Texto da Exortação Apostólica do Papa Francisco - Capítulos III e seguintes
Capítulo III O ANÚNCIO DO EVANGELHO
110. Depois de considerar alguns desafios
da realidade actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e
qualquer época e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio
explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo
em qualquer trabalho de evangelização». Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos,
João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial,
então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio
da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta».
Isto é válido para todos.
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
111. A
evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que
uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para
Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade, mas tem
a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende
toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta
forma de compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa livre
e gratuita de Deus.
Um povo para todos
112. A salvação, que Deus nos
oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor que seja, que
nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si.
Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos, para nos transformar
e tornar capazes de responder com a nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada por
Jesus Cristo como sacramento da salvação oferecida por Deus. Através da sua acção
evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça divina, que opera incessantemente
para além de toda e qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir
as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa
verdadeira, a actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa
divina, só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar também – com Ele
e n'Ele – evangelizadores». O princípio da primazia da graça deve ser um farol que
ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização.
113. Esta
salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos, e Deus
criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de todos os tempos. Escolheu
convocá-los como povo, e não como seres isolados. Ninguém se salva sozinho, isto é,
nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito
da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe.
Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos
para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei
discípulos de todos os povos» (Mt 28, 19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na
Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal
3, 28). Eu gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos
que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu
povo, e fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja significa ser povo
de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento
de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este
nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem,
dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia
gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
Um povo com muitos rostos
115. Este
Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria.
A noção de cultura é um instrumento precioso para compreender as diversas expressões
da vida cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma determinada
sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre
si, com as outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade
da vida dum povo. Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura
com legítima autonomia. Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por
sua natureza, necessita absolutamente da vida social» e mantém contínua referência
à sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com a realidade. O
ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente
ligadas». A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o
recebe.
116. Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade
inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a
segundo as próprias modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe o anúncio
da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do
Evangelho. E assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe
de um único modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio
evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas
culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar». Nos diferentes povos,
que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína
catolicidade e mostra «a beleza deste rosto pluriforme». Através das manifestações
cristãs dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos
aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja
«introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade», porque «cada cultura
oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é
pregado, compreendido e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas
culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com suas jóias
(cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça
a unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma
os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima
Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e
a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre
o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e,
ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia
que atrai. A evangelização reconhece com alegria estas múltiplas riquezas que o Espírito
gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural
e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação
do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não
se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização
de novas culturas ou de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é indispensável
impor uma determinada forma cultural, por mais bela e antiga que seja, juntamente
com a proposta do Evangelho. A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem
cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura,
o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118. Os
Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão
e exposição da verdade de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram
todos os missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir
que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas
a cada cultura». Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes,
ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num
determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites
de compreensão e expressão duma cultura. É indiscutível que uma única cultura não
esgota o mistério da redenção de Cristo.
Todos somos discípulos missionários
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora
do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção,
que o torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda
que não encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo
à salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade
dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que
vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade
com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente,
embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120. Em
virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário
(cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja
e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado
pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o
resto do povo fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve
implicar um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se
num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de
evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que
o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode
esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário
na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais
que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários».
Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo
depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria:
«Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo
com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido
às palavras da mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus
Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act
9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos chamados a crescer
como evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento
do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos
deixar que os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos
renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda
à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a dar aos outros o
testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições,
nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida.
O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste,
o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros.
A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo
constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O
testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São
Paulo: «Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o
alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
A força evangelizadora
da piedade popular
122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos,
nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da
evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista
da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria constantemente,
e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas
situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios.
O ser humano «é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando
o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também
transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da evangelização entendida
como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus
segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas
expressões que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente
a si mesmo». Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da actividade
missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento,
cujo protagonista é o Espírito Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar
a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se.
Vista por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização nas
décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi
Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade
popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem
experimentar» e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas
para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé». Já mais perto
dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um «precioso
tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo
explicita na piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente,
onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular,
os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se
de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples». Não é vazia
de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso
da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere in Deum que o credere
Deum. É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja
e uma forma de ser missionários»; comporta a graça da missionariedade, do sair de
si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a outras
pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador». Não coarctemos nem pretendamos controlar
esta força missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso
abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir
da conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente
na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães
ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar
os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende,
numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo
crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas acções unicamente como
uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida teologal animada pela
acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5).
126. Na
piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força activamente
evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo.
Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo
de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade popular
têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos
prestar atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
De
pessoa a pessoa
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação
missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária:
é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos
como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa,
e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa
ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente
em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação,
sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra
pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações
com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa
é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de
modo narrativo, mas sempre recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus
que Se fez homem, entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e
a sua amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de
quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda
que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através
dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito
Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente e houver condições,
é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se
relacione com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente
que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá
que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se
deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas
fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente
invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível descrevê-las
ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais
inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica
apenas através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos
países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar
o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos
incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho,
expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese
com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos
demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível
que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar
qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos
com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas
ao serviço da comunhão evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece toda
a Igreja evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar
a Igreja. Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que o guarde;
mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro
que é Cristo, donde são canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade
dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente
na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada
pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para
se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do
Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja
fadigosa, que um carisma se revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este
desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças
entre as pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito Santo, que
suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo
evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada com
a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade
e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos
a diversidade e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos
a divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com
os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não
ajuda a missão da Igreja.
Cultura, pensamento e educação
132. O anúncio
às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e académicas.
É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso
sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as predisposições
para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas categorias da razão e
das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos
de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido,
não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o
mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por chegar
a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu conjunto, a teologia
– e não só a teologia pastoral – em diálogo com outras ciências e experiências humanas
tem grande importância para pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade
dos contextos culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na evangelização,
aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica,
que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos
para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da Igreja. Mas, para
isso, é necessário que tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria
teologia, e não se contentem com uma teologia de gabinete.
134. As universidades
são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização
de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram conjugar
a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem uma contribuição
muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma situação
adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os caminhos adequados.
2.
