Bispos eméritos propõem reflexão à Igreja no Brasil
Brasília (RV) - Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, Dom Tomás
Balduino, bispo emérito de Goiás e Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix
do Araguaia, escreveram uma Carta aos bispos do Brasil. A carta recorda o histórico
Pacto das Catacumbas, a Teologia do Vaticano II sobre o ministério episcopal e a sinodalidade,
segundo eles, necessária no século XXI. Eis a carta:
Queridos irmãos
no episcopado,
Somos três bispos eméritos que, de acordo com o ensinamento
do Concílio Vaticano II, apesar de não sermos mais pastores de uma Igreja local, somos
sempre participantes do Colégio episcopal, e junto com o Papa, nos sentimos responsáveis
pela comunhão universal da Igreja Católica.
Alegrou-nos muito a eleição do
Papa Francisco no pastoreio da Igreja, pelas suas mensagens de renovação e conversão,
com seus seguidos apelos a uma maior simplicidade evangélica e maior zelo de amor
pastoral por toda a Igreja. Tocou-nos também a sua recente visita ao Brasil, particularmente
suas palavras aos jovens e aos bispos. Isso até nos trouxe a memória do histórico
Pacto das Catacumbas.
Será que nós bispos nos damos conta do que, teologicamente,
significa esse novo horizonte eclesial? No Brasil, em uma entrevista, o Papa recordou
a famosa máxima medieval: “Ecclesia semper renovanda”.
Por pensar nessa nossa
responsabilidade como bispos da Igreja Católica, nos permitimos esse gesto de confiança
de lhes escrever essas reflexões, com um pedido fraterno para que desenvolvamos um
maior diálogo a respeito.
1. A Teologia do Vaticano II sobre o ministério
episcopal
O Decreto Christus Dominus dedica o 2º capítulo à relação entre bispo
e Igreja Particular. Cada Diocese é apresentada como “porção do Povo de Deus” (não
é mais apenas um território) e afirma que, “em cada Igreja local está e opera verdadeiramente
a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” (CD 11), pois toda Igreja local
não é apenas um pedaço de Igreja ou filial do Vaticano, mas é verdadeiramente Igreja
de Cristo e, assim a designa o Novo Testamento (LG 22). “Cada Igreja local é congregada
pelo Espírito Santo, por meio do Evangelho, tem sua consistência própria no serviço
da caridade, isto é, na missão de transformar o mundo e testemunhar o Reino de Deus.
Essa missão é expressa na Eucaristia e nos sacramentos. Isso é vivido na comunhão
com seu pastor, o bispo”.
Essa teologia situa o bispo não acima ou fora de
sua Igreja, mas como cristão inserido no rebanho e com um ministério de serviço a
seus irmãos. É a partir dessa inserção que cada bispo, local ou emérito, assim como
os auxiliares e os que trabalham em funções pastorais sem dioceses,todos, enquanto
portadores do dom recebido de Deus na ordenação são membros do Colégio Episcopal e
responsáveis pela catolicidade da Igreja.
2. A sinodalidade necessária no século
XXI
A organização do papado como estrutura monárquica centralizada foi instituída
a partir do pontificado de Gregório VII, em 1078. Durante o 1º milênio do Cristianismo,
o primado do bispo de Roma estava organizado de forma mais colegial e a Igreja toda
era mais sinodal.
O Concílio Vaticano II orientou a Igreja para a compreensão
do episcopado como um ministério colegial. Essa inovação encontrou, durante o Concílio,
a oposição de uma minoria inconformada. O assunto, na verdade, não foi suficientemente
amarrado. Além disso, o Código de Direito Canônico, de 1983 e os documentos emanados
pelo Vaticano, a partir de então, não priorizaram a colegialidade, mas restringiram
a sua compreensão e criaram barreiras ao seu exercício. Isso foi em prol da centralização
e crescente poder da Cúria romana, em detrimento das Conferências nacionais e continentais
e do próprio Sínodo dos bispos, este de caráter apenas consultivo e não deliberativo,
sendo que tais organismos detêm, junto com o Bispo de Roma, o supremo e pleno poder
em relação à Igreja inteira.
Agora, o Papa Francisco parece desejar restituir
às estruturas da Igreja Católica e a cada uma de nossas dioceses uma organização mais
sinodal e de comunhão colegiada. Nessa orientação, ele constituiu uma comissão de
cardeais de todos os continentes para estudar uma possível reforma da Cúria Romana.
Entretanto, para dar passos concretos e eficientes nesse caminho – e que já está acontecendo
– ele precisa da nossa participação ativa e consciente. Devemos fazer isso como forma
de compreender a própria função de bispos, não como meros conselheiros e auxiliares
do papa, que o ajudam à medida que ele pede ou deseja e sim como pastores, encarregados
com o papa de zelar pela comunhão universal e o cuidado de todas as Igrejas.
