Rainha Nzinga, rumo a Património da Humanidade - Colóquio internacional em Luanda
- Lesliane Pereira e Moisés Malumbu
Famosa pela sua resistência
à penetração portuguesa em Angola e pela sua conversão ao cristianismo, a regina Nzinga
Mbandi é hoje muito valorizada em África e na diáspora. Prova disso, mais este importante
colóquio sobre ela a saudar o Dia da Mulher Angolana. Foi de 28 de Feverio a 1 de
Março em Luanda. Um colóquio com momentos culturais em que a Miss Angola 2008, Lesliane
Pereira, personificou a rainha. Oiça na rubrica "África.Vozes Femininas" as palavras
dela, assim como do Dr. Moisés Malumbu, um dos oradores no colóquio em que participou,
entre outros, um representante da UNESCO.
Leia em baixo
uma síntese da vida da rainha Nzinga emitida na rubrica "África.Vozes Femininas" a
17 de Dezembro de 2003.
“O Reino está em paz e em bom estado. Cuidai de
o conservar como vo-lo deixo. Defendei com rigor a causa de Deus. Quero que para o
meu funeral e a minha sepultura sejam seguidas as instruções do meu confessor e que
sejam organizados segundo os ritos e costumes da religião cristã. E, sobretudo, que
não haja sacrifícios humanos, mesmo que se trate de honrar uma grande rainha”.
Palavras
da Rainha Nzinga de Angola ao seu Primeiro Ministro, no dia sua morte, a 17 de Dezembro
de 1664; dia em que, enfraquecida pela doença e com uma voz já débil que mal se conseguia
ouvir, declarou publicamente estar feliz por morrer na fé católica; que se arrependia
por ter praticado os costumes barbares dos jagas e por ter versado tanto sangue inocente.
E murmurava a sua amargura por não poder deixar um filho que lhe sucedesse no trono
de Matamba.
Dito isto, fez uma longa pausa como se esse esforço a esgotasse
– refere a historiadora Sylvia Serbin no seu livro “Rainhas da África e Heroínas da
Diáspora”, interrogando-se se era mesmo isso, ou se se tratava da recordação da terrível
dor do dia em que o seu filho único, ainda bebé, foi mandado matar mediante um banho
em água fervente pelo seu irmão Mani Ngola, Rei de Angola. E como se não bastasse,
esse irmão, que a odiava por ser a preferida do pai e por ser mais inteligente e capaz
do que ele, fê-la esterilizar de maneira horrível, impedindo-lhe assim de ter mais
filhos. Ela, por sua vez, mandou matar o filho do irmão depois de ter posto fim à
vida deste último mediante envenenamento. Seria isto a razão do seu profundo suspiro?
Ou Seria a recordação de todos os homens que tinham passado pela sua vida? Alianças
de circunstância, ligações políticas ou paixões efémeras…?, amantes que não demorava
a expulsar do seu leito, mas que tinham sido numerosos como se ela procurasse constantemente
provar a sua feminilidade? Uma mulher mortificada que, num dia de melancolia confessara
o seu “ódio pelos homens”. O seu último companheiro fora um jovem escravo de 50 anos
que ela escolhera no dia dos seus 75 anos. Nzinga morre assim no dia 17 de Dezembro
de 1664 com 84 anos de idade. Fora enterrada coberta de ouro e de pedras preciosas.
E foi sucedida no trono pela sua querida irmã, Cambo.
342 anos após da
morte de Nzinga, não podíamos nesta rubrica dedicada a vozes femininas da África (de
hoje e de ontem) não recordá-la neste dia 17 de Dezembro, aniversário da sua morte,
certos de que o seu agir tem muito a ensinar aos africanos de hoje…
As
caravelas do navegador português, Diogo Cão, chegaram a Angola em 1484. Ao desembarcar
na região, os portugueses ficaram fascinados pela beleza, a riqueza agrícola e minerária
do país, assim como pelo desenvolvimento do seu povo. Um viajador escrevia no século
XVI em relação a esse lugar:
“Oferece aos viajadores o espectáculo mais brilhante
e mais encantador. Vinhas imensa, campos que todos os anos se cobrem de uma dupla
colheita, ricas pastagens. A natureza parece alegrar-se em reunir aqui todas as vantagens
que as mãos benfeitoras não concedem que separadamente noutras partes do mundo e,
embora negros, os habitantes do Reino de Angola são, em geral, muito educados e engenhosos”
Com
efeito, os portugueses encontraram em Angola uma população industriosa ocupada em
actividades como a tecelagem da ráfia, o trabalho do marfim, peles, fabrico de utensílios
em cobre, extracção mineira e comercio transfronteiriço. Mas o que mais atraiu a atenção
dos portugueses foram os diamantes arrastados pelo Rio Cuanza. Decidiram então apropriar-se
oficialmente dessas terras para fazer um ponto de abastecimento de escravos destinados
à valorização dos seus territórios no Brasil. A deportação maciça da população deixar-lhes-ia
caminho livre para o controlo das riquezas do país. E efectivamente, a intensidade
do tráfico de escravos na região foi tal que a dinâmica anterior da sociedade angolana
foi minada pela base.