A homilia
135. Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer
uma séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com
certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações
relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A homilia
é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um
Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e,
muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir
e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma
experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma
fonte constante de renovação e crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança
na pregação, que se funda na convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros
através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana. São
Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor quis chegar
aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso
Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf.
Mc 1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam
que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus
estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram
para o seio da Igreja todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O contexto
litúrgico
137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra
de Deus, principalmente no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um momento
de meditação e de catequese, como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual
se proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente as exigências da
Aliança». Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu contexto eucarístico,
que supera toda a catequese por ser o momento mais alto do diálogo entre Deus e o
seu povo, antes da comunhão sacramental. A homilia é um retomar este diálogo que já
está estabelecido entre o Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração
da sua comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também
onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A
homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos
recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração. É um género peculiar,
já que se trata de uma pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte,
deve ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O pregador
pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas assim
a sua palavra torna-se mais importante que a celebração da fé. Se a homilia se prolonga
demasiado, lesa duas características da celebração litúrgica: a harmonia entre as
suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se
como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama
na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também
o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto
requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor brilhe
mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o povo de Deus,
pela acção constante do Espírito nele, se evangeliza continuamente a si mesmo. Que
implicações tem esta convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e prega
ao povo como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho tem confiança de que tudo
o que se lhe ensina é para seu bem, porque se sente amado. Além disso, a boa mãe sabe
reconhecer tudo o que Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações e aprende
com ele. O espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos
seus diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é bom; assim
deve acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os Evangelhos e actua no
povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do povo e como se deve pregar
em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã encontra, no coração da cultura do
povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se deve dizer como para encontrar
o modo mais apropriado para o dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na nossa
língua materna, assim também, na fé, gostamos que nos falem em termos da «cultura
materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac 7, 21.27), e o coração dispõe-se
a ouvir melhor. Esta linguagem é uma tonalidade que transmite coragem, inspiração,
força, impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo
do Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através da proximidade cordial
do pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão do estilo das suas frases, da
alegria dos seus gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver
este espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os conselhos maçantes
duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos filhos.
141. Ficamos
admirados com os recursos empregues pelo Senhor para dialogar com o seu povo, revelar
o seu mistério a todos, cativar a gente comum com ensinamentos tão elevados e exigentes.
Creio que o segredo de Jesus esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além das
suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai
dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este espírito. Transbordando de alegria
no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor
do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e
as revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar
com o seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras
que abrasam os corações
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma
verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através
das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas
próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente moralista
ou doutrinadora e também a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação
entre os corações que se verifica na homilia e que deve ter um carácter quase sacramental:
«A fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Na
homilia, a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se trata de verdades
abstractas ou de silogismos frios, porque se comunica também a beleza das imagens
que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem. A memória do povo fiel, como
a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração, esperançado
na prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que toda a palavra
na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O desafio duma pregação inculturada
consiste em transmitir a síntese da mensagem evangélica, e não ideias ou valores soltos.
Onde está a tua síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer luz com sínteses
e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há entre o ardor do coração e o tédio.
O pregador tem a belíssima e difícil missão de unir os corações que se amam: o do
Senhor e os do seu povo. O diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança
entre ambos e estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações
dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se
de mil e uma maneiras directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem que
alguém sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois, cada um
possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra é, essencialmente, mediadora
e necessita não só dos dois dialogantes mas também de um pregador que a represente
como tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o
Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144. Falar
com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas também iluminado pela integridade
da Revelação e pelo caminho que essa Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso
povo fiel ao longo da sua história. A identidade cristã, que é aquele abraço baptismal
que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar, como filhos pródigos – e predilectos
em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso que nos espera na glória. Fazer
com que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio destes dois abraços é a tarefa
difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
3. A preparação da pregação
145. A
preparação da pregação é uma tarefa tão importante que convém dedicar-lhe um tempo
longo de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral. Com muita amizade, quero
deter-me a propor um itinerário de preparação da homilia. Trata-se de indicações que,
para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las para recordar
a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a este precioso ministério. Alguns
párocos sustentam frequentemente que isto não é possível por causa de tantas incumbências
que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a
esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se tenha
de dar menos tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no Espírito Santo
que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa e criativa. Implica oferecer-se
como instrumento (cf. Rm 12, 1), com todas as próprias capacidades, para que possam
ser utilizadas por Deus. Um pregador que não se prepara não é «espiritual»: é desonesto
e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
O culto da verdade
146. O
primeiro passo, depois de invocar o Espírito Santo, é prestar toda a atenção ao texto
bíblico, que deve ser o fundamento da pregação. Quando alguém se detém procurando
compreender qual é a mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade». É a humildade
do coração que reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que somos, «não os árbitros
nem os proprietários, mas os depositários, os arautos e os servidores». Esta atitude
de humilde e deslumbrada veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la com
o máximo cuidado e com um santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um
texto bíblico, faz falta paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo,
interesse e dedicação gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete,
para entrar noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto
bíblico, se aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou imediatos.
Por isso, a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito
e sem pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que
quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o tempo que for necessário,
com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em
primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o significado
das palavras que lemos. Quero insistir em algo que parece evidente, mas que nem sempre
é tido em conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três mil anos, a sua
linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais que nos pareça termos entendido
as palavras, que estão traduzidas na nossa língua, isso não significa que compreendemos
correctamente tudo o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os vários
recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras que se repetem
ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum texto, considerar
o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender todos
os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a mensagem principal,
a mensagem que confere estrutura e unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço,
é possível que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será
apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar os
outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente transmitir, o que
implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que esse autor quis produzir.
Se um texto foi escrito para consolar, não deveria ser utilizado para corrigir erros;
se foi escrito para exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi escrito
para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar várias opiniões
teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos
para informar sobre as últimas notícias.
