Impunidade e corrupção fazem perdurar violências sexuais contra as mulheres no Leste
da RDC - Irmã Victoria Chiharhula Msola, Missionária da África
Muito se tem
falado das terríveis violências sexuais perpetradas contra as mulheres no leste da
República Democrática do Congo como arma de guerra. A situação parece ter melhorado
um pouco nesse contexto que, actualmente, não é nem de guerra, nem de paz, mas perdura
ainda - afirmou a irmã congolesa Victoria Chiharhula Msola em entrevista à
Rádio Vaticano.
Ela participou numa mesa redonda intitulada “Pôr termo
às violências sexuais nos conflitos. É tempo de agir”, organizada no passado
dia 3 pela nossa Emissora em colaboração com a Embaixada da Grã-Bretanha junto da
Santa Sé e emitida também no “Canal You Tube Vaticano”. Na emissão tomou parte também
o Director da Caritas Internationalis, Michel Roy.
A irmã Victoria foi seguidamente
entrevistada por Romilda Ferrauto, responsável da Secção Francesa, entrevista que
emitimos na rubrica "África.Vozes Femininas" desta semana. Oiça aqui ou leia em baixo...
“Sou irmã Victoria Chiharhula Msola., originária de
Bukavu, na República Democrática do Congo. Sou missionária de Nossa Senhora da África,
Congregação conhecida também por “Irmãs Brancas. Actualmente vivo em Roma porque a
Congregação pediu-me para fazer a coordenação do projecto “Justiça, Paz e Integridade
da Criação” a nível de toda a Congregação. Isto leva-me aos diferentes países, onde
temos comunidades e prioritariamente às casas de formação, onde faço sessões de formação
no domínio da “Justiça, Paz e Integração”, mas como Congregação fundada pelo Cardeal
Charles Lavigerie, grande pioneiro da luta contra a escravatura, lançamos como Congregação
(Irmãs Brancas e Padres Brancos) a nível geral, uma nova orientação sobre o trafico
de pessoas. Este é o nosso empenho prioritário, entre tantos outros que temos”.
Se
não estou errada, ocupou-se também da violência sexual como arma de guerra…
“Sim,
de 2000 a 2007 estava em Bukavu, porque fazia parte da liderança da Congregação a
nível da Província. Era tempo de guerra e ao longo desse tempo, verificaram-se muitas
violências. Então, quando tinha um pouco de tempo livre, quando não estava em visita
às comunidades, partia com as equipas da Caritas para as aldeias destruídas, onde
as casas tinham sido queimadas, as mulheres violadas em massa, onde tinha havido massacres,
meninas pegadas e levadas para a floresta e tudo mais… e nós íamos levar um pouco
de conforto a essas pessoas. Levávamos víveres e outras coisas. E passávamos noites
inteiras a ouvir as coisas que contavam - que se não estivéssemos lá, dir-se-ia uma
ficção – mas é a realidade.”
- E essa realidade que conheceu de 2000
até 2007 perdura ainda hoje?
“Perdura. Tende um pouco a diminuir, tende
a diminuir graças à derrota do Movimento 23 de Março (M23) e todos os esforços que
fazemos para sensibilizar a população. Agora há um pouco de segurança, há ao mesmo
tempo a diminuição deste fenómeno da violência, mas continua”.
- A
violência sexual durante as guerras sempre existiu, mas o que caracterizou essas violências
nestes últimos anos é que há por detrás disso uma estratégia. Confirma isto, a violência
praticada para destruir populações, para destruir países?
“É
exactamente isto. Disse a verdade, porque quando se vê a extensão disso, quando se
vêem os métodos, quando se vê a crueldade com que essas violências são feitas, quando
se vê as faixas etárias – de 18 meses a 75 anos – aliás algumas pessoas falam mesmo
de mulheres de 80 anos violadas, mas eu pessoalmente só vi de 75 anos; quando se entra
numa aldeia e se viola sistematicamente as mulheres, e nos últimos anos se começou
mesmo a destruir os órgãos sexuais das mulheres depois de as violar – cortam com
baioneta, com facas, com pedaços de pau, com a espingarda – e nos últimos tempos,
segundo o Dr. Mukwege, que cuida das mulheres e que é mundialmente conhecido pelo
seu empenho e é mesmo chamado “o Dr. que repara as mulheres” – nos últimos anos está-se
mesmo a utilizar o ácido para queimar completamente os órgãos genitais das mulheres.
Esta é, portanto, uma vontade deliberada de eliminar esse povo, porque quando se destrói
a mulher, destrói-se a vida”.
- Falava do M23, mas esses
métodos horríveis que acabou de descrever, são adoptados também por outros grupos?
“Bem, não é só o M23 que adoptou isso. Há também o FDLR por aí na floresta.
