São Paulo (RV) - Poucas semanas antes de sua vinda ao Brasil, em julho passado,
o papa Francisco esteve na ilha de Lampedusa, já próxima da África, no sul da Itália;
ali aportam numerosos prófugos da miséria e da violência, procedentes da África e
de outras partes do mundo, sonhando com a vida na Europa. Muitos, de fato, nem
conseguem chegar à terra firme e naufragam, ou são abandonados pelos modernos mercadores
de escravos no meio do Mediterrâneo em barcos abarrotados e sem o mínimo respeito
à sua dignidade. Isso, depois de terem pago caro a alguma organização criminosa pelo
transporte e pela promessa de visto e emprego no lugar de destino. Milhares acabam
morrendo e jogados ao mar, nada diferente do que acontecia durante séculos com os
navios negreiros no período colonial. O Papa jogou flores ao mar para lembrá-los;
ao mesmo tempo, rezou pelos que pereceram e confortou sobreviventes; e denunciou o
tráfico de pessoas como uma atividade ignóbil, uma vergonha para sociedades que se
dizem civilizadas. Diante dessa questão, os governos muitas vezes ficam indiferentes
ou sem ação. Francisco conclamou a todos à superação da “globalização da indiferença”. Desde
tempos imemoriais, o tráfico de pessoas era praticado amplamente e até aceito, geralmente,
em vista do trabalho escravo. O Brasil conviveu por séculos com a escravidão de índios
e africanos; estes últimos eram adquiridos, traficados e comercializados como “coisa”
num mercado vergonhoso, mas florescente. Foram necessários séculos para que a escravidão
fosse formalmente proibida e abolida. Um progresso civilizatório! Mas o problema
voltou, se é que já havia sido erradicado de maneira completa. A forma contemporânea
de escravidão é bem mais difundida e grave do que se poderia imaginar e está sendo
favorecida pela globalização das atividades econômicas ilegais e clandestinas. Hoje,
como no passado, essa atividade criminosa envolve organizações e redes nacionais e
internacionais, com altos ganhos a custos e riscos baixos para os traficantes. O
tráfico de pessoas é praticado em vista de vários âmbitos da economia, legais e ilegais,
como a construção civil, a agricultura, o trabalho doméstico, o entretenimento, a
exploração sexual e, mesmo, a adoção ou a comercialização de órgãos. As vítimas, geralmente,
são atraídas por promessas de trabalho e emprego, boas condições de vida em outras
cidades ou países. Com freqüência, o tráfico de pessoas está ligado ao fenômeno das
migrações e à permanência ilegal e precária em algum país. Capítulo especialmente
doloroso representa o tráfico de crianças e adolescentes, praticado por redes que
envolvem pequenas vítimas do mundo inteiro. Entidades não-governamentais, que acompanham
esta questão, estimam que, na década de 1980, quase 20 mil crianças brasileiras foram
levadas para a adoção no exterior; constataram-se numerosos processos fraudulentos
nessas adoções. No Brasil, há denúncias de tráfico de crianças e adolescentes destinados
à exploração sexual; e continua grande o contingente de crianças de 7 a 14 anos de
idade exploradas no trabalho infantil. Algumas características do tráfico humano
já foram estudadas. Antes de tudo, ele envolve o crime organizado, com uma complexa
estrutura que relaciona meios e fins para facilitar suas atividades; há aliciadores,
fornecedores de documentos falsos e de assistência jurídica, transportadores, lavagem
de dinheiro... Há rotas nacionais e transnacionais do tráfico de mulheres para a exploração
sexual, de trabalhadores ilegais, de crianças, de órgãos. No Brasil, a Região Amazônica
apresenta o maior número dessas rotas, seguida pelo Nordeste. O tráfico de pessoas
é abastecido por hábeis e convincentes aliciadores, que induzem suas vítimas e as
envolvem numa rede, que lhes tira a autonomia e da qual dificilmente conseguem se
libertar. Geralmente, há uma boa proposta de emprego e renda no aliciamento. Por ser
um crime invisível e silencioso, seu enfrentamento é difícil; as vítimas geralmente
não denunciam, uma vez que elas passam a viver em situação de risco e de constrangimento.
Além da vulnerabilidade social e econômica, elas têm sua dignidade degradada. Como
enfrentar essa chaga social, que representa um verdadeiro retrocesso cultural e civilizatório?
Apesar da gravidade do problema, apenas recentemente ele começou a ser enfrentado
seriamente pela sociedade. A partir da segunda metade do século 20, a escravidão no
âmbito do trabalho forçado imposto pelas guerras começou a ser debatida em fóruns
internacionais, de modo especial na Organização Internacional do Trabalho e na ONU.
Com o avanço da globalização, alastrou-se ainda mais o tráfico de pessoas, mas também
a consciência sobre a necessidade de normas adequadas e eficazes para combater esse
tipo de crime. Em 1999, a ONU realizou a Convenção de Palermo, contra o crime organizado
transnacional e seus protocolos estão em vigor desde 2003. O Brasil adotou essa Convenção
em 2006; desde 2008 tem o seu próprio Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. Há numerosas iniciativas de organizações da sociedade civil que se dedicam
ao enfrentamento do tráfico de pessoas. A Igreja também tem suas pastorais voltadas
para essa problemática. Em 2014, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
promoverá, no período que precede a celebração da Páscoa, a Campanha da Fraternidade
sobre o tema do tráfico de seres humanos. Será uma boa ocasião para uma tomada de
consciência mais ampla sobre as dimensões e a gravidade do problema e para suscitar
iniciativas e decisões para enfrentar essa vergonhosa chaga social em nosso País.
(SP-O São Paulo)