Rio de Janeiro (RV) - Na solenidade da celebração do martírio de Pedro e Paulo,
Sua Santidade, o Papa Francisco, vem nos reafirmar a fé pela qual aquelas “Colunas
da Igreja” derramaram o seu sangue, testemunhando que em Cristo se realiza a promessa
de Deus para a humanidade, publicando a carta encíclica Lumen Fidei, uma reflexão
profunda sobre a Luz: "Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não
fique nas trevas" (Jo 12, 46), e a misericórdia do Pai para conosco: "Porque o Deus
que disse: 'das trevas brilhe a luz', foi quem brilhou nos nossos corações” (2 Cor
4, 6).
Nos dias atuais, aliás, como sempre, a “Luz brilhou nas trevas e as
trevas não a compreenderam” (Jo 1). “Seria a fé uma luz ilusória?”, questiona a Carta
Apostólica. Serviria para os novos tempos, da superioridade da razão e da ciência,
quando o homem já desvenda os mistérios da natureza?
Insiste o Papa: “urge
recuperar o caráter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga,
todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor.”
Toda a primeira
parte da Encíclica nos apresenta o dom da fé como um ato do amor do Pai. E nos exorta
a acreditarmos no Amor (1 Jo 4, 16).
O Deus de Abraão, Isaac e Jacó falava
e interagia com Israel. Um Deus Pastor, que cuida do seu povo, o conduz a pastagens
verdejantes, dispersa os lobos que rondam os apriscos. Com eles dialoga no louvor
e na correção. Penso que nesta reflexão poderíamos enquadrar a primeira parte da Encíclica,
que trata da fé de Israel desde Abraão até a plenitude da fé cristã e sua amplitude
comunitária, a Igreja. “O amor divino possui os traços de um pai que conduz seu filho
pelo caminho (cf. Dt 1, 31). Deste modo aprendemos que a luz trazida pela fé está
ligada com a narração concreta da vida, com a grata lembrança dos benefícios de Deus
e com o progressivo cumprimento das suas promessas”, expressa o Papa.
Neste
caminho, há a traição de Israel a este amor, a idolatria, a adoração dos ídolos, como
ainda hoje, quando trocamos a visão da Verdade, da Luz de Deus pelos reflexos de criaturas
que criamos, que têm ouvidos mas não ouvem, que têm boca mas não falam. Deixamos de
ouvir a Deus para nos perdemos no marasmo de nossas confusões.
“A fé consiste
na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pela chamada de Deus. Paradoxalmente,
neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra uma estrada segura que
o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os ídolos”, ensina o Pontífice.
E
ainda: “A nossa cultura perdeu a noção dessa presença concreta de Deus, da sua ação
no mundo; pensamos que Deus se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado
das nossas relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz
de agir no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso”.
A luz da
fé não pode ficar escondida, nem se fechar num tempo e num povo. Ela é prospectiva,
vive a intensidade de uma promessa. Une, num só ato, o passado, o presente e o futuro.
"Sai da tua terra e vai” na certeza da realização da esperança na plenitude de Cristo
morto e ressuscitado, ontem, hoje e sempre. Ensina o Santo Padre que: “A fé não é
um fato privado, uma concepção individualista, uma opinião subjetiva, mas nasce de
uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio. Com efeito, como
hão de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como hão de ouvir falar sem
alguém que O anuncie? (Rm 10, 14). Concluindo, a fé torna-se operativa no cristão
a partir do dom recebido, a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e
torna participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição. Para
quem foi assim transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os
seus olhos.”
A segunda parte da Encíclica tem por título as palavras de Isaías:
“Se não acreditardes, não compreendereis” (Cf. Is 7, 9). O profeta exorta a compreender
os caminhos do Senhor, o Deus fiel que governa os séculos. É o Deus verdadeiro, onde
não há mentira, pois a fé e a verdade se abraçam.
Nos cinco capítulos desta
segunda parte da Encíclica, o Papa discorre sobre a fé, a verdade, e o amor. “O conhecimento
da fé, pelo fato de nascer do amor de Deus que estabelece a Aliança, é conhecimento
que ilumina um caminho na história. É por isso também que, na Bíblia, verdade e fidelidade
caminham juntas: o Deus verdadeiro é o Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas
e permite, com o decorrer do tempo, compreender o seu desígnio.”
É um Deus
que nos mostra a sua face amorosa e que nos dirige a sua Palavra, pela qual podemos
com Ele estabelecer um diálogo, um interlóquio entre a razão e a fé que nos vislumbra
os espaços infinitos, onde a razão não alcança pela sua limitação e pela qual buscamos
a visão da face divina.
“Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz
e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo”. Por isso, a Igreja
é missão. É a Mãe de nossa fé. Assim, a terceira parte do documento pontifício tem
por título o texto paulino: ”Transmito-vos aquilo que recebi (cf. 1 cor 15, 3)”.
Pelos
sacramentos, ela mesmo sacramento de Deus neste mundo, proclama a fé na realização
da promessa em Cristo Jesus a um mundo ansioso pela Palavra. Busca a Deus pela oração,
pela abertura do decálogo na amplitude das bem-aventuranças do Sermão da Montanha.
A
chama não se extingue entre as vicissitudes do mundo presente. A missão descobre aos
homens a realização plena do projeto divino de um mundo novo no Amor. Nele crê, por
ele espera.
Assim conclui a quarta parte da Encíclica, apontando-nos para a
cidade que Deus nos prepara. Por ora vivemos na fé, na certeza dos bens futuros. Esta
fé norteia a ação em busca de uma ordem social fundamentada na Verdade, que se transmite
da família para toda a sociedade. Força consoladora no sofrimento, que se integra
na paixão de Cristo, no aguardo de sua ressurreição cósmica.
Filho devoto de
Maria, o Papa finaliza sua Carta na invocação de Maria: “Feliz aquela que acreditou.”
E pede-lhe: “Ajudai, ó Mãe, a nossa fé. Abri o nosso ouvido à Palavra, para
reconhecermos a voz de Deus e a sua chamada. Despertai em nós o desejo de seguir
os seus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a sua promessa. Ajudai-nos a
deixar-nos tocar pelo seu amor, para podermos tocá-lo com a fé".
† Orani
João Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio
de Janeiro, RJ