2014-04-03 20:01:55

Carta do Prepósito Geral dos Jesuítas sobre Anchieta


Cidade do Vaticano (RV) - O Prepósito Geral dos Jesuítas, Pe. Adolfo Nicolàs, dirigiu uma mensagem à Companhia de Jesus por ocasião da canonização de José de Anchieta. Eis a íntegra da mensagem:

"Queridos Irmãos e Irmãs no Senhor,

A canonização, em 3 de abril, do Beato José de Anchieta, é um evento que a Igreja do Brasil muito desejou por longo tempo. Foi proclamado Apóstolo do Brasil, título pelo qual é reconhecido até hoje.

A Companhia não pode que não responder ao convite que lhe é feito de valorizar esta figura polivalente, estimulante e de extrema atualidade. O que quer nos dizer o Senhor ao nos dar, em menos de um ano, o reconhecimento eclesial do valor evangélico da vida de nossos companheiros Pedro Fabro e José de Anchieta? Dois homens que cumpriram missões tão diferentes e, não obstante isto, tão similares no espírito da Companhia que deve animar a nossa missão. Ambos, com a intensidade de suas vidas, nos convidam a descobrir que a “reconstituição”, mais que ser para nós um mero fato histórico, deve representar o “modo de ser” sempre presente, em um corpo apostólico em contínua reconstituição.

José de Anchieta, "de estatura média, magro, mas forte e decidido no espírito, bronzeado na cor da pele, de olhos azuis, fronte larga, alegre e amável de caráter”, passou 44 anos de sua vida percorrendo boa parte do território do Brasil, levando a boa notícia do Evangelho aos indígenas.

Terceiro dos dez filhos da família de López de Anchieta e Diaz de Clavijo, José de Anchieta nasceu em Tenerife (Espanha) em 1534. Parente na linha paterna da família dos Loyola, nas suas veias corria, herdado dos avós paternos, o sangue dos judeus convertidos. Logo foi convidado a estudar na Universidade de Coimbra (Portugal) no triênio de ouro do recém fundado Colégio das Artes. A sua vocação à vida religiosa nasceu em um clima de idéias e de liberdades morais que não a favoreciam. Mas talvez tenha sido estimulado pelo exemplo de alguns companheiros jesuítas, que eram influentes na universidade. De fato, as cartas de Francisco Savério mexiam com a juventude universitária de toda a Europa.

Admitido ao noviciado pela Companhia em 1° de maio de 1551 na Província de Portugal, contraiu uma grave forma de tuberculose ósseo-articular que, aos 17 anos de idade, provocou nele uma curvatura na coluna. A sua ansiedade em ser considerado inútil para o apostolado foi muito aliviada pelas palavras consoladoras do Padre Simon Rodrigues, fundador da Província de Portugal: “Não se preocupe por esta deformação, Deus a quer assim”. No ar pairava esperança: começavam a chegar do Brasil as cartas do Padre Manuel de Nóbrega, que exaltavam a salubridade do clima daquelas terras para qualquer tipo de doença. E para aquelas terras Anchieta partiu em 8 de março de 1553, com a terceira expedição de jesuítas que embarcavam com destino ao Brasil. Tinha 19 anos e apenas proferido os primeiros votos.

Logo nos deparamos diante do primeiro paradoxo deste jovem jesuíta: o forte contraste entre a sua fragilidade física e a intensa vitalidade apostólica, que levou em frente ininterruptamente por 44 anos, percorrendo numerosas regiões do Brasil, até a sua morte aos 63 anos.

A vida de José de Anchieta é apostólica e radicalmente evangélica. “Não basta partir de Coimbra – dizia aos seus irmãos enfermos que permaneciam em casa – com o fervor que depois se esvai antes ainda de atravessar a linha (do Equador), ou que bem cedo se resfria e faz surgir o desejo de retornar a Portugal. É necessário levar as mochilas cheias para que as provisões durem até o final do dia”.

Os desafios da missão hoje exigem sempre mais a “revitalização do corpo apostólico” da Companhia. A fonte da vitalidade apostólica de Anchieta era a sua profunda experiência espiritual. A solidez de sua fama de santo e de taumaturgo era baseada no amor, na oração, na humildade e no serviço.

Uma das críticas que lhe foram feitas diante do Visitador, foi de que “fazia muita caridade”. Aos olhos daqueles que o criticavam pelo seu excesso de bondade, estaria na origem o seu modo muito brando de governar. O Padre Gouveia, todavia, não era da mesma opinião. O descreve como “homem fiel, prudente e humilde em Cristo, procurado por todos, ninguém nunca reclamou dele e não me é possível encontrar palavra ou ação em que tenha agido mal”. Sincero amigo de todos, sabia unir a bondade à severidade e à firmeza, como desejava Santo Inácio em todos os bons superiores. Não obstante os seus males, bem visíveis, o provincialado de Anchieta pode ser considerado como um dos mais dinâmicos e rico de frutos do seu tempo.