148. É verdade que, para se entender
adequadamente o sentido da mensagem central dum texto, é preciso colocá-lo em ligação
com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja. Este é um princípio
importante da interpretação bíblica, que tem em conta que o Espírito Santo não inspirou
só uma parte, mas a Bíblia inteira, e que, nalgumas questões, o povo cresceu na sua
compreensão da vontade de Deus a partir da experiência vivida. Assim se evitam interpretações
equivocadas ou parciais, que contradizem outros ensinamentos da mesma Escritura. Mas
isto não significa enfraquecer a acentuação própria e específica do texto que se deve
pregar. Um dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não poder
transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
A personalização da
Palavra
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade
pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético,
sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante,
a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma
nova mentalidade». Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o nosso ardor na preparação
da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o amor pela Palavra que pregamos.
É bom não esquecer que, «particularmente, a maior ou menor santidade do ministro influi
sobre o anúncio da Palavra». Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens,
mas a Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo
de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma
maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt
12, 34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no coração do povo,
se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com
pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus
mas não se deixavam iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos
aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4).
E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam
ser mestres, sabendo que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser
pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne
na sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e fecunda
que é «comunicar aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto, antes de preparar
concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro
trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra
viva e eficaz, que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e do corpo, das
articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb
4, 12). Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as
testemunhas: «Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem
de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».
151. Não
nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo
profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável
é que o pregador esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de
que o seu amor tem sempre a última palavra. À vista de tanta beleza, sentirá muitas
vezes que a sua vida não lhe dá plenamente glória e desejará sinceramente corresponder
melhor a um amor tão grande. Todavia, se não se detém com sincera abertura a escutar
esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte,
mobilize, se não dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será
um falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que reconheça
a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus Cristo, dizendo
como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O
Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar
pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar realmente através
do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando posse de todo o seu ser. O Espírito
Santo, que inspirou a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age
em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na sua
boca as palavras que ele sozinho não poderia encontrar».
A leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor nos quer
dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la por «lectio
divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir
que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está separada do estudo
que o pregador realiza para individuar a mensagem central do texto; antes pelo contrário,
é dela que deve partir para procurar descobrir aquilo que essa mesma mensagem tem
a dizer à sua própria vida. A leitura espiritual dum texto deve partir do seu sentido
literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe convém,
o que serve para confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios
esquemas mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para proveito próprio
e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que, por
vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na
presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo:
«Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha
vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?»;
ou então: «De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me
atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é normal ter tentações. Uma delas é simplesmente
sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum
é começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à
própria vida. Acontece também começar a procurar desculpas, que nos permitam diluir
a mensagem específica do texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige uma decisão
demasiado grande, que ainda não estamos em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas
a perderem a alegria do encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer que
ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe esperar como Ele.
Deus convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta completa, se ainda
não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos com sinceridade
a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos, que estejamos
dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
À
escuta do povo
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir
aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e
também um contemplativo do povo. Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas
e as limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam
este ou aquele aglomerado humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus
sinais e símbolos e respondendo aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar
a mensagem do texto bíblico com uma situação humana, com algo que as pessoas vivem,
com uma experiência que precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por
uma atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral.
No fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem
de Deus», e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer. Procura-se
descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias». Então a preparação da
pregação transforma-se num exercício de discernimento evangélico, no qual se procura
reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação
histórica: também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca,
é possível recorrer apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo,
a alegria dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia,
a incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz falta
intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem a ver com
a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a perguntas que ninguém
se põe, nem convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse; para isso,
já existem os programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum facto
para que a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração,
a atitudes concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes, que
algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas nem
por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
156. Alguns
acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam
o como, a forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não
os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a forma
adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância do
conteúdo da evangelização não deve esconder a importância dos métodos e dos meios
da mesma evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude
profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas as
nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas também é um exímio
exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de má qualidade.
Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo
a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em poucas
palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos
práticos que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos esforços
mais necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é, a falar por imagens.
Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer explicar,
mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens
ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem fascinante
faz com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo, possível, relacionado
com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem que se
quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma
boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento,
uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação
e dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada».
A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários
compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente que
os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes,
mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras próprias
da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para a maioria dos
cristãos. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar
que todos os outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem
dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso
partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza
são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara a
pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de lógica,
ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário é
procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e ligação entre as
frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar a lógica
do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz
tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E,
se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia,
para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma
pregação positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros
da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam periodicamente
para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
4.
Uma evangelização para o aprofundamento do querigma
160. O mandato missionário
do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir
tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê claramente que o primeiro
anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de amadurecimento. A evangelização
procura também o crescimento, o que implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto
que Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização
não deveria deixar que alguém se contente com pouco, mas possa dizer com plena verdade:
«Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161. Não
seria correcto que este apelo ao crescimento fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente,
como formação doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como
resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele mandamento
novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: «É este
o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente
que, quando os autores do Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a
uma última síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do
amor ao próximo: «Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está
o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o mandamento
do amor não só resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda
a lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo»
(Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como um caminho de crescimento
no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros
e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei
do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8),
acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto, este caminho de resposta
e crescimento aparece sempre precedido pelo dom, porque o antecede aquele outro pedido
do Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A adopção como filhos que o Pai
oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4,
7) são a condição que torna possível esta santificação constante, que agrada a Deus
e Lhe dá glória. É deixar-se transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de acordo
com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma catequese querigmática e mistagógica
163. A
educação e a catequese estão ao serviço deste crescimento. Já temos à disposição vários
textos do Magistério e subsídios sobre a catequese, preparados pela Santa Sé e por
diversos episcopados. Lembro a Exortação Apostólica Catechesi tradendae (1979), o
Directório Geral para a Catequese (1997) e outros documentos cujo conteúdo, sempre
actual, não é necessário repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações
que me parece oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na
catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar
o centro da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial.
O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos
faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica
a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar sempre o primeiro
anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo
todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro»
este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece
ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo,
porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes
maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante
a catequese, em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também «o sacerdote, como
a Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado».
165. Não
se deve pensar que, na catequese, o querigma é deixado de lado em favor duma formação
supostamente mais «sólida». Nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais
consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a formação cristã é, primariamente,
o aprofundamento do querigma que se vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne, que
nunca deixa de iluminar a tarefa catequética, e permite compreender adequadamente
o sentido de qualquer tema que se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta
ao anseio de infinito que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigma
requer certas características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte:
que exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que
não imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela alegria, o
estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza a pregação a
poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto exige do evangelizador
certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio: proximidade, abertura ao diálogo,
paciência, acolhimento cordial que não condena.