Em 1575 a Coroa portuguesa autorizou Paulo Dias
de Novais a apropriar-se das terras a sul do Cuanza em direcção ao interior do país
o mais que pudesse. Um território onde ele tinha sido já estado em 1562 e onde fora
recebido calorosamente pela população local. Os portugueses esqueciam, todavia, que
essas terras eram parte integrante do Reino de Matamba-Ndongo. Dando-se conta das
intenções de Novais, o soberano de Matamba lançou uma ofensiva contra uma coluna portuguesa
de exploração, atirando assim a fúria dos conquistadores. A partir dos fortes erguidos
no litoral, os portugueses lançaram-se decididamente à conquista do Reino de Matamba-Ndongo
que, entre guerras, retiradas, compromissos e tratados acabou por se desagregar progressivamente.
As províncias costeiras foram as primeira as capitular. E a anexação de Ndongo amputou
Matamba da sua façada marítima, permitindo aos portugueses levar Luanda a uma prosperidade
baseada na exploração de ouro, diamante e comercio de escravos. A cidade será governada
por um vice-rei, enviado de Portugal. Do antigo Reino de Angola só restará aos soberanos
angolanos a Província de Matamba, símbolo da resistência à invasão portuguesa. Nessa
terra reinava havia várias gerações, a família da rainha Nzinga. Em 1617 à morte do
pai de Nzinga, oitavo rei do Matamba-Ndongo, o filho mais velho, um estúpido, tirano
e manhoso tomou o poder depois de ter mandado assassinar o sucessor designado pelo
defunto.
Apressado em inaugurar o seu reino por uma vitória sobre os portugueses
que já se encontravam próximo de Cabasso, capital do Reino, Mani Ngola, lança uma
ofensiva, da qual sai derrotado. Era então preciso chegar a novos pactos com os portugueses.
Confiando desta vez nos Conselheiros do Reino, decide mandar a sua irmã, princesa
Nzinga, a Luanda negociar o difícil tratado com os portugueses.
Nzinga, cujo
nome completo era Ngola Mbandi Nzinga Bandi Kia Ngola era uma hábil negociadora com
um temperamento firme e um carisma incontestável. Tinha aprendido, ainda cedo, a reagir
como um “homem” de Estado, pois seguia sempre o seu pai como uma sombra e, embora
as suas opiniões não tivessem carácter oficial, ela tinha sempre algo sensato a dizer,
o que irritava o seu irmão, que não sabia usar senão o terror como forma de impor
a sua vontade. Vexado por aquilo que ele considerava um desafio à sua autoridade e
uma humilhante provocação, ele não poupava a Nzinga nenhuma crueldade e, mais do que
uma vez, fê-la castigar por motivos fúteis.
Mas voltemos à viagem de Nzinga
Luanda, viagem que ela fez acompanhada de uma ampla delegação. 21 golpes de canhão
saudaram a sua chegada a Luanda, onde ficou maravilhada com as transformações da cidade,
mas onde sentiu também a resignação das pessoa do povo, arrancadas às suas plantações
e reduzidas a escravos ou servos. Aliás, no percurso para a residência do vice-rei,
viu também marinheiros portugueses, espanhóis, holandeses, empenhados no embarque
de centenas de escravos em fila. Luanda tinha, de facto, a fama de ser um dos mais
ferozes portos de tráficos de escravos da África. Os escravos eram aí estacionados
como bestas e cerca da metade deles morria de má nutrição e maus-tratos ainda antes
de serem transferidos para as Américas.
Chegada ao palácio do governador,
onde teve lugar uma cerimónia de boas-vindas, Nzinga foi depois acolhida pelo vice-rei,
D. João Correia de Souza para as conversações. Mas ao entrar na sala notou que havia
uma única poltrona de veludo vermelho destinado ao vice-rei e duas almofadas no chão,
onde ela devia se sentar. Esta diferença de tratamento não lhe agradou e com um gesto
repentino ordenou a uma das suas acompanhadoras que se aproximasse. Esta compreendeu
logo de que se tratava: pôs-se de joelho no tapete, apoiou-se sobre os cotovelos e
inclinou o busto por forma a que o seu dorso servisse de acento à princesa. Os europeus
presentes na sala ficaram surpreendidos e a murmurar. Um ilustrador irlandês teve
o reflexo de captar a cena. Com essa reacção Nzinga queria significar ao vice-rei
que ela não tinha vindo fazer acto de submissão e que pretendia ser tratada de igual
para igual.
