Carta do Prepósito Geral dos Jesuítas sobre Anchieta
Cidade do Vaticano (RV) - O Prepósito Geral dos Jesuítas, Pe. Adolfo Nicolàs,
dirigiu uma mensagem à Companhia de Jesus por ocasião da canonização de José de Anchieta.
Eis a íntegra da mensagem:
"Queridos Irmãos e Irmãs no Senhor,
A canonização,
em 3 de abril, do Beato José de Anchieta, é um evento que a Igreja do Brasil muito
desejou por longo tempo. Foi proclamado Apóstolo do Brasil, título pelo qual é reconhecido
até hoje.
A Companhia não pode que não responder ao convite que lhe é feito
de valorizar esta figura polivalente, estimulante e de extrema atualidade. O que quer
nos dizer o Senhor ao nos dar, em menos de um ano, o reconhecimento eclesial do valor
evangélico da vida de nossos companheiros Pedro Fabro e José de Anchieta? Dois homens
que cumpriram missões tão diferentes e, não obstante isto, tão similares no espírito
da Companhia que deve animar a nossa missão. Ambos, com a intensidade de suas vidas,
nos convidam a descobrir que a “reconstituição”, mais que ser para nós um mero fato
histórico, deve representar o “modo de ser” sempre presente, em um corpo apostólico
em contínua reconstituição.
José de Anchieta, "de estatura média, magro,
mas forte e decidido no espírito, bronzeado na cor da pele, de olhos azuis, fronte
larga, alegre e amável de caráter”, passou 44 anos de sua vida percorrendo boa parte
do território do Brasil, levando a boa notícia do Evangelho aos indígenas.
Terceiro
dos dez filhos da família de López de Anchieta e Diaz de Clavijo, José de Anchieta
nasceu em Tenerife (Espanha) em 1534. Parente na linha paterna da família dos Loyola,
nas suas veias corria, herdado dos avós paternos, o sangue dos judeus convertidos.
Logo foi convidado a estudar na Universidade de Coimbra (Portugal) no triênio de ouro
do recém fundado Colégio das Artes. A sua vocação à vida religiosa nasceu em um clima
de idéias e de liberdades morais que não a favoreciam. Mas talvez tenha sido estimulado
pelo exemplo de alguns companheiros jesuítas, que eram influentes na universidade.
De fato, as cartas de Francisco Savério mexiam com a juventude universitária de toda
a Europa.
Admitido ao noviciado pela Companhia em 1° de maio de 1551 na Província
de Portugal, contraiu uma grave forma de tuberculose ósseo-articular que, aos 17 anos
de idade, provocou nele uma curvatura na coluna. A sua ansiedade em ser considerado
inútil para o apostolado foi muito aliviada pelas palavras consoladoras do Padre Simon
Rodrigues, fundador da Província de Portugal: “Não se preocupe por esta deformação,
Deus a quer assim”. No ar pairava esperança: começavam a chegar do Brasil as cartas
do Padre Manuel de Nóbrega, que exaltavam a salubridade do clima daquelas terras para
qualquer tipo de doença. E para aquelas terras Anchieta partiu em 8 de março de 1553,
com a terceira expedição de jesuítas que embarcavam com destino ao Brasil. Tinha 19
anos e apenas proferido os primeiros votos.
Logo nos deparamos diante do primeiro
paradoxo deste jovem jesuíta: o forte contraste entre a sua fragilidade física e a
intensa vitalidade apostólica, que levou em frente ininterruptamente por 44 anos,
percorrendo numerosas regiões do Brasil, até a sua morte aos 63 anos.
A vida
de José de Anchieta é apostólica e radicalmente evangélica. “Não basta partir de Coimbra
– dizia aos seus irmãos enfermos que permaneciam em casa – com o fervor que depois
se esvai antes ainda de atravessar a linha (do Equador), ou que bem cedo se resfria
e faz surgir o desejo de retornar a Portugal. É necessário levar as mochilas cheias
para que as provisões durem até o final do dia”.
Os desafios da missão hoje
exigem sempre mais a “revitalização do corpo apostólico” da Companhia. A fonte da
vitalidade apostólica de Anchieta era a sua profunda experiência espiritual. A solidez
de sua fama de santo e de taumaturgo era baseada no amor, na oração, na humildade
e no serviço.
Uma das críticas que lhe foram feitas diante do Visitador, foi
de que “fazia muita caridade”. Aos olhos daqueles que o criticavam pelo seu excesso
de bondade, estaria na origem o seu modo muito brando de governar. O Padre Gouveia,
todavia, não era da mesma opinião. O descreve como “homem fiel, prudente e humilde
em Cristo, procurado por todos, ninguém nunca reclamou dele e não me é possível encontrar
palavra ou ação em que tenha agido mal”. Sincero amigo de todos, sabia unir a bondade
à severidade e à firmeza, como desejava Santo Inácio em todos os bons superiores.
Não obstante os seus males, bem visíveis, o provincialado de Anchieta pode ser considerado
como um dos mais dinâmicos e rico de frutos do seu tempo.
