Irmã Lucie Nzenzili Mboma: sou religiosa para que os outros tenham vida, não uma "solteirona"
frustrada
A irmã Lucie
Nzenzili Mboma é natural da República Democrática do Congo e é membro da Congregação
das Missionárias Franciscanas de Maria.
No ano passado comemorou 50 anos
de vida religiosa. Uma vida que a levou ao logo desse tempo como missionária às
Filipinas, ao Quénia, aos Estados Unidos, tendo também sido Superiora da Comunidade
em Roma, para onde foi chamada de novo para ser Directora Executiva do SEDOS, Centro
de Documentação e Pesquisa sobre a "Missão Ad Gentes", um Centro fundado em 1964,
durante o Concílio Vaticano II por 9 Superiores Gerais, chamados pelo Papa João XXII
para se ocuparem de dar forma ao Decreto Conciliar ad Gentes sobre a Missão Evangelizadora
da Igreja. Tiveram – explica a irmã – um papel muito importante na produção desses
documentos “Ad Gentes” de que a Igreja se serve ainda hoje.
“O meu papel
no SEDOS é o de preparar reuniões do Comité Executivo que toma as decisões e, juntamente
com outros membros da Direcção executiva, preparamos um seminário anual de quatro
dias sobre a missionação. Actualmente são cerca de 100 as Congregações que fazem parte
do SEDOS e a maior parte são Congregações femininas (cerca de 64)”.
-
Irmã, na sua intervenção na Conferência “A Igreja em África: do Concilio Vaticano
II ao Terceiro Milénio” realizado pelo SCEAM em Roma em vésperas da canonização dos
Papas João XXIII e João Paulo II em jeito de homenagem da África a esses dois Papas,
citou o Papa Francisco, segundo o qual as religiosas não devem ser vistas na Igreja
como material de socorro, mas sim como um recurso. Há a tendência a tratar as religiosas
como material de socorro?
“O facto de a assembleia ter desatado a rir
quando disse isso, para mim foi muito significativo, porque por vezes precisam de
nós para fazer esse ou aquele trabalho, mas sentar-se connosco, ouvir-nos e tomar
em consideração o que dizemos, não é sempre fácil. Então, acho que o Papa tinha razão
em dizer que nós não somos material de socorro, mas carismas para enriquecer a Diocese.
As congregações estão lá com os seus carismas. Nos ocupamos dos pobres, dos doentes,
estamos um pouco nos sectores que são, de algum modo, negligenciados pelo Estado,
e estamos lá unicamente para essa categoria de pessoas e hoje o Papa nos pede para
sermos uma Igreja pobre para os pobres. Este é um desafio que estamos a aprofundar
mesmo a nível do SEDOS. Estamos próximos do povo, trabalhamos com o povo e ajudamos
as pessoas a tomar consciência das suas responsabilidades e a tornar-se artesães dos
seus destinos. O que pode haver então de melhor?!, porque deste modo assumem as próprias
responsabilidades não só na família, mas também na Igreja, na medida em que procuramos
dar-lhes uma formação integral, tendo em vista a missão da Igreja, a vida familiar
e social dessas pessoas, tendo também em conta a situação de dificuldades que se vive
hoje no mundo e de modo particular em África.”
- As religiosas são,
portanto, um capital humano, um recurso como diz o Papa, que não é muito bem utilizado
na Igreja?
“Na minha intervenção citei um padre carmelitano que disse
que a vida consagrada é o perfume de Betânia, é uma graça, mas esse perfume é realmente
apreciado!?. Esta era a minha interrogação. A Igreja em África chega realmente a
apreciar esse perfume que está lá e que dá vida?! No início deste ano tivemos um encontro
na Embaixada dos Estados Unidos junto da Santa Sé em volta da questão da vida consagrada
e o Embaixador dizia: “se hoje a Igreja está no mundo inteiro e sobretudo nos lugares
mais recônditos de cada país é graças às religiosas”. E muitas vezes estamos nesses
lugares recônditos sozinhas, o padre só vai lá de vez em quando para dizer a missa.
Portanto, a vida religiosa feminina tem um papel muito importante a desempenhar na
Igreja, mas, por vezes temos a impressão de que a Igreja em África não chegou ainda
a apreciar esse papel”.
- A este respeito tenho ouvido algumas religiosas
dizer que são como que párocos nessas localidades onde trabalham sem a presença do
padre. Mas que isso não é suficientemente tido em consideração pela hierarquia eclesial.
A seu ver, esse trabalho das religiosas deveria ser reconhecido melhor?