A sua habilidade politica dominou toda a negociação – narram as
crónicas portuguesas da época. Ela não cedeu em nada do que pudesse por em questão
a dignidade do seu povo. O vice-rei começara por reclamar de maneira peremptória a
libertação dos prisioneiros de guerra portugueses. A princesa respondeu-lhe calmamente
que não via nenhum inconveniente nisso, desde que todos os Negros deportados como
escravos fossem reenviados às suas terras de origem. Correia de Souza voltou à ordem
do dia. As negociações foram difíceis e renhidas, mas Nzinga não largava a presa.
Conseguiu obter o recuo das tropas estrangeiras das fronteiras anteriormente reconhecidas
e o respeito da soberania de Matamba. Em troca, o Rei de Angola devia libertar os
reféns portugueses e cooperar com Luanda no comércio de escravos. No momento de concluir
as negociações, o vice-rei sugeriu que Matamba se pusesse sob a protecção do rei de
Portugal, o que significava o pagamento de impostos à coroa portuguesa, isto é cerca
de doze a treze mil escravos por ano. Perante esta proposta Nzinga respondeu:
“Saiba
que se os portugueses têm a vantagem de possuir uma civilização e saberes que os africanos
ignoram, os habitantes do Matamba têm o privilégio de estar na sua Pátria, no meio
de riquezas que, não obstante o seu poder, o rei de Portugal nunca lhes poderá garantir.
Exigis tributo de um povo que reduzistes às últimas forças. Mas, como bem sabeis,
haveríamos de pagar esse tributo no primeiro ano e no ano seguinte haveríamos da lançar
um conflito contra vós, para nos libertarmos disso. Contentai-vos em pedir agora e
uma vez por todas aquilo que vos podemos conceder”
Foi assim que,
em 1622 Nzinga fez uma entrada notável na atormentada história das relações entre
Portugal e Angola. Perante este sucesso diplomático, e a convite do vice-rei ela permaneceu
em Luanda alguns meses à espera da ratificação do novo tratado por Lisboa. Uma estada
que ela aproveitou para se impregnar da cultura lusófona, aprender a língua portuguesa
e observar os usos e costumes dos seus futuros adversários. E foi assim que ela cedeu
à amigável pressão do governador que a convidara a converter-se ao cristianismo. Embora
ela não fizesse nada sem cálculos políticos, Nzinga esperava, todavia, sinceramente
que essa conversão facilitasse as futuras relações do seu país com Portugal. Pensava
que os portugueses respeitariam melhor os soberanos negros que professassem a sua
mesma fé. Ela foi, então, baptizada na catedral de Luanda, recebendo o nome de Ana
Nzinga e tendo como madrinha e padrinho respectivamente o vice-rei Dom Correia de
Sousa e sua esposa Ana. Mas a paz durou pouco. Chegado ao fim do seu mandato o vice-rei
foi substituído por um governador que não entendia respeitar os acordos precedentes.
Os conquistadores recusaram-se retirar-se da região litigiosa de Ambaca, o que obrigou
o rei de Matamba a pegar de novo em armas para se defender. Mas esse novo conflito
nas margens do rio Cuanza ia ser fatal para o irmão de Nzinga. Impotente perante a
força militar dos portugueses, Mani Ngola teve de se mergulhar no rio para fugir aos
perseguidores. Depois de nadar até a um banco de areia, foi recolhido por dois servidores
que, como que por acaso, se encontravam aí no mesmo ilhéu. Curaram-lhe as feridas
e deram-lhe uma bebida. Pouco antes de morrer fulminado pelo veneno, o imprudente
tirano teve o tempo de perceber que Nzinga tinha-se vingado. Parece que ela tinha
combinado com os generais no sentido de uma retirada sem combate, porque considerava
que as decisões imponderadas do seu irmão punham em perigo o Reino de Matamba. Ela
sucedeu assim ao seu irmão em 1624 e permanecerá no poder por 40 anos.
