Artigo: O Iraque está morto


Bradford (RV) – Após a queda de Saddam Hussein, em 2003, o Iraque mergulhou numa luta sectária entre os três grandes grupos étnico-religiosos: curdos, sunitas e xiitas. As divisões existiam há muito tempo e nem mesmo a luta contra o Estado Islâmico parece unir o país. A garantia de direitos às minorias poderia ser a última tentativa de salvar a unidade nacional. Sobre este tema, propomos o artigo “O Iraque está morto” de Afshin Shahi*, publicado na Agência Asianews.

“Não é mais questão de “se” ou “quando” será o fim do Iraque. Isto já ocorreu. O país ficou em terapia intensiva por muito tempo, e mesmo que jogadores externos possam ter feito de tudo para salvá-lo, o Iraque não consegue mais salvar-se a si mesmo.

Uma das características fundamentais de cada nação-Estado é um certo sentido de consciência nacional, um sentido de pertença; valores comuns, independentemente da sua abstração; e mais importante de tudo, um compromisso coletivo em perpetuar a própria missão, percebida como organicamente conexa ao Estado. Sem estes ingredientes, nunca existirá uma nação-Estado estável.

Certo, se poderia dizer que talvez o Iraque nunca tenha existido e nunca tenha tido uma consciência nacional comum.  No final das contas, o Iraque foi plasmado em base aos desejos dos patrões coloniais do séculos passado. Até mesmo no período de máxima “estabilidade” sob Saddam Hussein, o Iraque era um Estado sem nação. Existia pouco esforço para construir uma nação iraquiana e os obstáculos eram sempre enormes.

Os curdos, que constituem cerca de 17-20% da população, com muita dificuldade subscreveram uma identidade iraquiana, e a maioria xiita sentiu-se profundamente marginalizada pela elite política que era majoritariamente sunita.

O que acontece no Iraque hoje é diferente das realidades de uma clássica sociedade médio-oriental multiétnica ou pluri-religiosa. Situações e queixas semelhantes existem em muitas partes da região, mas o que torna a situação iraquiana sem esperança é que lá não existe nenhum Estado forte no comando e – ainda mais importante – não existe nenhuma perspectiva de que surja algum em breve.

Gênio fora da lâmpada

Até 2003, o repressivo Estado de Saddam Hussein havia pelo menos encoberto o caos, mas a invasão, as desastrosas políticas pós-bélicas e as interferências oportunistas dos Estados regionais e dos atores a serviço de outros Estados fizeram sair o gênio fora da lâmpada.

As forças desencadeadas estão hoje fora de controle e velhas animosidades entre grupos étnico-sectários foram canalizadas para o confronto armado. Com eficácia, tal ciclo de violência queimou todas as ligações de base entre os diversos grupos, que se supunha fizessem parte de uma nação, e estes problemas parecem permanecer também se o Iraque se purifica do jihadismo internacional.

A ascensão dos Estado Islâmico (EI) reflete como nenhum outro sinal a história de uma nação pobremente construída. A coalização internacional contra o EI foi até agora ineficaz; em todo o caso, derrotar o EI, sem erradicar as raízes seria somente uma operação de cosmética. O EI não é uma ameaça à nação iraquiana, mas sim um sinal de seu fracasso. O atual conflito super-sectário não é a causa, mas o sintoma do fracasso de um modelo de uma nação-Estado.

O país está dividido em três partes, cada qual apoiado sobre três fortes identidade – curdos, sunitas, xiitas – que são anteriores aos confins modernos. Para cada um destes grupos, o próprio interesse vem em primeiro lugar.

A lealdade dos curdos vai antes de tudo, e em primeiro lugar, ao Curdistão – e eles, no presente caos, veem a oportunidade de realizarem o antigo sonho de um Estado curdo. Em muitos aspectos a região curda é já independente, e considerando que passaram mais de um ano combatendo o Estado Islâmico, parece inconcebível imaginá-los retornando ao velho sistema.

O Iraque do sul, no entanto, é também ela uma nação por sua conta. A maioria dos xiitas vive no sul, mantendo um forte sentido de identidade xiita. A elite política xiita domina o que restou do Estado iraquiano e mostra pouco apetite em reconhecer os interesses de outros grupos religiosos e étnicos – que seria o único caminho para salvar o Iraque. No final, neste clima super-sectário, estar atentos às outras minorias poderia ter implicações negativas para um “Estado” que para sua sobrevivência se mostra dependente das milícias xiitas.

Do outro lado, muitas tribos sunitas estão bloqueadas entre a complacência pelo EI e um governo de maioria sunita, que tem uma longa história de discriminação em relação a eles. Na mesma semana em que se realizava uma conferência anti-EI em Paris tentando salvar o Iraque, mais de 50 tribos sunitas fizeram um juramento em favor de Abu Bakr al-Baghdadi, temendo o crescimento das milícias xiitas e de suas ligações com o Irã.

Reconhecer os fatos

Então, qual poderia ser a resposta? Democracia? Federalismo? A política hiper-sectária do Iraque não permitirá nunca o florescimento de um sistema democrático dentro de um sistema federal ou centrista. O sectarismo destrói as raízes da cultura cívica e ameaça o desenvolvimento e o funcionamento de uma sociedade civil, que é a espinha dorsal de todo sistema democrático.

Como se tentou muitas vezes no Iraque, as pessoas votam para dar poder à própria seita. Isto significa que a minoria sunita estará em desvantagem para sempre. De modo inevitável, isto leva a um aumento da política de vitimização e, a seguir, a batalhas sem fim pela distribuição do poder entre aqueles que têm e aqueles que não têm nada.

Mesmo que o resultado deste doloroso processo de desintegração seja ainda incerto, existe uma possibilidade mínima de que se possa ressuscitar uma nação-Estado iraquiana como aquela que conhecemos antes de 2013. É tempo de enfrentar os fatos: o Iraque está morto.

*Diretor do Centro de Estudos do Islã, político e professor de Relações Internacionais e de política médio-oriental na Universidade de Bradford








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