166. Outra característica
da catequese, que se desenvolveu nas últimas décadas, é a iniciação mistagógica, que
significa essencialmente duas coisas: a necessária progressividade da experiência
formativa na qual intervém toda a comunidade e uma renovada valorização dos sinais
litúrgicos da iniciação cristã. Muitos manuais e planificações ainda não se deixaram
interpelar pela necessidade duma renovação mistagógica, que poderia assumir formas
muito diferentes de acordo com o discernimento de cada comunidade educativa. O encontro
catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma
ambientação adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da
sua inserção num amplo processo de crescimento e da integração de todas as dimensões
da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda
a catequese preste uma especial atenção à «via da beleza (via pulchritudinis)». Anunciar
Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro e
justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria
profunda, mesmo no meio das provações. Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira
beleza podem ser reconhecidas como uma senda que ajuda a encontrar-se com o Senhor
Jesus. Não se trata de fomentar um relativismo estético, que pode obscurecer o vínculo
indivisível entre verdade, bondade e beleza, mas de recuperar a estima da beleza para
poder chegar ao coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do
Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo, o Filho
feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente amável e atrai-nos para Si
com laços de amor. Por isso, torna-se necessário que a formação na via pulchritudinis
esteja inserida na transmissão da fé. É desejável que cada Igreja particular incentive
o uso das artes na sua obra evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado,
mas também na vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir
a fé numa nova «linguagem parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos
sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas
formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas
modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os
evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros.
168. Relativamente
à proposta moral da catequese, que convida a crescer na fidelidade ao estilo de vida
do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade,
de realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a nossa denúncia dos
males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em diagnósticos apocalípticos
ou juízes sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que
nos possam ver como mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da
beleza que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
O acompanhamento pessoal
dos processos de crescimento
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo
anonimato e, simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente
doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para
contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias.
Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente
a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá
iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento»,
para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do
outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade,
com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte
e anime a amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento
espiritual deve conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira
liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta
que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde sempre possam
voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente
ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento seria contraproducente,
caso se tornasse uma espécie de terapia que incentive esta reclusão das pessoas na
sua imanência e deixe de ser uma peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje
mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência
de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão,
a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas
a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar
na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro,
é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe
um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra
oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta
escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento
genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente
ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria
vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás
de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das
virtudes «por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem. Por outras palavras,
as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos
possam dificultar as operações desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma
pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério».
Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas sejam capazes
de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com
uma paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de Deus».
172. Quem
acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa diante de Deus e a sua vida
em graça é um mistério que ninguém pode conhecer plenamente a partir do exterior.
O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do reconhecimento
da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas sem proferir juízos sobre
a sua responsabilidade e culpabilidade (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como for, um
válido acompanhante não transige com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre
convida a querer curar-se, a pegar no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar
tudo e partir sem cessar para anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos
acompanhar e curar, conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem
nos acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros e habilita-nos
a encontrar as formas para despertar neles a confiança, a abertura e a vontade de
crescer.
173. O acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue
no âmbito do serviço à missão evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e Tito
é exemplo deste acompanhamento e desta formação durante a acção apostólica. Ao mesmo
tempo que lhes confia a missão de permanecer numa cidade concreta para «acabar de
organizar o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os critérios para
a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é claramente distinto de todo o tipo
de acompanhamento intimista, de auto-realização isolada. Os discípulos missionários
acompanham discípulos missionários.
Ao redor da Palavra de Deus
174. Não
é só a homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a evangelização está
fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A
Sagrada Escritura é fonte da evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente
na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar.
É indispensável que a Palavra de Deus «se torne cada vez mais o coração de toda a
actividade eclesial». A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia,
alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho
evangélico na vida diária. Superámos já a velha contraposição entre Palavra e Sacramento:
a Palavra proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento,
essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura
deve ser uma porta aberta para todos os crentes. É fundamental que a Palavra revelada
fecunde radicalmente a catequese e todos os esforços para transmitir a fé. A evangelização
requer a familiaridade com a Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias
e todos os grupos católicos proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam
igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária. Nós não procuramos Deus tacteando,
nem precisamos de esperar que Ele nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou,
já não é o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro sublime
da Palavra revelada!
Capítulo IV A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176.
Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial
e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que
é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão social da
evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for devidamente explicitada,
corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
1.
As repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O querigma possui um
conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária
e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão
moral imediata, cujo centro é a caridade.
Confissão da fé e compromisso social
178. Confessar
um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere
uma dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana
significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar
que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor
sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido social,
porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações
sociais entre os homens». Confessar que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer
que Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito
Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer
os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização procura
colaborar também com esta acção libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade
nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos
realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos
a conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente
exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio,
que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica,
provoca na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e fundamental reacção: desejar,
procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre
a recepção do anúncio salvífico e um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos
da Escritura, que convém considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as
consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos habituamos e repetimos quase
mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida
e nas nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva
a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade
e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento permanente
da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos
mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem
uma dimensão transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos»
(Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos
como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis,
e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...).
A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos,
exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como um dos
dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o sinal mais
claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta à doação
absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma
dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria
essência». Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente
dessa natureza a caridade efectiva para com o próximo, a compaixão que compreende,
assiste e promove.
O Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras,
fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com
Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma
de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia
constituir uma «caridade por receita», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar
a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar
a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida
social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.
Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências
sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça,
e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é instaurar
o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do
Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós,
abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha
a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». Sabemos
que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse em consideração a interpelação
recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social,
dos homens». É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado
que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação consiste em
«submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O
mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16,
15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação
dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa também todos os aspectos
da vida humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem
destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência,
todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano
pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico,
gera sempre história.
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os
ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou
novos desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão, mas não podemos evitar de
ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios
sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar
as suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas complexas
situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências,
têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas,
dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser
humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado e
serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade
dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque
Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos possam
usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que
diz respeito à ordem social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte,
ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas,
sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam
aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco
de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica
– que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem
por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade
que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças,
com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos.
Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a
Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos,
incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor.
É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo
e construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de ser
um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo,
«une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o
momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo actual,
algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social
e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito
apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente
recomendo. Além disso, nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação
da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos.
Posso repetir aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações,
assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única,
como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa,
nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objectividade,
a situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei concentrar-me
sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais neste momento da história.
Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão determinar o
futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão
da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
186. Deriva
da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados,
a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
Unidos
a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados
a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que
possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para
ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir
como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que
está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade,
os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...»
(Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel
clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar
surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos
fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra
ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de solidariedade,
nas suas necessidades, influi directamente sobre a nossa relação com Deus: «Se te
amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4,
6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo
o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode
permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São
Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes,
aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos
ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).
188. A Igreja
reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra libertadora
da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a
alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta
o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças». Nesta linha, se
pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer»
(Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da
pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples
e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora
um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade»
significa muito mais do que alguns actos esporádicos de generosidade; supõe a criação
duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de
todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A solidariedade
é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino
universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada
dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o
bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao
pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando
se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis.
Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que
essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às
vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra,
porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito
pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados
como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos
dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade,
e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento
não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os
mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar,
com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente
dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos
outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade
que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos
são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem
se expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e
esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações
das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo
o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para
todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava
com a prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o
nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso
«sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».
Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque,
no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece
a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens
que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao Evangelho, para não correr
em vão
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós,
quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos
a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem
vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia
para com os outros permite-nos sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei
como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não
pratica a misericórdia, será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme
o julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que
tinha de mais rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial
valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas iniquidades,
pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar a tua prosperidade»
(Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura sapiencial fala da esmola como exercício
concreto da misericórdia para com os necessitados: «A esmola livra da morte e limpa
de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá:
«A água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma
síntese no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor
cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade
dos Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética como alternativa cultural
face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em
perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos
fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim,
quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos
por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual podemos extinguir o
incêndio».
194. É uma mensagem tão clara, tão directa, tão simples e eloquente
que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja
sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas
antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples?
As elaborações conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade que pretendem
explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas
que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso,
à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento
do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão
claro? Não nos preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas também com ser
fiéis a este caminho luminoso de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos
defensores da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade
culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que
mantêm estas situações».
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém
para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave
de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2,
10). Este critério importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar
pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande actualidade no contexto
actual em que tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza
do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que
nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança
fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos,
extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distracção que esta sociedade
oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afecta a todos, pois «alienada
é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo,
torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração de
Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre»
(2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta
salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação perdida
na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num presépio, entre animais, como
sucedia com os filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois
pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24;
Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para
ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de deserdados,
pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está sobre
Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A quantos sentiam
o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago
do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20);
e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia
para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção
pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou
filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles. Esta preferência
divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem
«os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência,
a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado
na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como ensinava
Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre
por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso, desejo uma Igreja pobre para
os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas
suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos
evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica
das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir
Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser
seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que
Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste
exclusivamente em acções ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito
põe em movimento não é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada
ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início
duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente
o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de
ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo,
permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo,
independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra,
depende que lhe dê algo de graça». Quando amado, o pobre «é estimado como de alto
valor», e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de
qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos.
Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente
no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em
cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz
apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio
do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido
ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente
nos apresenta».
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja
Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres
é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura
à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho
de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém
deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam
prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes
académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se possa
dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a transformação
das diversas realidades terrenas para que toda a actividade humana seja transformada
pelo Evangelho, ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela
justiça social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo,
o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos
a todos». Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns comentários,
sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos caminhos
para acolher esta renovada proposta.
Economia e distribuição das entradas
202. A
necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas
por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também
para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas
crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam
considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados
os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão
os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos
males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões
que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices
adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas
de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para
este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial,
molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos
de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um
Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas
palavras se tornam objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença
diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado.
A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com
o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.
204. Não
podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento
equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer
decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor
distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção
integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo
irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno,
como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e
criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos
capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas
e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos
de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações estabelecidas
entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos
sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos,
que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas,
procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os
cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou
convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma
nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta
entre a economia e o bem comum social.
206. A economia – como indica o próprio
termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que
é o mundo inteiro. Todo o acto económico duma certa envergadura, que se realiza em
qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo
pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais
difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo
que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar
uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais
eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar
económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade
da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente
nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão
de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais
ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado
em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém
se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a
melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A
minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar
que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e
egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e
de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem
por esta terra.
Cuidar da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador por
excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais pequeninos
(cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar
dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor,
parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam
também singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios
tangíveis e imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas
formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor:
os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos
cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial
para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por
isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição
da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas
as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo
desta integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as cidades que,
já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem
o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas
que são objecto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito
de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o
teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica
clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele
que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de
distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas cidades,
está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue
devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres
que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente
têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre elas,
encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa
e cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis,
de que a Igreja quer cuidar com predilecção, estão também os nascituros, os mais inermes
e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer
deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém
o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja
faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista
e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada
à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre
sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento.
É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta
convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos
humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos
de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de
qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da
dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa
ao Criador do homem».
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com
a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve
esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser
completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».
Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana.
Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres
que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução
rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce
nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem
pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?
215. Há outros
seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos
ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos,
não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa
realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a
desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção
de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem
sinais de destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações futuras.
Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos, formularam
os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insectos vivia no bosque; e estavam
ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas
brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques.
(...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para
a podermos destruir ou transformar num baldio. (...) Depois de uma única noite de
chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão
a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em
esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso
mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos
mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos
chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.
3.
O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas
a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A paz
social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de violência obtida
pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela que
servisse como desculpa para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize
os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam manter
o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem. As
reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão
social dos pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de
construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade
da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem
renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma
voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra,
fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma
ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens».
Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não
terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220. Em
cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida, configurando-se
como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa arrastada pelas forças
dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação na
vida política é uma obrigação moral». Mas, tornar-se um povo é algo mais, exigindo
um processo constante no qual cada nova geração está envolvida. É um trabalho lento
e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura
do encontro numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de
um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina
Social da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência
para a interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor
estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência
social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projecto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para
a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe
uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir
tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido
amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante
de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte
maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um
primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao
espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão
pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e
hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a
assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados
que, às vezes, se nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder
em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como
loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os
espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los.
Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços.
O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante
crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as acções que geram novos dinamismos
na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar
em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras
e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo
actual, se preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo do que
com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros,
mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele
critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar justamente uma
época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão
de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades
da dita época».
225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização,
que exige ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada longa.
O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos seus discípulos
que havia coisas que ainda não podiam compreender e era necessário esperar o Espírito
Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve
um aspecto importante de evangelização que consiste em mostrar como o inimigo pode
ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo
que se manifesta com o tempo.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O
conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos
encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade
fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade
profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo
e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua
vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte,
projectam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a
unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar
o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação
de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo,
torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada
só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual
e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular
um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior
ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador,
torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos,
as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida.
Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano
superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
229. Este
critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus
e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade. O sinal distintivo
desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,
14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa e cimenta
em cada momento as relações entre os discípulos. A paz é possível, porque o Senhor
venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz»
(Col 1, 20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos
que o primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas diferenças
é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela dispersão dialéctica.
Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira
paz social.
230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas
a convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer
conflito numa nova e promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar
constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural
que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos
da República Democrática do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma riqueza.
(…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a reconciliação é que poderemos fazer
avançar o nosso país».
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe
também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é,
a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando
que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra,
da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade
é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos
angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos
mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade,
os intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais
– está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada
da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam
ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio.
É preciso passar do nominalismo formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário,
manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética.
Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo
não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente
é porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade
alheia à gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado
à encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus
por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de
Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando
encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a história
da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram
o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja,
sem pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos inventar
o Evangelho. Por outro lado, este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra,
a realizar obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não
pôr em prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer
na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam
o seu dinamismo.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização
e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global
para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista
o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem
de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo
abstracto e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos
de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados;
o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas,
condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo
que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.
235. O
todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto,
não se deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e particulares. É preciso
alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós.
Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes
na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se
no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma,
uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade,
quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre
novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila,
nem a parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois
não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo
diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflecte a confluência
de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como
a acção política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os
pobres com a sua cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até
mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que
não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua
própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem
comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio
fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite
e envia a pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos e operários, empresários
e artistas, incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro
e encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa.
A Boa Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos.
Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra no
seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no
cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade
que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos,
enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos
os homens à volta da mesa do Reino. O todo é superior à parte.
4. O diálogo
social como contribuição para a paz
238. A evangelização implica também um
caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a
Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento
do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade
– que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que
não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da
luz que a fé lhe dá», oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre
na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana,
mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a
razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da
paz» (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais
para cuidar deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz
em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o baptizado a ser instrumento
de pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada. É hora de saber como
projectar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de
consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz
de memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste processo,
é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos
de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal
que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se de um acordo para viver juntos,
de um pacto social e cultural.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da
sociedade compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade
e com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um
papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral
de todos. Este papel exige, nas circunstâncias actuais, uma profunda humildade social.
241. No
diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões
específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas
que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe
sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções
que possam depois traduzir-se em acções políticas.
O diálogo entre a fé, a
razão e as ciências
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção
evangelizadora que favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir,
como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências
positivas». A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável
das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia,
a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende a
natureza e a inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a
e tem confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus»,
e não se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos progressos científicos
para os iluminar com a luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre
respeitem a centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua
existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos
horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho
de harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável
das ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme
potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se
com rigor académico no campo do seu objecto específico, torna evidente uma determinada
conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender
que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente
comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas
vão mais além do objecto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões
que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe,
mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico
e frutuoso.
O diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico corresponde
à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade
do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões e
a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos
que, embora incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena comunhão». Devemos
sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos
abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente
para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem algo
de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt 5,
9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as
suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo
é uma contribuição para a unidade da família humana. A presença no Sínodo do Patriarca
de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça
Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246. Dada
a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo na Ásia e na
África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os missionários, nesses continentes,
referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem por causa do escândalo
dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos
o princípio da hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas
comuns de anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o
anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço por
uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou
um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível da evangelização.
Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados pela violência,
juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem deveria ser um activo fermento
de paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos
na acção livre e generosa do Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos outros!
Não se trata apenas de receber informações sobre os outros para os conhecermos melhor,
mas de recolher o que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para
dar um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade
de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua
experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos
cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações com o Judaísmo
247. Um
olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca foi revogada,
porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que
partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera o
povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da própria identidade cristã (cf.
Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos considerar o Judaísmo como uma religião
alheia, nem incluímos os judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos para
se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos
no único Deus que actua na história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada comum.
248. O
diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos de
Jesus. O afecto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e amargamente, as
terríveis perseguições de que foram e são objecto, particularmente aquelas que envolvem
ou envolveram cristãos.
249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança
e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina.
Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora
algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa
deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade que
nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar
as riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação
comum pela justiça e o desenvolvimento dos povos.
O diálogo inter-religioso
250. Uma
atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes
das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular
os fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma condição
necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também
para outras comunidades religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa
sobre a vida humana ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto
a eles, compartilhando as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros,
na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos
assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério
básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social,
é em si mesmo, para além do aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que
cria novas condições sociais. Os esforços à volta dum tema específico podem transformar-se
num processo em que, através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação
e enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor
à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar
o vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar
as relações com os não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo
de quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos quais
não são donos. A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções
mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender
as do outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma
abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo
de enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com
generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso
apoiam-se e alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande importância
a relação com os crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países
de tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto e viver integrados
na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão,
e connosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último
dia». Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus
Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e idosos,
mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar
fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma profunda
convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus e para Deus. Reconhecem
também a necessidade de Lhe responder com um compromisso ético e com a misericórdia
para com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável
a adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente
radicados na sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores
dos outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer
aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito
os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos
para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente
a esses países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto
e viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos países
ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto
pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações,
porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda
a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita
iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados
ao mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da graça
santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas
que, por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do caminho para Deus.
Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem
ser canais que o próprio Espírito suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo
ateu ou de experiências religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita
por toda a parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências
da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito também
desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor
as nossas próprias convicções.
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa
255. Os
Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela liberdade religiosa, considerada
um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade de escolher a religião que se crê
ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria crença». Um são pluralismo,
que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais,
não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio
e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado
das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma
de discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias de agnósticos ou de
não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as convicções de
maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria
mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao questionar-se sobre
a incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes modos de a viver.
Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações
grosseiras e pouco académicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes,
não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos
– são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para justificar acções discriminatórias.
Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente,
esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas
as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula
o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia dos
racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque
nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas
que possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas
religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles
que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente
a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua
fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade
humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação.
Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o «Átrio dos Gentios», onde
«crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da arte
e da ciência, e sobre a busca da transcendência». Também este é um caminho de paz
para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns temas sociais, importantes
para o futuro da humanidade, procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão
social do anúncio do Evangelho, para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre
nas suas palavras, atitudes e acções.
Capítulo V EVANGELIZADORES
COM ESPÍRITO
259. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores
que se abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os
Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus,
que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde
a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta
e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados
na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de
contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só
com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste
último capítulo, não vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã, nem desenvolverei
grandes temas como a oração, a adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os
quais já possuímos preciosos textos do Magistério e escritos célebres de grandes autores.
Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a propor
algumas reflexões acerca do espírito da nova evangelização.
261. Quando se
diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma moção interior
que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e comunitária. Uma evangelização
com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação
pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que contradiz as nossas próprias
inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação
evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e
feita de vida contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arde
nos corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma evangelização
com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor
algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo;
peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora
de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.
1. Motivações para um
renovado impulso missionário
262. Evangelizadores com espírito quer dizer
evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem
as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário,
nem os discursos e acções sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme
o coração. Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e
não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar
sempre um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade. Sem
momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero
com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com
o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão
da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas as instituições eclesiais,
os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas
da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista
e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a
lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa
para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode
levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.
263. É salutar
recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que se
mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e
capazes de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais
difícil; temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável
ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana.
Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de
si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos.
Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana
que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente.
Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades
próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar
algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O encontro pessoal
com o amor de Jesus que nos salva
264. A primeira motivação para evangelizar
é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos
impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade
de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria?
Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração
para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a
sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial.
Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos
aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente e
lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48). Como é doce
permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo
simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte
a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então que,
em última análise, «o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor
motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se
nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza
deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente recuperar
um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários
dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para
transmitir aos outros.
265. Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os
pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e,
finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas
as vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os
outros precisam, embora não o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse
que eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque
esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas,
porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a amizade com Jesus
e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma adequada e bela, o conteúdo
essencial do Evangelho, de certeza que essa mensagem fala aos anseios mais profundos
do coração: «O missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos,
pela acção do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade
acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à liberação do pecado e da morte.
O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ânsia». O
entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um tesouro
de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir.
É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e elevá-lo.
É a verdade que não passa de moda, porque é capaz de penetrar onde nada mais pode
chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito.
266. Esta
convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada,
de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização
cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma
coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com Ele
ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra,
não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer.
Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer
unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais
plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que
evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe
que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente
Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente
no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar
seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida,
entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.
267. Unidos a Jesus,
procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última instância, o que procuramos
é a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à glória da sua
graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança, esta motivação
deve superar toda e qualquer outra. O movente definitivo, o mais profundo, o maior,
a razão e o sentido último de tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou
durante toda a sua existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu ser
«no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos missionários, antes de tudo é porque Jesus nos
disse: «A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8). Independentemente
de que nos convenha, interesse, aproveite ou não, para além dos estreitos limites
dos nossos desejos, da nossa compreensão e das nossas motivações, evangelizamos para
a maior glória do Pai que nos ama.
O prazer espiritual de ser povo
268. A
Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não
éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com
espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida
das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria superior.
A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando
paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica
e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar
de Jesus se alonga e dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos
novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo
amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade
não se compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta
opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto
de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia
de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo
disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52)
e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem
de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta
ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3,
1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda
a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na sociedade,
partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e
espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos
com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com
os outros. Mas não por obrigação, nem como um peso que nos desgasta, mas como uma
opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.
270. Às vezes
sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do
Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora
dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários
que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente
entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura.
Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência
de ser povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na
nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não
como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o
«com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa,
vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer
«o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem
pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós
próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo
o povo» (Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes
que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião
de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra
de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações que
as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários.
Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel
de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas
é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a ponto de se
dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2,
11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8).
Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de
Deus», e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina incessantemente um
mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir». Portanto, quando vivemos a mística
de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso
interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com
um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada
vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa
fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida espiritual,
não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização enriquece a mente
e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer
a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo
tempo, um missionário plenamente devotado ao seu trabalho experimenta o prazer de
ser um manancial que transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem
se sente bem procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta
abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do
que em receber» (Act 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se,
negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão
um lento suicídio.
273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha
vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre
tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero
destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso
considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar,
levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira autêntica , o professor autêntico,
o político autêntico, aqueles que decidiram, no mais íntimo do seu ser, estar com
os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida
privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos
ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo.
274. Para partilhar
a vida com a gente e dar-nos generosamente, precisamos de reconhecer também que cada
pessoa é digna da nossa dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades,
sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar, mas porque é
obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e reflecte algo da sua glória.
Cada ser humano é objecto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua
vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente
da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afecto e a nossa dedicação.
Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom
da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos
os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!