A
primeira acção de Nzinga enquanto rainha foi enviar um emissário a Luanda para assegurar
aos dirigentes portugueses as suas intenções pacíficas. No entanto, permanecia cautelosa
e consciente da ameaça que eles representavam para o seu reino. Decidiu então reorganizar
e disciplinar a sua armada assim como tinha visto fazer os europeus. Estava assim
pronta a tomar o archote da resistência contra a ocupação estrangeira. Chamou à sua
causa diversos Estados vizinhos, acabando por aliar também os famosos guerreiros jagas,
ávidos de sacrifícios humanos, mas cuja força era necessária para a segurança do território.
É que quando se via obrigada pelas circunstâncias, Nzinga não tinha escrúpulos nas
suas escolhas estratégicas, mesmo que tivesse de vender a alma ao diabo. Adoptar os
métodos usados pelos jagas permitiu-lhe controlá-los e reorganizar esse grupo à sua
maneira.
Ao lado da preparação militar, Nzinga praticava também no terreno
uma verdadeira guerra psicológica. Dava asilo no seu reino aos fugitivos que queriam
abandonar os territórios controlados pelos portugueses, um gesto que servia de propaganda
em relação aos soldados africanos recrutados pela armada de ocupação. Aliás, incitava-os
a juntar-se às suas tropas, oferecendo-lhes em troca terras e fortes recompensas.
Isto contribuía para fragilizar o exercito inimigo. Servia-se também da natureza,
escolhendo as estações do ano que traziam a malária para lançar as suas ofensivas.
Tinha também uma polícia secreta, particularmente eficaz, cujos espiões controlavam
a partir dos subúrbios de Luanda a chegada de barcos provenientes de Lisboa e do Brasil
e o desembarque de armas e soldados. Estava, portanto, informada, das mínimas intenções
dos portugueses. No entanto, uma vez quase que caía numa emboscada. Não querendo cair
nas mãos do inimigo, preferiu lançar-se num precipício, mas felizmente, conseguiu
agarrar-se a uma liana, escondendo-se depois na floresta.
Os vice-reis portugueses
que se sucederam em Luanda estavam cansados dos seus insucessos perante essa rocha
indestrutível que era Nzinga. Ainda por cima uma mulher! Por fim, um deles quis jogar
com uma das suas cordas sensíveis pedindo-lhe que, como cristã, se submetesse à coroa
portuguesa. Ao que ela respondeu:
“Não sou tributária de ninguém. As
armas decidirão quem de nós, Portugal ou eu deve tributo ao outro” .
De
notar que ela tinha abjurado o catolicismo havia muito tempo, porque considerava que
a prática da religião dos seus inimigos era incompatível com o seu estatuto de rainha.
Em 1641 a frota holandesa do almirante Van Der Karkover lançou um ataque
contra Luanda na tentativa de subtrair a região aos portugueses. Nzinga viu nisto
uma oportunidade para oferecer ao seu reino, esgotado por anos de conflito, uma trégua.
Mandou, então, um emissário a Luanda propondo aos novos ocupantes da cidade, o monopólio
do comercio com Angola em troca do restabelecimento dos direitos dos soberanos angolanos
sobre os seus respectivos territórios. O almirante holandês aceitou de bom grado.
E durante os sete anos que Luanda esteve sob domínio holandês, os negociantes de Roterdão
receberam ouro, diamantes e escravos em abundância de Angola, enquanto que os camponeses
angolanos voltavam às terras férteis dos seus antepassados, transformados pelos
colonos portugueses em campos de culturas comerciais como o milho e o tabaco. Puseram-se
então a reconstruir as suas aldeias. Mas em 1648 a Europa regulou os seus numerosos
conflitos religiosos através da guerra dos 30 anos entre católicos e protestantes.
E em virtude do tratado de Westphalie a Holanda tornava-se independente e Amsterdão,
em contrapartida, devia respeitar as possessões dos seus rivais nas Américas e na
África. Uma situação que vinha estragar os planos de Zinga de aproveitar da neutralidade
holandesa para garantir a paz e a prosperidade ao seu reino.
Os portugueses
voltaram então a Luanda, e Nzinga, temendo represálias contra o seu povo, organizou
o êxodo em direcção a Matamba dos habitantes de Ndongo que, com amargura, tiveram
de queimar tudo, por forma a deixar uma terra morta ao inimigo.
