"A vida contemplativa me torna fecunda na missão" - Irmã Lucie Nzenzili Mboma
Já aqui ouvimos,
há dias, a primeira parte da entrevista com a irmã Lucie Nzenzili Mboma que nos falou
da forma como entendeu o convite do Papa Francisco às religiosas a serem “fecundas”
e não “solteironas”. Natural da RDC e membro da Congregação Internacional, Missionárias
Franciscanas de Maria, a irmã Lucie interveio na conferência promovida pelo SCEAM
em Roma sobre a Igreja em África para homenagear os dois Papas canonizados recentemente:
João XXII e João Paulo II. Altura em que ela recordou que – tal como diz o Papa Francisco
– as religiosas devem ser vistas na Igreja como um recurso e não como material de
socorro.
Nesta segunda parte da entrevista, fala com Dulce Araujo, na rubrica
"África.Vozes Femininas" do que mais a marcou nos seus 50 anos de vida religiosa,
comemorados o ano passado, e do papel das esposas dos “Mukambi” (leigos encarregados
de vida paroquial na República Democrática do Congo) ao lado dos maridos nessa tarefa.
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Irmã, Lucie, 50 anos de vida religiosa. Com certeza que terá
passado por muitos momentos, muitas experiências, muitas realidades, mas quer realçar
aqui o que mais a tocou nestes anos todos?
“Bom, o que me marcou foi o
carisma da Congregação, a vida contemplativa me torna fecunda na missão porque, como
dizemos, a contemplação de Cristo me envia, quando estou lá na missão, é o Senhor
que me envia, é a comunidade que me envia e o facto de estar com os meus irmãos e
as minhas irmãs faz-me descobrir a presença de Cristo e esses irmãos e irmãs me enviam
à adoração. Então, esse vai vem é uma força para a minha vida. Amo muito o último
parágrafo do salmo 22 que diz “graça e felicidade me acompanham todos os dias da minha
vida porque o Senhor está lá para me acompanhar” e o facto de eu ter entrado numa
Congregação onde temos o Santíssimo Sacramento todos os dias é uma força para viver
a minha vida missionária. Já estive em várias partes do mundo, mesmo na China, etc.,
mas em qualquer lado sinto-me sempre em casa porque temos sempre a Eucaristia. Isto
faz-me sentir também em conexão com as minhas irmãs de qualquer nacionalidade. Com
50 anos de vida religiosa, é também das minhas irmãs que recebo forças, e o facto
de dizer que devemos aceitar as nossas diversidades – isto não são palavras – porque
quando se aceita a diversidade e na nossa comunidade somos à volta de 23 nacionalidades
e é uma alegria viver juntas porque partilhamos o mesmo espírito, o mesmo carisma,
vamos ao essencial, não nos detemos nas pequenas coisas, as pequenas coisas estão
lá, acontecem todos os dias, eu, tenho o meu carácter, gosto muito de brincar e as
coisas terminam assim (riso) e é uma riqueza, a vida comunitária é um apoio e quando
chego a casa, as irmãs perguntam como foi o dia?, estás cansada?, vai-te repousar…
tudo isso cria um espírito de família. A nossa mãe fundadora insistia muito no espírito
de família”.
Irmã Lucie, é Directora Executiva do SEDOS, Centro de Documentação
sobre a Missionação, e como nos disse uma das vossas principais actividades é organizar
um seminário anual sobre a missionação. E na sua intervenção no colóquio em Roma,
dizia que a África precisa duma Igreja adulta para ter uma missão adulta. Do mais
recente seminário que fizeram em Maio passado, veio alguma resposta a este quesito?