Nas aldeias que visitei de 2000 a 2009, era sobretudo o FDLR (Forças Democráticas
de Libertação do Ruanda – nota do tradutor) que cometia esses crimes. Mas há também
grupos armados de todo o tipo porque na região leste do Congo (Norte e Sul do Kivu)
há mais ou menos 15 grupos armados. E cada grupo armado para mostrar a sua autoridade,
para se vingar por ter sido expulso de tal lugar, vai para outro, e essa vingança
recai primeiramente sobre as mulheres. Houve mesmo casos em que o Exercito Nacional
foi também acusado. Foram detidas algumas pessoas, foram julgadas, mas o que deixa
a desejar é o julgamento que é feito”.
- Fala justamente
de julgamento. Não há também um problema de impunidade, de corrupção, de cumplicidade,
de conivência?
“É este o centro das verdadeiras razões.
Porque é que essas violências continuam? – Precisamente porque há impunidade. Mesmo
quando os jovens das aldeias se reúnem – pois que por vezes ficavam de tal modo enraivecidos
por ver as suas mães, avós, jovens irmãs ultrajadas dessas forma que se reuniram para
apanhar pelos menos um dos elementos desses grupos de violadores. Apanham-no, entregam-no
à justiça e poucos dias depois o tipo está de volta e quando volta é dez vezes pior,
porque vinga-se. A impunidade é a grande, a principal razão pela qual essas
coisas continuam a acontecer. E quem fala de impunidade, fala de corrupção, porque
essas pessoas só podem fugir da prisão quando pagaram os seu carcereiros”.
-
Se pagam é porque têm dinheiro, e se têm dinheiro é porque conseguiram procurá-lo!
“Claro, porque esses grupos controlam as zonas mineiras. E todos esses
combates na região - como é sabido – é para se apoderarem dos recursos minerais do
Congo. Então, enquanto não se puser fim à guerra, enquanto não se desarmar todos esses
grupos, pode-se fazer tudo, a impunidade continuará, as violências sexuais continuarão,
pois as armas estão entre as mãos de pessoas perigosas que não têm nenhuma formação
militar, que não t~em nenhuma deontologia militar. Então, a meu ver, se se quer realmente
pôr termo à violência sexual, o que se deve fazer antes de mais, é pôr termo à guerra,
desarmar os grupos, lutar contra a impunidade, impondo ao Governo da região a aplicação
da lei, porque há leis, mas não são aplicadas. Um terceiro aspecto: é preciso
pagar os militares, pois que por vezes quando falamos com essas milícias e lhes dizemos
“vós como podeis fazer isso ao vosso próprio povo? “, alguns respondem “minha irmã,
somos porventura ainda seres humanos!?, estamos já mortos, a forma como nos tratam!”
– então tudo isto tem de ser posto junto, se quisermos lutar,
mas há outros elementos que têm também de ser tidos em conta nessa luta: nós estamos
aqui, digo coisas que devem ser feitas pelo Governo com a ajuda
externa e tudo mais… “
- A alto nível, digamos!...
“A
alto nível, sim, mas é preciso, também apoiar a acção a nível local, isto é acentuar
a formação, a consciencialização de toda a população, apoiar
os programas pastorais da Igreja porque há programas que procuram endireitar essas
situações de violência sexual. Há, por exemplo, o P. Bernard Uguex, missionário da
África que, com um grupo de teólogos, de assistentes sociais, agentes pastorais das
prisões, da saúde, etc., produziu um manual para a formação das pequenas comunidades
de base – portanto, isto vai realmente à base para levar todo o mundo à responsabilidade
e ao sentido de dignidade de cada pessoa. Se pudéssemos, seria bom ajudar a traduzir
esse manual nas diferentes línguas não só do Sul do Kivu, mas de toda a RDC, e difundi-lo
para que cada comunidade cristã possa utilizá-lo, isto ajudaria. Há religiosas
como a minha grande amiga Jeane B. da Santa Família que fez uma formação psicológica
precisamente para acompanhar pessoas traumatizadas, sobretudo mulheres. Chama-se a
isso “Restaurar as Forças Humanas” e a formação é feita no Canadá. Muitas mulheres
que tiveram a sorte de passar por ela… – e há também uma das irmãs da minha Congregação
– Ebian Catan, da Suíça, que fez a mesma formação – há um pequeno grupo que teve essa
formação e que fazem maravilhas! Mas isto não chega, é muito pouco.
É preciso ajudar na formação de mais pessoas para que haja muitas pessoas que ajudam
a “restaurar as forças”. Se não se faz isto, corre-se o risco de ver essas pessoas
que foram traumatizadas interiorizar isso e vinte anos depois tornar-se-ão torcionários
dos outros. Isto é, portanto, a nível dos cuidados pastorais, psicológicos
e espirituais; mas é preciso também a educação, a educação formal,
pôr nos programas escolares, a partir da escola primária até à universidade esta questão
da violência sexual, para que cada jovem seja formado ao respeito da dignidade do
seu semelhante.”