Dos 44 anos de vida
no Brasil, ao menos 40 são caracterizados por uma contínua peregrinação, começando
pela região de São Vicente e Piratininga, entre 1554 e 1564, quando teve lugar a fundação
e os primeiros anos de vida da cidade de São Paulo. Foi uma mobilidade que não o impediu
de dedicar-se às lições de latim e ao estudo mais aprofundado da língua tupi, que
o permitia ao mesmo tempo desenvolver uma grande atividade missionária e catequética.
Nomeado Provincial em 1557, e posteriormente Superior, visita casas e comunidades:
pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e para aqueles que sofriam, conselheiro
dos homens de governo, mas, sobretudo, amigo e defensor dos índios e dos seus vilarejos.
Somente
em 1595 a obediência o liberou da responsabilidade de governo. Restavam-lhe escassos
2 anos de vida, nos quais encontrou tempo para participar da defesa da Capitania do
Espírito Santo contra as incursões dos índios goitacases. O seu último destino foi
a cidade de Reritiba. Aqui começou a escrever a “História da Companhia de Jesus no
Brasil”, uma preciosa obra que perdeu-se e da qual não permaneceram que fragmentos.
Na base desta vida itinerante não existia certamente nenhum espírito de aventura,
mas somente o espírito de disponibilidade para a missão, de liberdade espiritual e
de prontidão em buscar e encontrar em cada momento a vontade do Senhor. O acompanhou
até o fim um zelo verdadeiramente apostólico. “Visto que não mereço ser mártir para
a outra vida – escreve ele mesmo – que ao menos a morte me colha abandonado em alguma
destas montanhas, e aqui, dar a vida pelos meus irmãos. A constituição do meu corpo
é fraca, mas a graça do Senhor me basta para seguir em frente”.
Não deveria
ser a mobilidade – com tudo o que implica de liberdade espiritual, de disponibilidade
e capacidade de discernimento e de fazer as escolhas – uma das características indispensáveis
do nosso corpo apostólico? O contínuo peregrinar de Anchieta, quase como forma de
vida, poderia servir de inspiração também hoje e estimular a nossa busca de mobilidade
apostólica, para responder aos desafios que as novas fronteiras nos esperam.
Um traço de grande relevo na figura humana, espiritual e apostólica de José de
Anchieta aparece na sua capacidade de organizar estruturalmente a missão, integrando
as diversas presenças apostólicas e as diversas dimensões em um só projeto diversificado
e complexo, mas único. E ao centro, o amor pelos índios que dá um sentido a tudo:
“Sinto os índios – escreve do seu último refúgio em Reritiba – mais próximos do que
os portugueses, porque é por eles que vim ao Brasil”
Com o Padre Nóbrega participou
da primeira fundação do Rio de Janeiro. A segunda e definitiva fundação não se verificará,
senão dois anos após, com a ajuda de uma equipe chegada de Portugal, guiada pelo próprio
governador Mem de Sá. Nesta ocasião Anchieta escreveu a sua primeira obra em latim:
De gestis Mendi de Saa. A este período, remonta também a sagrada representação
intitulada ‘Pregação Universal’, inspirada no cerimonial indígena para a acolhida
de pessoas ilustres, com a qual introduzia na língua tupi a técnica dos versos e das
estrofes, típicas do teatro português. Soube sempre colocar a serviço da missão os
seus extraordinários dotes de perfeito humanista: o seu domínio da gramática, o seu
gosto pelos clássicos latinos e a sua habilidade na arte oratória. Com grande fecundidade
escreveu em tupi os “Diálogos da fé” (catecismo para instrução dos índios na doutrina
cristã), redigiu os opúsculos para a preparação ao Batismo e à Confissão, levou a
termo a gramática da língua tupi, a mais usada na zona costeira do Brasil.
Sempre
agente de reconciliação, empenhou-se profundamente no diálogo com os índios tamoyos,
até o ponto de ser preso como refém e de viver entre eles, sequestrado, por cinco
meses. Feita a paz com os tamoios, e liberado, teve ainda a força de retornar a São
Vicente e escrever o poema a Virgem: de Beata Virgine Dei Matre Maria. Não
se entregou nem mesmo com a falta de papel. Passou a escrever dístico após dístico
na areia do mar memorizando mais de 5.800 belíssimos versos.
O folclore popular,
adaptado como música religiosa, servia a ele para representações sacras em português
e em tupi. A sua atividade para enriquecer o ministério pastoral e catequético entre
os índios com representações teatrais nos dias de festa. Considerava indispensável
adaptar-se à psicologia indígena.
São muitas as razões que temos para sermos
agradecidos ao Papa Francisco de propor ao mundo inteiro, com o novo título de santidade,
o exemplo de José de Anchieta. Para a Companhia de Jesus é uma ocasião para retomar
com intensidade a busca daqueles horizontes que foram os seus e que são sempre novos:
a sensibilidade diante da diversidade étnica e do pluralismo religioso, cultural e
social; o desenvolvimento incansável de uma nova liberdade criativa e de uma responsável
capacidade de improvisação; a busca de expressões inculturadas à experiência cristã
e evangelizadora.
Que este novo intercessor nos ajude a buscar sempre com
maior empenho a vontade de Deus e a cumpri-la sem nos cansar".