2014-06-17 12:35:18

Irmã Lucie Nzenzili Mboma: sou religiosa para que os outros tenham vida, não uma "solteirona" frustrada


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A irmã Lucie Nzenzili Mboma é natural da República Democrática do Congo e é membro da Congregação das Missionárias Franciscanas de Maria.

No ano passado comemorou 50 anos de vida religiosa. Uma vida que a levou ao logo desse tempo como missionária às Filipinas, ao Quénia, aos Estados Unidos, tendo também sido Superiora da Comunidade em Roma, para onde foi chamada de novo para ser Directora Executiva do SEDOS, Centro de Documentação e Pesquisa sobre a "Missão Ad Gentes", um Centro fundado em 1964, durante o Concílio Vaticano II por 9 Superiores Gerais, chamados pelo Papa João XXII para se ocuparem de dar forma ao Decreto Conciliar ad Gentes sobre a Missão Evangelizadora da Igreja. Tiveram – explica a irmã – um papel muito importante na produção desses documentos “Ad Gentes” de que a Igreja se serve ainda hoje.

O meu papel no SEDOS é o de preparar reuniões do Comité Executivo que toma as decisões e, juntamente com outros membros da Direcção executiva, preparamos um seminário anual de quatro dias sobre a missionação. Actualmente são cerca de 100 as Congregações que fazem parte do SEDOS e a maior parte são Congregações femininas (cerca de 64)”.

- Irmã, na sua intervenção na Conferência “A Igreja em África: do Concilio Vaticano II ao Terceiro Milénio” realizado pelo SCEAM em Roma em vésperas da canonização dos Papas João XXIII e João Paulo II em jeito de homenagem da África a esses dois Papas, citou o Papa Francisco, segundo o qual as religiosas não devem ser vistas na Igreja como material de socorro, mas sim como um recurso. Há a tendência a tratar as religiosas como material de socorro?

O facto de a assembleia ter desatado a rir quando disse isso, para mim foi muito significativo, porque por vezes precisam de nós para fazer esse ou aquele trabalho, mas sentar-se connosco, ouvir-nos e tomar em consideração o que dizemos, não é sempre fácil. Então, acho que o Papa tinha razão em dizer que nós não somos material de socorro, mas carismas para enriquecer a Diocese. As congregações estão lá com os seus carismas. Nos ocupamos dos pobres, dos doentes, estamos um pouco nos sectores que são, de algum modo, negligenciados pelo Estado, e estamos lá unicamente para essa categoria de pessoas e hoje o Papa nos pede para sermos uma Igreja pobre para os pobres. Este é um desafio que estamos a aprofundar mesmo a nível do SEDOS. Estamos próximos do povo, trabalhamos com o povo e ajudamos as pessoas a tomar consciência das suas responsabilidades e a tornar-se artesães dos seus destinos. O que pode haver então de melhor?!, porque deste modo assumem as próprias responsabilidades não só na família, mas também na Igreja, na medida em que procuramos dar-lhes uma formação integral, tendo em vista a missão da Igreja, a vida familiar e social dessas pessoas, tendo também em conta a situação de dificuldades que se vive hoje no mundo e de modo particular em África.”

- As religiosas são, portanto, um capital humano, um recurso como diz o Papa, que não é muito bem utilizado na Igreja?

Na minha intervenção citei um padre carmelitano que disse que a vida consagrada é o perfume de Betânia, é uma graça, mas esse perfume é realmente apreciado!?. Esta era a minha interrogação. A Igreja em África chega realmente a apreciar esse perfume que está lá e que dá vida?! No início deste ano tivemos um encontro na Embaixada dos Estados Unidos junto da Santa Sé em volta da questão da vida consagrada e o Embaixador dizia: “se hoje a Igreja está no mundo inteiro e sobretudo nos lugares mais recônditos de cada país é graças às religiosas”. E muitas vezes estamos nesses lugares recônditos sozinhas, o padre só vai lá de vez em quando para dizer a missa. Portanto, a vida religiosa feminina tem um papel muito importante a desempenhar na Igreja, mas, por vezes temos a impressão de que a Igreja em África não chegou ainda a apreciar esse papel”.

- A este respeito tenho ouvido algumas religiosas dizer que são como que párocos nessas localidades onde trabalham sem a presença do padre. Mas que isso não é suficientemente tido em consideração pela hierarquia eclesial. A seu ver, esse trabalho das religiosas deveria ser reconhecido melhor?