Aos 73 anos
de idade Nzinga conduzia ainda as suas tropas por montanhas, florestas e savanas a
fim de que nenhum centímetro do seu reino fosse submetido. Por fim, o governador português,
Salvador Correia, mais clarividente do que os seus predecessores, compreendeu que
uma guerra interminável não era conveniente para nenhuma das duas partes. Decidiu
respeitar as linhas do novo tratado que ia propor à rainha de Matamba sem tentar tirar-lhe
o seu território e, em jeito de preparação das negociações, chegou mesmo a referir-se
ao facto de que ela tinha sido baptizada em Luanda. Mas, mais uma vez, a resposta
de Nzinga foi clara:
“Dizem que o rei de Portugal concorda em me conceder
algumas províncias do meu reino de Angola. Que direito tem ele sobre os meus Estados?
Tenho eu, por ventura, algum direito sobre os seus? Será isto porque ele é hoje o
mais forte? Mas a lei do mais forte não prova senão a potência e não legitima nunca
tais usurpações. O rei de Portugal não fará senão um acto de justiça e não de generosidade
em me restituir não só algumas províncias, mas todo o meu reino sobre o qual nem o
seu nascimento nem a sua força lhe dão algum título.”
Depois de alguns
avanços diplomáticos, o acordo quase que se bloqueava quando Nzinga recusou radicalmente
a ideia de um pagamento de tributo anual do seu país à coroa portuguesa.
“Fazei
saber ao vosso soberano – declarou ela ao diplomata Rui Pegado – que restituindo a
parte do meu reino usurpado com a força, comportar-se-ia como um cavalheiro. Mas se
o restituísse na sua totalidade, agiria como um monarca justo e generoso. Quanto ao
tributo reclamado, que ele se recorde que nunca prestei homenagem a ninguém. Não
me considero nem vassalo nem tributário de ninguém.”
Os portugueses renunciaram,
finalmente, a essa pretensão. E o tratado foi ratificado a 24 de Novembro de 1657
em Lisboa pelo jovem rei Afonso V. E foi respeitada ao longo de dois séculos. A paz
passou a reinar, finalmente, no reino da Matamba depois de trinta anos de conflitos
ininterruptos. Impelida pelo desejo de liberdade, Nzinga tinha conseguido preservar
o pouco que restava do reino de Angola. Mais tarde viria a dizer ao seu confessor:
“Pensais que me sentia feliz em passar a vida no tumulto das armas, massacres
e crueldades? Foram os vossos, os europeus que me obrigaram a isso. Apoderaram-se
dos nossos Estados, espoliaram o meu reino e queriam reduzir-nos à escravatura. Pensais
que deveria tê-los deixado levar avante os seus planos e tornar-se objecto de desprezo
da parte do meu povo? Tinha de me bater a fim de que os usurpadores me restituíssem
tudo o que nos tinham subtraído. Hoje só desejo uma coisa: rezo para que Deus perdoe
os meus pecados.”
Nzinga sabia que enquanto ela vivesse o seu reino
estaria ao abrigo de qualquer ocupação estrangeira. Mas o caminho para chegar a isso
foi longo. E foi de certo modo um pouco por isso que ela se converteu de novo ao cristianismo.
Não por calculo politico como quando se convertera em Luanda, mas porque agora se
sentia tocada pela graça. Abriu então as suas portas a missionários europeus, os nobres
angolanos converteram-se também ao cristianismo seguindo a rainha e o catolicismo
tornou-se religião de Estado. Mas a grande maioria da população continuou a professar
a religião tradicional africana. Nzinga proibiu também os sacrifícios humanos
tradicionais em todo o seu reino e mandou construir uma igreja na capital de Matamba,
lançando ela própria a primeira pedra. Vinda a paz, a rainha pôde dedicar-se
à vida das cerimónias de corte. Ainda cheia de vitalidade aos 80 anos e muito bem
cuidada, para além dessas cerimonias, reorganizou a administração do reino, colocando
sempre ao lado de um homem com responsabilidades um adjunto mulher e pedindo contas
a ambos separadamente. Deslocava-se regularmente aos seus campos agrícolas, ia à caça
e, nos fins de semana recebia as mulheres da nobreza angolana que, por sua iniciativa,
seguiam cursos de leitura, de corte e costura e de bordados. Exigia também que as
suas compatriotas femininas se exercitassem com as armas a fim de serem úteis em caso
de necessidade.
Em Dezembro de 1664 à idade de 82 anos, uma inflamação na
garganta levou Nzinga a enfraquecer cada vez mais. E na manhã do dia 17 depois de
ter recebido a extrema unção convocou os seus ministros anunciou-lhes que se sentia
feliz por morrer na fé católica e que se arrependia de ter praticado os costumes bárbaros
dos jagas e de ter versado sangue inocente. E voltando-se para o primeiro ministro
recomendou-lhe que conservasse o reino em paz e em bom estado como ela o deixava,
e que defendesse com vigor a causa de Deus.