Funcionalismo e clericalismo – tentações contra o discipulado missionário: discurso
do Papa aos bispos do Celam
Cidade do
Vaticano (RV) - Amigo ouvinte, o quadro "O Brasil na Missão Continental" continua
trazendo, na edição de hoje, o monumental discurso que o Papa Francisco dirigiu em
28 de julho passado, no Rio de Janeiro, aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal
Latino-Americano (CELAM), por ocasião de sua Reunião Geral de Coordenação.
Considerando
que a Missão Continental é o objeto deste nosso quadro e a riqueza e a pertinência
deste discurso do Papa, não poderíamos deixar revisitá-lo repropondo-o de acordo com
o espaço-tempo de que dispomos.
Vale ressaltar que o discurso é dividido em
cinco pontos. Na edição passada concluímos o ponto três (Dimensões da Missão Continental)
e iniciamos o ponto quatro (Algumas tentações contra o discipulado missionário).
O
Papa menciona três atitudes que configuram uma Igreja "tentada". Na edição passada
trouxemos a primeira delas (A ideologização da mensagem evangélica). Hoje trazemos
as duas seguintes ("o funcionalismo" e "o clericalismo"):
2. O funcionalismo.
A sua ação na Igreja é paralisante. Mais do que com a rota, se entusiasma com o “roteiro”.
A concepção funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a realidade
da Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e as estatísticas.
A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de Igreja. Constitui
uma espécie de “teologia da prosperidade” no aspeto organizativo da pastoral.
3.
O clericalismo é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente,
na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco clericaliza
e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais
cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade
e de liberdade cristã em parte do laicato da América Latina: ou não cresce (a maioria),
ou se comprime sob coberturas de ideologizações como as indicadas, ou ainda em pertenças
parciais e limitadas. Em nossas terras, existe uma forma de liberdade laical através
de experiências de povo: o católico como povo. Aqui vê-se uma maior autonomia, geralmente
sadia, que se expressa fundamentalmente na piedade popular. O capítulo de Aparecida
sobre a piedade popular descreve, em profundidade, essa dimensão. A proposta dos grupos
bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais se colocam na
linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical. Poderíamos
continuar descrevendo outras tentações contra o discipulado missionário, mas acho
que estas são as mais importantes e com maior força neste momento da América Latina
e do Caribe.
E passemos agora ao 5º e último ponto (Alguns critérios eclesiológicos).
Dividido em quatro partes – por razão de espaço-tempo –, hoje nos limitamos às duas
primeiras:
5. Alguns critérios eclesiológicos
1. O discipulado-missionário
que Aparecida propôs às Igrejas da América Latina e do Caribe é o caminho que Deus
quer para “hoje”. Toda a projeção utópica (para o futuro) ou restauracionista (para
o passado) não é do espírito bom. Deus é real e se manifesta no “hoje”. A sua presença,
no passado, se nos oferece como “memória” da grande obra da salvação realizada quer
em seu povo quer em cada um de nós; no futuro, se nos oferece como “promessa” e esperança.
No passado, Deus esteve presente e deixou sua marca: a memória nos ajuda encontrá-lo;
no futuro, é apenas promessa... e não está nos mil e um “futuríveis”. O “hoje” é o
que mais se parece com a eternidade; mais ainda: o “hoje” é uma centelha de eternidade.
No “hoje”, se joga a vida eterna. O discipulado missionário é vocação: chamada
e convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado missionário
estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência
está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão.
Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas
a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para
o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os
homens que esperam o anúncio. Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo
missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as
periferias... incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No anúncio
evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente, temos
medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um “descentrado”: o centro é Jesus
Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais.
2.
A Igreja é instituição, mas, quando se erige em “centro”, se funcionaliza e, pouco
a pouco, se transforma em uma ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa
de ser aquele “mysterium lunae” de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada
vez mais auto-referencial, e se enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De
“Instituição” se transforma em “Obra”. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora;
de Servidora se transforma em “Controladora”. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe,
Servidora, mais facilitadora que controladora da fé.
Amigo ouvinte, por hoje
vamos ficando por aqui. Em nosso próximo encontro semanal traremos as duas últimas
partes do nº 5 do discurso do Papa aos bispos responsáveis do Celam. A você um forte
abraço e até lá, se Deus quiser! (RL)