Belo Horizonte (RV) - O silêncio desta Sexta-feira Santa estampa no horizonte
o gesto que, de maneira completa e interpelante, define o sentido e o alcance da lógica
do dom. Não existe outra igual na história da humanidade. O suplício da cruz, para
além de suas aparências ignominiosas, guarda o segredo do amor mais verdadeiro e com
a propriedade inigualável de salvar. Quem fixar os olhos em Jesus, pregado na cruz,
encontrará tudo o que define o significado da lógica do dom. É um mistério de amor
que ultrapassa tudo e todos.
Um encantamento e fascínio que está n’Ele, Cristo
Jesus, o Salvador do mundo, a fonte inesgotável e convincente da lógica do dom - única
do amor de Deus.
Bem expressa o evangelista João, no capítulo terceiro, é oportuno
lembrar, quando refere-se a uma intervenção de Jesus em seu diálogo com o Mestre Nicodemos,
dizendo que “ de fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu filho único, para que
todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”. Este mesmo evangelista,
na sua primeira carta, capítulo quatro, sublinha uma verdade fundamental, para a compreensão
e vivência da lógica do dom, ao dizer que “nisto consiste o amor; não fomos nós que
amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como oferenda de expiação
pelos nossos pecados”. A lógica do dom se constrói com a oferta total de si. Essa
é a oferta redentora que Jesus faz de si do alto da cruz. Sua compreensão há de ser
presidida e iluminada pelo princípio de que foi Deus quem nos amou primeiro. Amados
primeiramente.
O compromisso com esta lógica do dom inclui primordialmente
a capacitação por este amor de Deus que é dado, gratuita e copiosamente em Cristo,
e nos aponta o horizonte infinito e desafiador no desenvolvimento da habilidade de
amar. Amar sempre, mesmo os inimigos e os perseguidores. Brota de dentro desta lógica
do amor, o compromisso de perdoar sempre, sem limites. Assim, desdobram-se os princípios
norteadores da fraternidade e do sentido curativo e sustentador da solidariedade que
recompõe o tecido humano e existencial. E gera a coragem da profecia na defesa dos
pobres.
Essa lógica do amor não se aprende e nem se aplica apenas pela força
de entusiasmos “fogo de palha”, nem também pelas pretensões de ajuizar a tudo e a
todos, de um lugar muitas vezes acadêmico e sem vivência; menos ainda quando não se
consegue olhar a si mesmo com a humildade que é dos mais preciosos dons da lógica
do dom. A cruz do crucificado é mais do que uma cena comovente. É o livro permanente
da arte de viver. O silêncio que envolve esse horizonte tem um poder incomum de transformação.
Basta ter a coragem dessa contemplação silenciosa, deixando-se banhar pela luz amarelada
de final de dia para compreender o paradoxal dessa lógica. E convencer-se, pouco a
pouco, que a vida só vale ser vivida segundo a lógica do dom. Somente ela nos livra
da perda de rumos e alimenta a inteligência e o coração com a sabedoria que só vem
dos gestos verdadeiros de amor.
Sábio e oportuno para vivenciar este dia santo,
é acolher a indicação preciosa que está no famoso sermão sacerdotal da chamada Carta
aos Hebreus, quando aconselha que devemos caminhar ‘com os olhos fixos em Jesus, que
vai à frente da nossa fé e a leva à perfeição’. O exercício de fixar os olhos no crucificado,
por uma compreensão iluminada pela Palavra do próprio Deus, é percorrer o caminho
que alarga o coração, corrige os descompassos e permite encontrar gosto na simplicidade
de coração. Aquela simplicidade como única e indiscutível possibilidade de ser, ao
menos de maneira opaca, uma centelha dessa fascinante e inigualável lógica do amor.
O caminho de aproximação começa e se mantém sempre pelos gestos de fraternidade, fecundados
pela despretensão e pela incondicional misericórdia e reverência a cada pessoa, particularmente
os pobres, os inocentes, enfermos e indefesos.
Os discípulos do Mestre crucificado,
certos de sua morte e ressurreição, com o compromisso de viver por esta lógica do
dom, se obrigam na tarefa de ajudar o mundo a abrir-se a esta mesma lógica, na tarefa
interminável de recompor vidas, sem a pretensão megalômana de controle e domínio sobre
os outros, suas circunstâncias. A obediência amorosa do crucificado, seu silêncio,
seu amor apaixonado pela humanidade, traduzido em proximidades e ofertas, são esta
insuperável lógica do dom.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo metropolitano
de Belo Horizonte