“Bem, o que podemos fazer é a celebração da Palavra e quando o padre vem deixa o Santíssimo Sacramento connosco… Mas se o padre pudesse vir com mais frequência, ajudar-nos-ia, porque o maior problema é que dizemos sempre que a Eucaristia é o centro e o ponto mais alto da vida da Igreja, mas o que acontece é que a maior parte da nossa população nos lugares mais recuados não tem acesso à Eucaristia. Então, se pudéssemos formar os nossos seminaristas, transmitindo-lhes o sentido de missão por forma a irem visitar as religiosas que estão nos lugares mais recônditos e levar-lhes, de forma mais regular, o Sacramento (pelos menos duas vezes por mês) de modo a se ter suficientes Hóstias Consagradas, nós continuarmos com a celebração da Palavra, e as pessoas poderem comungar. Se se pudesse – como diz o Santo Padre – formar os nossos seminaristas não como príncipes que preferem viver nas grandes cidades porque lá têm todas as possibilidades, mas transmitir-lhes também o amor pelos mais pobres, pelos consagrados, encorajá-los a ir ajudar os pobres nos lugares mais recônditos…”.

Então não é apenas uma questão de escassez de padres, mas é também vontade de estar nesses lugares, não é?

“Não é uma falta de padres, muitas vezes depende da formação que lhes é dada. E não sabemos se realmente damos uma formação missionária aos nossos seminaristas, se lhes ensinamos a apreciar a vida consagrada. Ouvi isso também das nossas irmãs da América Latina. Elas dizem que estão a lutar a fim de que os bispos da América Latina continuem o trabalho que já iniciaram de formar os seminaristas, explicando-lhes o que é a vida consagrada e como podemos colaborar, porque hoje em dia fala-se muito de trabalho em rede, mas os nossos seminaristas são formados neste sentido, ou é só para irem para as paróquias onde há muito mais possibilidades financeiras (riso)? É este o problema!

- Este é um aspecto muito prático irmã, mas as religiosas que desempenham praticamente o papel de pároco nessas zonas recônditas (porque o padre só vai lá de vez em quando), seria necessário um maior reconhecimento desse seu papel, um reconhecimento formal, digamos?

Bem, tudo isto depende dos países, porque nisto estamos a ir para a questão muito delicada da ordenação dos leigos, dos diáconos, das pessoas casadas… são problemas-chave na Igreja de hoje porque… Não sei, a Eucaristia é o centro e o cume da vida da Igreja… No entanto, em muitas zonas dos nossos países as pessoas não têm acesso à Eucaristia. Então, como responder a este desafio? – É esta a questão! Na República Democrática do Congo, tivemos um cardeal que foi um profeta, o Cardeal Malula, foi um profeta!... eu vivi pessoalmente essa experiência… Ele preparava os leigos e a confiava-lhes paróquias… eu vivi 7 anos numa dessas paróquias dirigida por um “Mukambi”, isto é, por um pastor leigo, um leigo que guia a paróquia, e era uma paróquia muito viva, o padre vinha para a reunião do Conselho Paroquial e aos sábados para preparar a missa da tarde e do domingo. Tudo o que dizia respeito à organização da paróquia estava nas mãos dos leigos”.

- Então o papel dos leigos e das religiosas neste contexto caminham paralelamente, ou há alguma diferença em casos como estes, como fazia o cardeal Malula?

Não, o que fez o Cardeal Malula…, creio que tínhamos o nosso lugar, porque estávamos em colaboração com esses leigos, colaborávamos, ele (o Mukambi) planificava, vinha e nós analisávamos juntos aquilo que ele tinha planificado, porque, havia o Conselho Paroquial, quer dizer, estávamos realmente integradas na Paróquia, não nos sentíamos excluídas. Por exemplo, havia uma das nossas irmãs que tinha o dom da pregação então fazia homilias aos domingos; eu estava encarregada da pastoral da criança e um Padre do Coração Imaculado de Maria vinha e juntamente com ele elaboramos um projecto de pastoral da criança. Tínhamos, portanto, o nosso papel, estávamos integradas, éramos valorizadas e era uma colaboração formidável, até ao momento que a minha Congregação se retirou para deixar lugar às religiosas diocesanas de Kinshasa que até hoje estão lá” ?

- Irmã Lucie, no encontro que o Papa Francisco teve com as superioras gerais da Congregações Religiosas pouco depois do início do seu pontificado, exortou as religiosas a serem fecundas e não "solteironas". Que percepção teve dessas palavras do Papa, visto que estava nesse encontro?