3.
O cinquentenário do Concílio
Nesse momento histórico, que coincide também com
o cinqüentenário do Concílio Vaticano II, a primeira contribuição que podemos dar
à Igreja é assumir nossa missão de pastores que exercem o sacerdócio do Novo Testamento,
não como sacerdotes da antiga lei e sim, como profetas. Isso nos obriga colaborar
efetivamente com o bispo de Roma, expressando com mais liberdade e autonomia nossa
opinião sobre os assuntos que pedem uma revisão pastoral e teológica. Se os bispos
de todo o mundo exercessem com mais liberdade e responsabilidade fraternas o dever
do diálogo e dessem sua opinião mais livre sobre vários assuntos, certamente, se quebrariam
certos tabus e a Igreja conseguiria retomar o diálogo com a humanidade, que o Papa
João XXIII iniciou e o Papa Francisco está acenando.
A ocasião, pois, é de
assumir o Concílio Vaticano II atualizado, superar de uma vez por todas a tentação
de Cristandade, viver dentro de uma Igreja plural e pobre, de opção pelos pobres,
uma eclesiologia de participação, de libertação, de diaconia, de profecia, de martírio...
Uma Igreja explicitamente ecumênica, de fé e política, de integração da Nossa América,
reivindicando os plenos direitos da mulher, superando a respeito os fechamentos advindos
de uma eclesiologia equivocada.
Concluído o Concílio, alguns bispos – sendo
muitos do Brasil – celebraram o Pacto das Catacumbas de Santa Domitila. Eles foram
seguidos por aproximadamente 500 bispos nesse compromisso de radical e profunda conversão
pessoal. Foi assim que se inaugurou a recepção corajosa e profética do Concílio.
Hoje,
várias pessoas, em diversas partes do mundo, estão pensando num novo Pacto das Catacumbas.
Por isso, desejando contribuir com a reflexão eclesial de vocês, enviamos anexo o
texto original do Primeiro Pacto.
O clericalismo denunciado pelo Papa Francisco
está sequestrando a centralidade do Povo de Deus na compreensão de uma Igreja, cujos
membros, pelo batismo, são alçados à dignidade de “sacerdotes, profetas e reis”. O
mesmo clericalismo vem excluindo o protagonismo eclesial dos leigos e leigas, fazendo
o sacramento da ordem se sobrepor ao sacramento do batismo e à radical igualdade em
Cristo de todos os batizados e batizadas.
Além disso, em um contexto de mundo
no qual a maioria dos católicos está nos países do sul (América Latina e África),
se torna importante dar à Igreja outros rostos além do costumeiro expresso na cultura
ocidental. Nos nossos países, é preciso ter a liberdade de desocidentalizar a linguagem
da fé e da liturgia latina, não para criarmos uma Igreja diferente, mas para enriquecermos
a catolicidade eclesial.
Finalmente, está em jogo o nosso diálogo com o mundo.
Está em questão qual a imagem de Deus que damos ao mundo e o testemunhamos pelo nosso
modo de ser, pela linguagem de nossas celebrações e pela forma que toma nossa pastoral.
Esse ponto é o que deve mais nos preocupar e exigir nossa atenção. Na Bíblia, para
o Povo de Israel, “voltar ao primeiro amor”, significava retomar a mística e a espiritualidade
do Êxodo.
Para as nossas Igrejas da América Latina, “voltar ao primeiro amor”
é retomar a mística do Reino de Deus na caminhada junto com os pobres e a serviço
de sua libertação. Em nossas dioceses, as pastorais sociais não podem ser meros apêndices
da organização eclesial ou expressões menores do nosso cuidado pastoral. Ao contrário,
é o que nos constitui como Igreja, assembleia reunida pelo Espírito para testemunhar
que o Reino está vindo e que de fato oramos e desejamos: venha o teu Reino!
Esta
hora é, sem dúvida, sobretudo para nós bispos, com urgência, a hora da ação. O Papa
Francisco ao dirigir-se aos jovens na Jornada Mundial e ao dar-lhes apoio nas suas
mobilizações, assim se expressou: “Quero que a Igreja saia às ruas”. Isso faz eco
à entusiástica palavra do apóstolo Paulo aos Romanos: “É hora de despertar, é hora
e de vestir as armas da luz” (13,11). Seja essa a nossa mística e nosso mais profundo
amor.
Abraços, com fraterna amizade.
Dom José Maria Pires, arcebispo
emérito da Paraíba.
Dom Tomás Balduino, bispo emérito de Goiás.
Dom
Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia.