Migração na Exortação "Evangelii gaudium" (P. Alfredo Gonçalves)
P. Alfredo Gonçalves, scalabrianiano, comenta a Exortação Apostólica do Papa, no que
diz respeito à Migração: Talvez a história, como é de costume, acabe por cunhar
Jorge Mário Bergoglio como o “Papa da alegria” ou o “Papa do sorriso” e ainda o “Papa
dos pobres, dos últimos”... O que não estaria em dissonância com a trajetória do pobre
de Assis, de quem tomou o nome, e, ao mesmo tempo, traduziria uma das características
da prática de Jesus, o Homem de Nazaré. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A
alegria do Evangelho) que o Pontífice acaba de publicar aponta claramente nessa direção.
O que mais impressiona, porém, é que se trata de uma alegria direcionada justamente
para aqueles que dispõem de menos motivos para sorrir e ou cultivar esse sentimento.
Trata-se, portanto, não de uma alegria aparente, visível ou, digamos, eufórica, e
sim de uma profunda serenidade de coração e de espírito, que nasce da total confiança
em Deus, mesmo nos momentos de adversidade e turbulência. Dimensão social do
Evangelho
Tendo presente esse pano de fundo, vale tentar uma leitura mais
atenta sobre o quarto capítulo do documento, intitulado A dimensão social da evangelização.
O acento desta leitura recairá sobre a situação dos pobres em geral, e dos migrantes
em particular, tendo presente o 126º de Fundação da Congregação dos Missionários de
São Carlos (Scalabrinianos), cujo carisma é justamente o trabalho pastoral junto ao
mundo da mobilidade humana. As migrações constituem hoje um fenómeno estrutural intenso,
complexo e diversificado, comportando sérios desafios de ordem social, económica,
política e religiosa – como lembra a Erga Migrantes Caritas Christi, documento do
Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes. Convém, de início,
sublinhar os temas desenvolvidos no referido capítulo quarto da Evangelii Gaudium:
1) As repercussões comunitárias e sociais do kerygma; 2) inclusão social dos pobres;
3) o bem comum e a paz social; 4) O diálogo social como contribuição para a paz. Como
se pode notar, o Papa Francisco retoma as linhas mestras ou princípios fundamentais
da Doutrina Social da Igreja (DSI) ao longo do tempo, bem como seu fio condutor, isto
é, a defesa dos direitos e da dignidade da pessoa humana. Mas o atual Pontífice acrescenta-lhes
um revestimento especial, uma característica própria de sua índole, uma espécie de
olhar paterno/materno sobre os mais necessitados e os indefesos, como o Bom Pastor
sobre a “ovelha perdida” ou “o homem caído à beira da estrada”. Vejamos isso de mais
perto, transcrevendo, observando e comentando alguns subtítulos desse capítulo. O
primeiro deles revela a consonância intrínseca entre a Confissão da fé e o empenho
social. “Esta indissolúvel ligação entre a acolhida do anúncio salvífico e um efetivo
amor fraterno está expressa em alguns textos da Sagrada Escritura que vale a pena
considerar e meditar atentamente, no sentido de extrair-lhes todas as consequências
(...): ‘tudo aquilo que fizeste a um só destes meus irmãos mais pequenos, foi a mim
que o fizeste’” – diz o texto citando Mt 25,40 (Cfr. EG, nº 179). Na verdade, nada
de novo debaixo do sol! Trata-se de palavras já bem conhecidas, lidas e relidas vezes
sem fim nos atos litúrgicos, momentos de oração e celebrações eucarísticas. Novo aqui
é o fato de reler estas palavras à luz dos gestos, das atitudes e do comportamento
do Papa Francisco desde que foi eleito para a cátedra petrina. O modo de tornar-se
próximo à população que o busca por parte do atual pontífice confere e essas e a outras
palavras do Evangelho uma tonalidade e um colorido todo especial quando. Bastaria
um olhar retrovisor sobre suas audiências e o seu dia-a-dia, para dar-se conta de
como o bispo de Roma privilegia precisamente “i più bisognosi e gli ultimi” (os mais
necessitados e últimos). Unidos a Deus escutemos um grito, nos convida um outro
subtítulo. E o texto precisa: “A Igreja reconheceu que a exigência de escutar este
grito deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, por isso não
se trata de uma missão reservada somente a alguns (...). A solidariedade é uma reação
espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e a destinação universal
dos bens como realidade anterior à propriedade privada” (Cfr. EG, nº 188-9). “Às vezes
se trata de escutar o grito de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque
‘a paz fundamenta-se não só sobre o respeito dos direitos humanos, mas também sobre
os direitos dos povos’ – DSI” (Cfr. EV, nº 190). Quantas vezes, no interior da Igreja,
nos contentamos em acompanhar o fã clube dos fiéis que participam das práticas e atividades
comus (o que, evidentemente, não deixa de ser importante), mas ignoramos quase por
completo o lamento que vem do lado de fora dos muros eclesiais. Ignoramos ou nos tornamos
indiferentes apelo das periferias e dos porões da sociedade, tanto mais eloquente
quanto mais silencioso ou silenciado. Mais adiante encontramos um subtítulo que,
a bem da verdade, atravessa toda a trajetória judaico-cristã, desde a antiga até a
nova aliança, desde o Antigo ao Novo Testamento – passando também pela trajetória
da Igreja (não obstante seu lado obscurantista). Trata-se da expressão O rosto privilegiado
dos pobres no Povo de Deus: “Para a Igreja a opção preferencial pelos pobres é uma
categoria teológica, antes que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus
concede a eles a sua primeira bem-aventurança. Esta preferência tem consequências
na vida de fé de todos os cristãos, chamados a ter “os mesmos sentimentos de Jesus’”
(Fil, 2,5). Inspirada nessa misericórdia divina, “a Igreja fez uma opção pelos pobres
entendida como uma ‘forma especial de primazia no exercício da caridade cristã, da
qual dá testemunho toda a tradição da Igreja’” (Cfr. EG, nº 198). O Papa retoma o
horizonte largo, aberto e promissor não só do Concílio Ecuménico Vaticano II, mas
de forma especial dos documentos das Assembleias dos bispos da América Latina e Caribe
(Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida). O cuidado paterno/materno com
os mais frágeis
Com o subtítulo O ensinamernto da Igreja sobre a questão
social, o Papa retoma uma preocupação que nasce no decorrer do século XX, em pleno
contexto da Revolução Industrial, com seus avanços tecnológicos e suas consequências
de ordem socioeconómica. De fato, a chamada “questão social”, particularmente sob
a forma de “condição dos operários”, é tema não somente de um estudo de Frederic Engels
sobre os trabalhadores nas cidades da Inglaterra (1944) e do Manifesto Comunista de
Marx e Engels (1948), como também subtítulo da Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1991),
encíclica que inaugura a Doutrina Social da Igreja, tendo no coração a situação concreta
das condições de trabalho e moradia dos operários da indústria nascente. “Em consequência”
– afirma a exortação pontifícia – “ninguém pode dizer que nós ligamos a religião à
secreta intimidade das pessoas, sem alguma influência sobre a vida social e nacional,
sem preocupar-se pela saúde das instituições da sociedade civil, sem exprimir-se sobre
os acontecimentos que interessam os cidadãos. Quem ousaria fechar-se no tempo e fazer
calar a mensagem de São Francisco de Assis e da bem-aventurada Teresa de Calcutá.
Esses não poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que jamais será cómoda e individualista
– implica sempre um profundo desejo de transformar o mundo, de transmitir valores,
de deixar algo de melhor depois de nossa passagem sobre a terra” (Cfr. EG, nº 183). Cabe
aqui um rápido recuo no documento, detendo-nos por um pouco no tema que desenvolve
Alguns desafios do mundo atual, especificamente no subtítulo do primeiro capítulo,
denominado Não a uma economia da exclusão. Escreve textualmente o Papa: “Assim como
o mandamento “não matar” coloca um limite claro para assegurar o valor da vida humana,
hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da iniquidade’. Esta economia
mata (...). Isto é exclusão. Não se pode mais tolerar o fato que se jogue fora a comida,
quando há gente que sore de fome. Isto é iniquidade. Hoje tudo entra no jogo da competividade
e da lei do mais forte, onde o poderoso come o mais débil. Como consequência desta
situação, grandes massas de população se vêm excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectiva, sem via de saída. Considera-se o ser humano em si mesmo como bem
de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Demos início à cultura do ‘descartável’,
a qual, além do mais, acaba sendo promovida” (Cfr. EG, nº 53). Em perfeita sintonia
com o Documento de Aparecida, utilizando não o conceito sociológico de exploração,
mas de exclusão social, prossegue o texto: “Não se trata mais simplesmente da exploração
e da opressão, mas de algo novo: com a exclusão, torna-se atingida na sua própria
raiz, a pertença à sociedade na qual se vive, desde o o momento em que nessa não se
está nem nos porões, nem na periferia, ou sem poder, mas se está fora. Os excluídos
não são ‘explorados’, mas recusados, ‘descartados’” (Cfr, EG, nº 53). Migrantes,
refugiados, exilados, sem pátria
Retomando a linha do capítulo quarto,
o Pontífice nos convida a Tomar cuidado da fragilidade: “É indispensável prestar atenção
para estar vizinhos às novas formas de pobreza e de fragilidade, onde somos chamados
a reconhecer Cristo sofredor, mesmo se isso aparentemente não nos traz vantagens imediatas:
os sem teto, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os anciãos cada
vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes me colocam um desafio particular porque
sou Pastor de uma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso exorto
os países a uma generosa abertura, que em vez de temer a destruição da identidade
local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades” –
continua o Papa Francisco, com forte acento sobre um desejo que o domina – “que superam
a desconfiança maligna e integram os diferentes, e que fazem de tal integração um
novo fator de desenvolvimento! Como são belas as cidades que, mesmo no seu desenho
arquitetónico, estão cheias de espaços que entrelaçam, põem em relação, favorecem
o reconhecimento do outro” (Cfr. EG, nº 210). Depois de sublinhar a situação generalizada
de milhões de sem pátria, o texto se detém sobre uma temática bem específica, tema
da Campanha da Fraternidade de 2013, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB) durante o temo da Quaresma. “Faz-me sofrer a situação daqueles que
são objeto das diversas formas de tráfico de pessoas. Gostaria que se escutasse o
grito de Deus que pergunta a todos nós ‘Onde está o teu irmão?’ (Gn 4,9). Onde está
o teu irmão escravo? Onde está aquele que você está matando cada dia na pequena fábrica
clandestina, na rede da prostituição, nas crianças que você alicia para exploração,
naqueles que devem trabalhar escondidos porque não encontram-se em situação irregular?
Não façamos de conta que nada existe. Existem muitas complicações. A pergunta se impõe
para todos! Nas nossas cidades está implantado este crime mafioso e aberrante, e muitos
têm as mãos que gotejam sangue por causa de uma cumplicidade cómoda e muda” (Cfr.
EG, nº 211). Retomando um tema caro à Populorum Progressio de Paulo VI (1967) e
à Solicitudo Rei Socialis de João Paulo II (1987), o Papa Francisco diz “que a paz
social não pode ser entendida como inércia ou como uma mera ausência de violência,
obtida mediante a imposição de uma parte sobre a outra. Seria igualmente uma falsa
paz aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização social que tenha
como meta fazer calar ou tranquilizar os mais pobres, de modo que aqueles que gozam
de maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem abalos, enquanto os outros
sobrevivem como podem” (Cfr. EG, nº 218). Vem à tona, como nas encíclicas precedentes
acima citadas, o contraste flagrante entre o progresso tecnológico e o crescimento
económico, nos países e regiões centrais ou desenvolvidas, de um lado, e, de outro,
os países ou regiões periféricas e subdesenvolvidas. Contraste que se agrava com a
concentração de renda e riqueza ao lado da exclusão social, o desperdício e a “idolatria
do consumo” ao lado da pobreza e da fome, o luxo ao lado da miséria – todos fatores
de deslocamento de massa, especialmente do sul pobre do planeta em direção ao norte
rico. “As reivindicações sociais” – continua o Santo Padre – “que têm a ver com
a distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos, não
podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso sobre a mesa ou uma efémera
paz para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão acima
da tranquilidade de alguns que não querem renunciar a seus privilégios. Quando estes
valores são sacrificados, faz-se necessária uma voz profética” (Cfr. EG, nº 218).
Voz que, no caso do atual pontífice, se faz “carne”: gesto, presença, solidariedade,
como por exemplo, na visita à ilha de Lampedusa, ponto de chegada dos refugiados e
prófugos da África e Oriente Médio, numa tentativa de chegar à Europa. Citando
literalmente a Populorum Progressio (PP), conclui o Papa Francisco: “A paz ‘não se
reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Ela
se constrói dia a dia, perseguindo uma ordem que está na vontade de Deus, a qual comporta
uma justiça mais perfeita entre os homens’. Definitivamente, uma paz que não emerge
como fruto do desenvolvimento integral de todos, sequer terá futuro e será sempre
causa de novos conflitos e de várias formas de violência” (Cfr. nº 219). Conflitos
e violência que, como sabemos, constituem frequentemente a causa imediata de tantos
deslocamentos humanos. Evidente que o desenvolvimento entendido como “novo nome
da paz”, para usar uma expressão basilar da encíclica PP, evitaria a migração desesperada
de tantos jovens, de ambos os sexos, boa parte de nível superior, em busca de melhores
condições de vida fora do país em que nasceram. Fuga, hemorragia ou circulação de
cérebros, o fato é que esse movimento de massa tende a aprofundar o desequilíbrio
entre as nações, tornando os fortes mais fortes e os fracos mais fracos. É a lei da
seleção natural, de Darwin, aplicada no contexto socioeconómico da globalização. Ao
“direito de ir e vir” assegurado a todo cidadão, corresponde o “direito de ficar”
– de construir o próprio futuro e o da família na pátria de nascimento. Um e outro,
de qualquer forma, devem estar subordinados a uma cidadania mais ampla e sem fronteiras
que inclui o mundo como pátria universal, como lugar de passagem e antecipação do
Reino definitivo e eterno.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs Roma, Itália, 28
de novembro de 2014, 126º aniversário de fundação da Congregação dos Missionários
dos Migrantes (Scalabrinianos)