Digamos que como africana senti-me reconfortada nisso, foi para nós uma confirmação, porque no meu país as pessoas chamam-nos “Mamã, minha irmã”, porque quando uma irmã têm o esplendor duma mulher africana, as pessoas chamam-na “mamã” e isto é muito importante. Então para nós africanas era uma confirmação. Mas havia uma religiosa ao meu lado, uma Superiora Geral, que começou logo a dizer “não, não, eu não sou mãe, eu não sou mamã, não, não, não posso fazer isto….” Então eu disse-lhe, “irmã, oiça, devemos ser mães espirituais, tu não procuras ser mãe espiritual!?”, “sim, sim, isso sim!””.

- É, portanto, preciso compreender bem o sentido de fecundidade, quer dizer, sentir-se bem na própria pele, na própria função, fazer frutificar a própria missão, não é?

Sim, ser mulher religiosa, significa que a pessoa que encontrais deve sentir que estais à vontade na vossa vocação e que estais lá para acolher a pessoa, escutá-la, compreender o que ela quer dizer, e se está à procura duma solução, juntos ver se podeis fazer alguma coisa, mas não recusar já de início".

- E não se sentir frustrada como uma "solteirona," uma mulher que não se casou, não é (riso)

Não, não, o termo fecundidade é muito importante para nós africanas, no sentido de que devo deixar resplandecer em mim os valores da mãe africana, valores de acolhimento, de escuta, de compaixão e tudo isso devemos encontrá-lo na mulher africana que é religiosa. Não podemos, portanto, ser "solteironas" que estão lá assim… Não estou lá para mim mesma, estou lá para que os outros tenham vida… não estou lá porque não encontrei marido… Eu gostei muito daquilo que o Papa disse… Estava lá e do meu país estavam umas 30 superioras gerais… falamos disso e dissemos que é um desafio o que o Papa nos lançou e isso não só em relação às pessoas de fora, devemos ser mãe também no seio das nossas Congregações, porque muitas vezes pode-se ser uma boa mamã no exterior e tornarmo-nos solteironas no seio da comunidade."

- Sim de facto ouço por vezes dizer, ah… as irmãs são terríveis, há sempre brigas entre elas….

Há ainda muito a fazer nalgumas das nossas comunidades…, como acolher as nossas irmãs, ajudar as irmãs a valorizar o dom que o Senhor pôs nelas, não é?!... e dar-lhes a possibilidade …. Uf, não é fácil; temos ainda essa coisas das tribus, pertenço a tal ou tal tribu, portanto, se há irmãs da minha tribu vou fazer isso para… ehn, fazer avançar … e as outras que estão ali deixamo-las um pouco de lado…. É isto o puxa, puxa …”

- Isso no que diz respeito às africanas, mas entre as religiosas doutros continentes, onde a questão tribal não existe…?

Bom estando numa Congregação internacional… não para gabar a minha a minha Congregação, mas recebemos o espírito internacional da nossa fundadora, o que faz com que pelo menos as pessoas da minha idade vivemos esse sentido de pertença à Congregação e é a Congregação que cuida de todas as irmãs… Eu tive como Superiora Provincial no Congo nos anos 60… anos da minha formação… e essa mulher nos conhecia bem e sabia que enviar para estudos de ciência, quem para costura, quem estudo de línguas e, quando estávamos nos estudos, sentíamo-nos à vontade porque ela sabia discernir o dom de cada irmã e é isto que desejo às nossas superioras de hoje, às jovens superioras: que consigam discernir o dom de cada irmã para as mandar estudar com vista na missão da Congregação, mas também com vista no desabrochamento da pessoa.”
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Era pois a Irmã Lucie Nzinzili Mboma, natural da RDC, religiosa da Congregação das Missionárias de Maria, actualmente a trabalhar no SEDOS em Roma… algo de que nos falará mais pormenorizadamente numa próxima emissão em que ficaremos também a saber o que mais a marcou nesses 50 anos de vida religiosa.

Oiça tudo aqui na rubrica "África.Vozes Femininas" RealAudioMP3

Foto 1: A irmã Lucie no seu escritório do SEDOS em Roma

Foto: 2 - A irmã, em Nairobi, num seminário organizado pelo Instituto Internacional dos Missiológos Católicos de que é vice-Presidente.








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