“O missionário ou o missionária de hoje, venha de onde vier, África,
América Latina ou doutro lugar, deve ser antes de mais contemplativo/a. Aliás, o documento
eclesial “Evangeli Gaudium” está cheio disto: o missionário/a deve ser capaz de criar
sempre esse espaço interior para o encontro pessoal com Cristo. E é esse encontro
que faz com que sejamos dispostos a ir em missão – e o missionário deve fazer sair
o Cristo que está dentro dele ou dela para ir ao encontro do outro: e o missionário
de hoje se é contemplativo é capaz de entrar no processo de conversão de mentalidade,
de forma a ser uma pessoa aberta que acolhe o outro na sua alteridade. A conversão
deve ajudar-nos a aceitar, a acolher a diversidade, porque a Igreja será rica se formos
capazes de aceitar a nossa diversidade; vejo isto na minha própria Congregação. Por
vezes até nos emocionamos durante os capítulos gerais, onde as pessoas vêm de diversas
partes do mundo com toda a sua diversidade mas se concentram no essencial e creio
que como diz o Papa – o missionário de hoje deve ser bem preparado para poder entrar
no contexto – o mundo muda continuamente e hoje o missionário deve ser capaz de aceitar
o outro e de colaborar com ele: porque hoje ninguém pode pensar em fazer tudo sozinho;
é preciso sempre trabalhar em colaboração com os outros. Ser missionário foi sempre
algo muito exigente, é-o ainda mais e temos mais necessidade de contemplativas, de
pessoas que estão em relação com Deus e que têm a formação necessária para estar à
medida de entrar nos diferentes contextos. É um desafio! E quando os missionários
vêm da África que não se venha para a Europa pensando que se podem encontrar os meios…
aqui também os países estão em crise; não é, portanto, porque se vem para aqui que
nos tornamos ricos de noite para dia. É preciso trabalhar. E creio que para nós também,
enquanto missionários devemos ter uma preparação que nos permite integrar-nos nos
diferentes contextos de hoje. Ir para um outro país como missionários é muito exigentes
em termos de integração na cultura do outro. A pessoa tem de estar enriquecida da
própria cultura para poder deixar de lado o que lhe impede entrar na cultura do outro
e podermos trabalhar juntos. Isto é um desafio para a Igreja em África hoje: tornarmo-nos
uma Igreja capaz de enviar missionários/as capazes de fazer um bom trabalho. Vivi
esta situação nos Estados Unidos. Quando estava lá em 2007, éramos mil religiosas
africanas activas em vários sectores. E as religiosas africanas são muito requeridas
pelos bispos dos Estados Unidos; religiosas de países como Quénia, Uganda, Tanzânia,
Nigéria estão bastante presentes nos Estados Unidos. Diz-se que o futuro da Igreja
missionária está no hemisfério sul: África, Ásia, América Latina. Por isso, temos
de estar bem formadas para a missão. E se somos contemplativas, somos capazes de dar
o passo, de conversão e de poder viver em comunhão. O Concilio Vaticano II pediu à
Igreja para desenvolver esta espiritualidade de comunhão. E nós em África temos de
fazer isso, para podermos entrar em relação com os outros.”
Irmã, falou-nos
do papel dos leigos na gestão de paróquias na República Democrática do Congo, o seu
país, onde o Cardeal Malula introduzira muitas novidades neste sentido. E havia aquilo
a que vocês chamam “Mukambi”, isto é o pastor leigo da Paróquia, leigos formados para
esse fim. E as esposas dos Mukambi, são também formadas, têm algum papel na paróquia?
“Quando os Mukambi recebiam a sua formação, as suas esposas
recebiam também formação a fim de poderem apoiar os seus maridos e desempenhar elas
próprias diversas tarefas na paróquia. Sabe, a mulher é intuitiva e sente quando há
situações um pouco difíceis. Como disse, vivi sete anos numa paróquia em Kinshasa,
geria por um Mukambi, a esposa dele chama-se Jeane. Mamã Jeane é uma pessoa que aprecio
muito ainda hoje – era uma pessoa realmente intuitiva e sentia quando havia um pequeno
problema aqui ou acolá e se havia uma necessidade qualquer, ela sabia apresentar isso
muito bem na paróquia, por forma a se encontrar uma solução. Além disso, estávamos
nós também, religiosas. Tínhamos o ministério de visitar pobres e os trazíamos à
quando e os trazíamos à paróquia para tentar resolver os problemas, era a Mamã Jeane
com Mamã Jeane que enfrentávamos o assunto. Foi com ela que aprendi a entrar na vida
da paróquia e sobretudo a ocupar-me de pessoas necessitadas ao lado da minha responsabilidade
principal que era a pastoral das crianças, tarefa esta de que gostava muito. Aos domingos
tínhamos um tempo para nós e as crianças gostavam muito disso. Então quando me viam
na rua me chamavam “Sr. Padre” e eu dizia-lhes: “não sou padre, sou irmã”. Aquelas
crianças cresceram, há algumas que já são casadas, mas era muito lindo, porque a partir
disso a nossa paróquia deu a sua contribuição para a elaboração duma pastoral para
as crianças aos domingos, o que continua a ser desenvolvido e melhorado, mas lançamos
os fundamentos. E Mamã Jeane participava também no Conselho Paroquial. Não falava
muito, mas estava sempre atenta a ouvir, porque como se costuma dizer em África, o
homem está á frente, faz de chefe, mas atrás dele há o verdadeiro chefe: a mulher
(riso). Então Mamã Jeane estava lá e ouvia para saber que conselho dar ao marido.”
Foto: Irma
Lucie em Nairobi, no Quenia, num seminário organizado pelos Organização Internacional
dos Missiológos Católicos de que é vice-presidente.