pode haver prescrição”. “Por causa destes abusos, um sacerdote que é chamado a guiar uma criança a Deus, a destrói”. “Semeia o mal, o ressentimento e a dor. Como disse Bento XVI, a tolerância deve ser zero”.

A este respeito, com base nos elementos de que tem conhecimento, defendeu o Arcebispo de Lyon, Cardeal Philippe Babarin, que está sob investigação.

“Ele tomou as medidas necessárias”, avaliou Francisco, que o definiu como “um homem corajoso, criativo, um missionário”. O Papa disse esperar pela conclusão do processo judiciário, sublinhando que não é o caso de falar de demissão, o que agora seria “um contrassenso”, “uma imprudência”.

Lefebvrianos

Outro tema ligado à Igreja na França tratado na entrevista é a relação com a Fraternidade São Pio X. “Avançamos lentamente e com prudência”, afirmou o Papa, recordando que o Concílio Vaticano II tem o seu valor e é necessário dialogar com os tradicionalistas.

Francisco considera os lefebvrianos como “católicos a caminho da plena comunhão”, afirmando que o Superior, Dom Bernard Fellay, “é um homem com o qual se pode dialogar”.

Migrantes, guerras e subdesenvolvimento

Ao ser interpelado se o “Velho Continente” tem a capacidade para acolher tantos imigrantes, Francisco respondeu que as portas “não podem ser abertas de formas irracional”, mas indicou que é necessário interrogar-se sobre questões fundamentais, como “o por quê” das migrações, a origem da fuga de milhões de pessoas.

“Os problemas iniciais são as guerras no Oriente Médio e na África e o subdesenvolvimento do continente africano, que provoca a fome. Se existem guerras, é porque existem fabricantes de armas – que podem ser justificados por propósitos defensivos – e sobretudo traficantes de armas. Se existe assim tanto desemprego, é por falta de investimentos capazes de levar o trabalho de que a África tanto precisa”.

O Papa convida os europeus a favorecerem a integração, “pois a pior forma de acolhida é a guetização”. “Esta integração é quanto mais necessária hoje, devido à busca egoística do bem-estar. A Europa está vivendo o grave problema de uma taxa de natalidade em declínio”.

Livre mercado deve ser regulado

Francisco voltou a citar um “sistema econômico em nível mundial que caiu na idolatria do dinheiro”. “Mais de 80% das riquezas da humanidade estão nas mãos de 16% da população", denunciou. Um mercado completamente livre não funciona.

Os mercados em si, são um bem, mas requerem uma terceira parte ou um Estado que os monitore e os equilibre. Em outras palavras, é necessária uma economia social de mercado”.

Coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos

A coexistência entre cristãos e muçulmanos é possível – reiterou o Papa – não acredito que exista medo do Islã, enquanto tal”, mas do Estado Islâmico e da sua “guerra de conquista”. “É verdade – continuou – que a ideia da conquista pertence ao espírito do Islã, mas se poderia interpretar segundo a mesma ideia de conquista que temos no final do Evangelho de Mateus, quando Jesus envia os seus discípulos a todas as nações”.

Neste contexto, o Papa convidou a interrogar-se sobre o modo em que “um modelo muito ocidental de democracia foi exportado a países como o Iraque, onde um governo forte existia anteriormente. Ou mesmo na Líbia, onde existe uma estrutura tribal”. “Não podemos ir em frente sem levar em consideração estas culturas”, concluiu Francisco.

Laicidade do Estado

Ao tratar da questão da laicidade em relação à liberdade religiosa, o Papa afirmou claramente que “um Estado deve ser leigo”. Os “Estados confessionais – acrescenta – acabam mal. São contra a história”. E explica: “Acredito que uma versão da laicidade, acompanhada por uma sólida lei que garanta a liberdade religiosa, ofereça um quadro de referência para ir em frente; somos todos iguais, como filhos e filhas de Deus ou com a nossa dignidade de pessoas.

Mas cada um deve ter a liberdade de exteriorizar a própria fé”. “Se uma mulher muçulmana quer usar o véu, deve poder fazê-lo, assim como um católico que queira usar um crucifixo. As pessoas devem ser livres para professar a sua fé no coração da própria cultura e não à margem dela".

A “modesta crítica” que o Papa dirigiu à França diz respeito ao fato que “exagera com a laicidade”, ao considerar as religiões como “subculturas, antes que culturas propriamente ditas, com os seus direitos”. “Temo que esta abordagem – disse o Papa – um compreensível patrimônio do Iluminismo, continue a existir”.

O desejo é que o país dê “um passo em frente em relação a este tema, para aceitar que a abertura à transcendência é um direito para todos”.

Leis e direito à objeção de consciência

Francisco foi interpelado sobre como os católicos devem defender as suas convicções diante de leis como a eutanásia e as uniões de fato. “Diz respeito ao Parlamento discutir, argumentar, dar as razões. É assim que uma sociedade cresce. Todavia, uma vez que a lei foi aprovada, o Estado deve também respeitar as consciências.

O direito à objeção de consciência deve ser reconhecido dentro de cada estrutura jurídica, porque é um direito humano. Também para o funcionário público, que é um ser humano. O Estado deve também levar em consideração as críticas. Esta seria uma verdadeira forma de laicidade”

Na entrevista, o Papa também falou sobre a diferença entre os dois Sínodos sobre a família realizados no Vaticano e as raízes cristãs da Europa, raízes estas “plurais” para o Pontífice, em mérito às quais lamenta tons de discussão que define às vezes “triunfalistas” ou “vingativos” e que sabem de “colonialismo”.

(JE)








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