“Bem,
o que podemos fazer é a celebração da Palavra e quando o padre vem deixa o Santíssimo
Sacramento connosco… Mas se o padre pudesse vir com mais frequência, ajudar-nos-ia,
porque o maior problema é que dizemos sempre que a Eucaristia é o centro e o ponto
mais alto da vida da Igreja, mas o que acontece é que a maior parte da nossa população
nos lugares mais recuados não tem acesso à Eucaristia. Então, se pudéssemos formar
os nossos seminaristas, transmitindo-lhes o sentido de missão por forma a irem visitar
as religiosas que estão nos lugares mais recônditos e levar-lhes, de forma mais regular,
o Sacramento (pelos menos duas vezes por mês) de modo a se ter suficientes Hóstias
Consagradas, nós continuarmos com a celebração da Palavra, e as pessoas poderem comungar.
Se se pudesse – como diz o Santo Padre – formar os nossos seminaristas não como príncipes
que preferem viver nas grandes cidades porque lá têm todas as possibilidades, mas
transmitir-lhes também o amor pelos mais pobres, pelos consagrados, encorajá-los a
ir ajudar os pobres nos lugares mais recônditos…”.
Então não é apenas
uma questão de escassez de padres, mas é também vontade de estar nesses lugares, não
é?
“Não é uma falta de padres, muitas vezes depende da formação que
lhes é dada. E não sabemos se realmente damos uma formação missionária aos nossos
seminaristas, se lhes ensinamos a apreciar a vida consagrada. Ouvi isso também das
nossas irmãs da América Latina. Elas dizem que estão a lutar a fim de que os bispos
da América Latina continuem o trabalho que já iniciaram de formar os seminaristas,
explicando-lhes o que é a vida consagrada e como podemos colaborar, porque hoje em
dia fala-se muito de trabalho em rede, mas os nossos seminaristas são formados neste
sentido, ou é só para irem para as paróquias onde há muito mais possibilidades financeiras
(riso)? É este o problema!”
- Este é um aspecto muito prático irmã,
mas as religiosas que desempenham praticamente o papel de pároco nessas zonas recônditas
(porque o padre só vai lá de vez em quando), seria necessário um maior reconhecimento
desse seu papel, um reconhecimento formal, digamos?
“Bem, tudo isto
depende dos países, porque nisto estamos a ir para a questão muito delicada da ordenação
dos leigos, dos diáconos, das pessoas casadas… são problemas-chave na Igreja de hoje
porque… Não sei, a Eucaristia é o centro e o cume da vida da Igreja… No entanto, em
muitas zonas dos nossos países as pessoas não têm acesso à Eucaristia. Então, como
responder a este desafio? – É esta a questão! Na República Democrática do Congo,
tivemos um cardeal que foi um profeta, o Cardeal Malula, foi um profeta!... eu vivi
pessoalmente essa experiência… Ele preparava os leigos e a confiava-lhes paróquias…
eu vivi 7 anos numa dessas paróquias dirigida por um “Mukambi”, isto é, por um pastor
leigo, um leigo que guia a paróquia, e era uma paróquia muito viva, o padre vinha
para a reunião do Conselho Paroquial e aos sábados para preparar a missa da tarde
e do domingo. Tudo o que dizia respeito à organização da paróquia estava nas mãos
dos leigos”.
- Então o papel dos leigos e das religiosas neste contexto
caminham paralelamente, ou há alguma diferença em casos como estes, como fazia o cardeal
Malula?
“Não, o que fez o Cardeal Malula…, creio que tínhamos o nosso
lugar, porque estávamos em colaboração com esses leigos, colaborávamos, ele (o Mukambi)
planificava, vinha e nós analisávamos juntos aquilo que ele tinha planificado, porque,
havia o Conselho Paroquial, quer dizer, estávamos realmente integradas na Paróquia,
não nos sentíamos excluídas. Por exemplo, havia uma das nossas irmãs que tinha o dom
da pregação então fazia homilias aos domingos; eu estava encarregada da pastoral da
criança e um Padre do Coração Imaculado de Maria vinha e juntamente com ele elaboramos
um projecto de pastoral da criança. Tínhamos, portanto, o nosso papel, estávamos integradas,
éramos valorizadas e era uma colaboração formidável, até ao momento que a minha Congregação
se retirou para deixar lugar às religiosas diocesanas de Kinshasa que até hoje estão
lá” ?
- Irmã Lucie, no encontro que o Papa Francisco teve com as superioras
gerais da Congregações Religiosas pouco depois do início do seu pontificado, exortou
as religiosas a serem fecundas e não "solteironas". Que percepção teve dessas palavras
do Papa, visto que estava nesse encontro?
“Digamos que como africana
senti-me reconfortada nisso, foi para nós uma confirmação, porque no meu país as pessoas
chamam-nos “Mamã, minha irmã”, porque quando uma irmã têm o esplendor duma mulher
africana, as pessoas chamam-na “mamã” e isto é muito importante. Então para nós africanas
era uma confirmação. Mas havia uma religiosa ao meu lado, uma Superiora Geral, que
começou logo a dizer “não, não, eu não sou mãe, eu não sou mamã, não, não, não posso
fazer isto….” Então eu disse-lhe, “irmã, oiça, devemos ser mães espirituais, tu não
procuras ser mãe espiritual!?”, “sim, sim, isso sim!””.
- É, portanto,
preciso compreender bem o sentido de fecundidade, quer dizer, sentir-se bem na própria
pele, na própria função, fazer frutificar a própria missão, não é?
“Sim,
ser mulher religiosa, significa que a pessoa que encontrais deve sentir que estais
à vontade na vossa vocação e que estais lá para acolher a pessoa, escutá-la, compreender
o que ela quer dizer, e se está à procura duma solução, juntos ver se podeis fazer
alguma coisa, mas não recusar já de início".
- E não se sentir frustrada
como uma "solteirona," uma mulher que não se casou, não é (riso)
“Não,
não, o termo fecundidade é muito importante para nós africanas, no sentido de que
devo deixar resplandecer em mim os valores da mãe africana, valores de acolhimento,
de escuta, de compaixão e tudo isso devemos encontrá-lo na mulher africana que é religiosa.
Não podemos, portanto, ser "solteironas" que estão lá assim… Não estou lá para mim
mesma, estou lá para que os outros tenham vida… não estou lá porque não encontrei
marido… Eu gostei muito daquilo que o Papa disse… Estava lá e do meu país estavam
umas 30 superioras gerais… falamos disso e dissemos que é um desafio o que o Papa
nos lançou e isso não só em relação às pessoas de fora, devemos ser mãe também no
seio das nossas Congregações, porque muitas vezes pode-se ser uma boa mamã no exterior
e tornarmo-nos solteironas no seio da comunidade."
- Sim de facto ouço
por vezes dizer, ah… as irmãs são terríveis, há sempre brigas entre elas….
“Há
ainda muito a fazer nalgumas das nossas comunidades…, como acolher as nossas irmãs,
ajudar as irmãs a valorizar o dom que o Senhor pôs nelas, não é?!... e dar-lhes a
possibilidade …. Uf, não é fácil; temos ainda essa coisas das tribus, pertenço a tal
ou tal tribu, portanto, se há irmãs da minha tribu vou fazer isso para… ehn, fazer
avançar … e as outras que estão ali deixamo-las um pouco de lado…. É isto o puxa,
puxa …”
- Isso no que diz respeito às africanas, mas entre as religiosas
doutros continentes, onde a questão tribal não existe…?
“Bom estando
numa Congregação internacional… não para gabar a minha a minha Congregação, mas recebemos
o espírito internacional da nossa fundadora, o que faz com que pelo menos as pessoas
da minha idade vivemos esse sentido de pertença à Congregação e é a Congregação que
cuida de todas as irmãs… Eu tive como Superiora Provincial no Congo nos anos 60… anos
da minha formação… e essa mulher nos conhecia bem e sabia que enviar para estudos
de ciência, quem para costura, quem estudo de línguas e, quando estávamos nos estudos,
sentíamo-nos à vontade porque ela sabia discernir o dom de cada irmã e é isto que
desejo às nossas superioras de hoje, às jovens superioras: que consigam discernir
o dom de cada irmã para as mandar estudar com vista na missão da Congregação, mas
também com vista no desabrochamento da pessoa.” **
Era pois a Irmã
Lucie Nzinzili Mboma, natural da RDC, religiosa da Congregação das Missionárias de
Maria, actualmente a trabalhar no SEDOS em Roma… algo de que nos falará mais pormenorizadamente
numa próxima emissão em que ficaremos também a saber o que mais a marcou nesses 50
anos de vida religiosa.
Oiça tudo aqui na rubrica "África.Vozes Femininas"
Foto 1: A
irmã Lucie no seu escritório do SEDOS em Roma
Foto: 2 - A irmã, em Nairobi,
num seminário organizado pelo Instituto Internacional dos Missiológos Católicos de
que é vice-Presidente.