Dos 44 anos de vida no Brasil, ao menos 40 são caracterizados por uma contínua peregrinação, começando pela região de São Vicente e Piratininga, entre 1554 e 1564, quando teve lugar a fundação e os primeiros anos de vida da cidade de São Paulo. Foi uma mobilidade que não o impediu de dedicar-se às lições de latim e ao estudo mais aprofundado da língua tupi, que o permitia ao mesmo tempo desenvolver uma grande atividade missionária e catequética. Nomeado Provincial em 1557, e posteriormente Superior, visita casas e comunidades: pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e para aqueles que sofriam, conselheiro dos homens de governo, mas, sobretudo, amigo e defensor dos índios e dos seus vilarejos.

Somente em 1595 a obediência o liberou da responsabilidade de governo. Restavam-lhe escassos 2 anos de vida, nos quais encontrou tempo para participar da defesa da Capitania do Espírito Santo contra as incursões dos índios goitacases. O seu último destino foi a cidade de Reritiba. Aqui começou a escrever a “História da Companhia de Jesus no Brasil”, uma preciosa obra que perdeu-se e da qual não permaneceram que fragmentos.

Na base desta vida itinerante não existia certamente nenhum espírito de aventura, mas somente o espírito de disponibilidade para a missão, de liberdade espiritual e de prontidão em buscar e encontrar em cada momento a vontade do Senhor. O acompanhou até o fim um zelo verdadeiramente apostólico. “Visto que não mereço ser mártir para a outra vida – escreve ele mesmo – que ao menos a morte me colha abandonado em alguma destas montanhas, e aqui, dar a vida pelos meus irmãos. A constituição do meu corpo é fraca, mas a graça do Senhor me basta para seguir em frente”.

Não deveria ser a mobilidade – com tudo o que implica de liberdade espiritual, de disponibilidade e capacidade de discernimento e de fazer as escolhas – uma das características indispensáveis do nosso corpo apostólico? O contínuo peregrinar de Anchieta, quase como forma de vida, poderia servir de inspiração também hoje e estimular a nossa busca de mobilidade apostólica, para responder aos desafios que as novas fronteiras nos esperam.

Um traço de grande relevo na figura humana, espiritual e apostólica de José de Anchieta aparece na sua capacidade de organizar estruturalmente a missão, integrando as diversas presenças apostólicas e as diversas dimensões em um só projeto diversificado e complexo, mas único. E ao centro, o amor pelos índios que dá um sentido a tudo: “Sinto os índios – escreve do seu último refúgio em Reritiba – mais próximos do que os portugueses, porque é por eles que vim ao Brasil”

Com o Padre Nóbrega participou da primeira fundação do Rio de Janeiro. A segunda e definitiva fundação não se verificará, senão dois anos após, com a ajuda de uma equipe chegada de Portugal, guiada pelo próprio governador Mem de Sá. Nesta ocasião Anchieta escreveu a sua primeira obra em latim: De gestis Mendi de Saa. A este período, remonta também a sagrada representação intitulada ‘Pregação Universal’, inspirada no cerimonial indígena para a acolhida de pessoas ilustres, com a qual introduzia na língua tupi a técnica dos versos e das estrofes, típicas do teatro português. Soube sempre colocar a serviço da missão os seus extraordinários dotes de perfeito humanista: o seu domínio da gramática, o seu gosto pelos clássicos latinos e a sua habilidade na arte oratória. Com grande fecundidade escreveu em tupi os “Diálogos da fé” (catecismo para instrução dos índios na doutrina cristã), redigiu os opúsculos para a preparação ao Batismo e à Confissão, levou a termo a gramática da língua tupi, a mais usada na zona costeira do Brasil.

Sempre agente de reconciliação, empenhou-se profundamente no diálogo com os índios tamoyos, até o ponto de ser preso como refém e de viver entre eles, sequestrado, por cinco meses. Feita a paz com os tamoios, e liberado, teve ainda a força de retornar a São Vicente e escrever o poema a Virgem: de Beata Virgine Dei Matre Maria. Não se entregou nem mesmo com a falta de papel. Passou a escrever dístico após dístico na areia do mar memorizando mais de 5.800 belíssimos versos.

O folclore popular, adaptado como música religiosa, servia a ele para representações sacras em português e em tupi. A sua atividade para enriquecer o ministério pastoral e catequético entre os índios com representações teatrais nos dias de festa. Considerava indispensável adaptar-se à psicologia indígena.

São muitas as razões que temos para sermos agradecidos ao Papa Francisco de propor ao mundo inteiro, com o novo título de santidade, o exemplo de José de Anchieta. Para a Companhia de Jesus é uma ocasião para retomar com intensidade a busca daqueles horizontes que foram os seus e que são sempre novos: a sensibilidade diante da diversidade étnica e do pluralismo religioso, cultural e social; o desenvolvimento incansável de uma nova liberdade criativa e de uma responsável capacidade de improvisação; a busca de expressões inculturadas à experiência cristã e evangelizadora.

Que este novo intercessor nos ajude a buscar sempre com maior empenho a vontade de Deus e a cumpri-la sem nos cansar".

Adolfo Nicolás, S.J.

Superior General
Roma, 3 abril de 2014









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