A acção misteriosa do Ressuscitado
e do seu Espírito
275. No terceiro capítulo, reflectimos sobre a carência de
espiritualidade profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança.
Algumas pessoas não se dedicam à missão, porque crêem que nada pode mudar e assim,
segundo elas, é inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades
e prazeres, se não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade, torna-se
impossível ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa maligna para
continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita, no
vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não pode viver
sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância, tornar-se-ia insuportável».
No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que Jesus Cristo triunfou
sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente.
Caso contrário, «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14).
Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor
cooperava com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos
convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda
da nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia.
276. A
sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo.
Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição.
É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos
injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também é certo
que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo
ou mais tarde, produz fruto. Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e
invencível. Haverá muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se.
Cada dia, no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas
da história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade
o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis. Esta é
a força da ressurreição, e cada evangelizador é um instrumento deste dinamismo.
277. E
continuamente aparecem também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as mesquinhices
humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não
nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças são lentas,
e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a mesma coisa quando alguém,
por cansaço, baixa momentaneamente os braços e quando os baixa definitivamente dominado
por um descontentamento crónico, por uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer
que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num
carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa
não baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho,
que é a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A
fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está
vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem
do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele
caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os
fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente
no mundo, e vai-se desenvolvendo-se aqui e além de várias maneiras: como a pequena
semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como
o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa semente
que cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente:
ei-la que aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo. A ressurreição de Cristo
produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam
a despontar, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história;
porque Jesus não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança
viva!
279. Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza
interior, ou seja, da convicção de que Deus pode actuar em qualquer circunstância,
mesmo no meio de aparentes fracassos, porque «trazemos este tesouro em vasos de barro»
(2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste em
saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente
será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável,
não pode ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos,
mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma
das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras
com os outros, não se perde nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas
generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo
mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos obtido
resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem um projecto
empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um espectáculo para que
se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito
mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva da nossa
entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito
Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação,
mas sem pretender ver resultados espectaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos
é necessário. No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar
na ternura dos braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas
deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.
280. Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança
no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta
confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente.
Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário. É verdade
que esta confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar
num mar onde não sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes.
Mas não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando
a calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione
para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em
cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
A força missionária
da intercessão
281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente
a gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é a intercessão.
Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador como São Paulo, para perceber
como era a sua oração. Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações,
sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1, 4.7).
Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira contemplação, porque
a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude transforma-se
também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou graças ao meu Deus
por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um agradecimento constante:
«Dou incessantemente graças ao meu Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida
em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao
meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão
espiritual, de fé profunda, que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E,
simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração verdadeiramente solícito pelos
outros. Deste modo, quando um evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se
mais generoso, libertou-se da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e
partilhar a vida com os outros.
283. Os grandes homens e mulheres de Deus foram
grandes intercessores. A intercessão é como «fermento» no seio da Santíssima Trindade.
É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas dimensões que iluminam as situações concretas
e as mudam. Poderíamos dizer que o coração de Deus se deixa comover pela intercessão,
mas na realidade Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas
possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se manifestem mais claramente
no povo.
2. Maria, a Mãe da evangelização
284. Juntamente com o
Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O
invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível a explosão missionária que se deu no
Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não podemos compreender
cabalmente o espírito da nova evangelização.
O dom de Jesus ao seu povo
285. Na
cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do
mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e
do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe
havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a seguir,
disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27). Estas palavras de Jesus,
no limiar da morte, não exprimem primariamente uma terna preocupação por sua Mãe;
mas são, antes, uma fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica
especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é
que Jesus pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora
suprema da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer
que caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios
do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone feminino. Ela,
que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua descendência, isto é, os
que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17).
Esta ligação íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira diversa
geram Cristo, foi maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras
divinamente inspiradas, o que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se
em especial à Virgem Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo,
esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...)
No tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo
da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da alma fiel
habitará pelos séculos dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe transformar
um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura.
Ela é a serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre
solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado
pela espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança
para os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária
que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os corações
à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco
e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes títulos marianos,
geralmente ligados aos santuários, compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu
o Evangelho e entra a formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos
pedem o Baptismo para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na
acção materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que
se pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios,
vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus
para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego, Maria oferece-lhes
a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não se perturbe o teu coração. (...)
Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A Estrela da nova evangelização
287. À
Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para
uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela
é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da fé
representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se conduzir
pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação feita de serviço
e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a
mensagem de salvação e para que os novos discípulos se tornem operosos evangelizadores.
Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até
de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia:
«Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil,
porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie
de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através
do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério.
Foi deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade
com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».
288. Há um
estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para
Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afecto. N’Ela,
vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que
não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos
que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos
ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum
lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas
estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios
do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem imperceptíveis.
É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada
um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também nossa Senhora
da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação para ir ajudar os outros.
Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e de caminho para os outros faz
d’Ela um modelo eclesial para a evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua
oração materna, para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos
os povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz,
com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo
todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta promessa, e
dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria, Vós que, movida pelo Espírito, acolhestes
o Verbo da vida na profundidade da vossa fé humilde, totalmente entregue ao
Eterno, ajudai-nos a dizer o nosso «sim» perante a urgência, mais imperiosa
do que nunca, de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença
de Cristo, levastes a alegria a João o Baptista, fazendo-o exultar no seio de
sua mãe. Vós, estremecendo de alegria, cantastes as maravilhas do Senhor. Vós,
que permanecestes firme diante da Cruz com uma fé inabalável, e recebestes a
jubilosa consolação da ressurreição, reunistes os discípulos à espera do Espírito para
que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados para
levar a todos o Evangelho da vida que vence a morte. Dai-nos a santa ousadia
de buscar novos caminhos para que chegue a todos o dom da beleza que não se
apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação, Mãe do amor, esposa das
núpcias eternas intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo, para
que ela nunca se feche nem se detenha na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela
da nova evangelização, ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão, do
serviço, da fé ardente e generosa, da justiça e do amor aos pobres, para que
a alegria do Evangelho chegue até aos confins da terra e nenhuma periferia fique
privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente, manancial de alegria para
os pequeninos, rogai por nós. Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto de
São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.