Há 306 anos era queimada viva na fogueira Kimpa Vita, profetiza do Reino do Kongo
ÁFRICA.VOZES FEMININAS 9 de Julho de 2006
Fez
no dia 2 de Julho deste ano de 2006 três séculos que Kimpa Vita, ou Dona Beatriz,
foi queimada na fogueira devido às suas pretensões de ter recebido de Santo António
o mandato de resgatar o povo do Reino do Congo do marasmo social, político e religioso
em que tinha caído. Recordamos hoje, na rubrica “África. Vozes Femininas” esta controversa
figura da história africana e dos seus entrelaçamentos com a presença dos europeus
em África.
“No dia do Juízo final Deus não me perguntará se sou do Congo.
Olhará, isso sim, para a transparência da minha alma”. É com esta célebre frase de
Kimpa Vita que o calendário-livro “Dias de África. Personagens, Eventos, Acontecimentos”
recentemente publicado, em italiano, por Pier Maria Mazzola, assinala o dia da morte
de Kimpa Vita mais conhecida por Dona Beatriz e definida a “Joana d’Arco africana”.
Profetisa popular, Kimpa Vita foi condenada à morte na fogueira pelo Manikongo (ou
Rei do Congo) Pedro IV a 2 de Julho de 1706 – faz este ano, portanto, três séculos.
No seu livro Rainhas de África e Heroínas da Diáspora Negra, publicado em
2005 na capital francesa, pelas edições Sépia, a historiadora das Antilhas, Sylvia
Serbin, dedica nove páginas a Kimpa Vita, escrevendo a este propósito:
“Considerando-se
inspirada por Deus, esta jovem cristã congolesa levou os seus compatriotas a reagir
à crescente influência dos missionários europeus na condução do seu país. (…) Estes
reagiram convencendo o pequeno rei que então governava o Reino do Congo a condená-la.
Morreu na fogueira”.
Sylvia passa depois a ilustrar o contexto histórico que
levou a este desfecho dramático para Kimpa Vita.
*** A sociedade do antigo
Reino do Kongo era, antes do domínio europeu, dividida em aristocratas, nobres das
cidades, aldeões (repartidos pelas províncias), e escravos. Os lugares-chave eram
reservados aos próximos do Rei, que nomeava os governadores das províncias. Mas dado
que os reis eram eleitos sob o controlo dum Conselho real que representava os clãs
mais importantes, as lutas pela sucessão eram frequentes.
Assim, no início
do século XVIII o Reino, que abrangia o Norte de Angola e a actual República Democrática
do Congo, encontrava-se devastado por uma terrível luta entre clãs. A guerra civil
que precedeu as vicissitudes de Kimpa Vita foi, de facto, provocada pela obstinação
de dois pretendentes ao trono que reivindicavam, cada um o poder para a sua linhagem:
a dos Kimpanzu, que já tinha dado mais de 10 reis ao Kongo, e a dos Kimuzala que
tinha sucedido nos intervalos.
Antes dessas lutas, o Reino do Kongo era uma
das regiões mais desenvolvidas e férteis da África, onde - segundo o antropólogo alemão
Léo Frobenius - os primeiros navegadores portugueses encontraram multidões vestidas
de seda e de veludo, soberanos potentes, industrias opulentas, pessoas civilizadas
até aos ossos!
Sem se deixar levar pelo entusiasmo destes escritos, Sylvia
sublinha que graças a recursos como o ouro, o ferro, a extracção do sal, a produção
do veludo, o trabalho da madeira, a produção de jóias e objectos de cobre, a segurança
alimentar que lhe vinha da riqueza agro-florestal, o Reino do Kongo gozava da supremacia
na região.
A chegada dos missionários europeus vai, no entanto, marcar uma
viragem significativa na vida dos habitantes do Reino. Habitado por cerca de um milhão
de pessoas, os missionários encontraram no Reino do Kongo um ambiente propício para
a sua campanha de evangelização. Começaram por evangelizar os aristocratas e os habitantes
das cidades, uma vez que as pessoas do campo permaneciam muito mais ligadas aos cultos
tradicionais. A família real converteu-se ao cristianismo já em 1491. Segui-se-lhe
a aristocracia local. Muita gente se faz baptizar.
Graças ao seu papel de
conselheiros influentes dos reis, os missionários começaram a pouco e pouco a imiscuir-se
na vida do Reino. Um dos seus melhores interlocutores é o Rei Afonso I, “de tal modo
absorvido pela leitura dos livros sobre o cristianismo que adormecia sobre eles, esquecendo-se
de comer” Durante o seu reinado, que foi de 1506 a 1543, fez do catolicismo religião
do Estado, mudou o nome da capital do Reino, Mbanza Kongo, para São Salvador e abriu
amplamente o país ao seu “amigo”, o rei de Portugal com quem trocava uma importante
correspondência. Uma brecha – escreve Sylvia Serbin – na qual se enfiaram missionários,
comerciantes e aventureiros de várias origens. As congregações não se fizeram rogar:
franciscanos, jesuítas, capuchinhos, dominicanos, agostinianos, sucederam-se na evangelização
do Kongo ao longo dos anos.
*** A adesão desse rei “assimilado” à cultura
portuguesa e a consequente adjunção de elementos exteriores transformou profundamente
a sociedade local, provocando mudanças nomeadamente no domínio religioso, da educação
e dos princípios de governação e administração do país que, passou a ser recalcado
no modelo português. Assim, Afonso I criou escolas para raparigas mesmo nas províncias
mais remotas do país e, querendo favorecer a formação dum clero africano, mandou
muitos rapazes estudar em Portugal. Um deles foi o seu próprio filho Henrique, enviado
ainda jovenzinho, e que com apenas 18 anos pronunciara um brilhante discurso em latim
perante diversos cardeais reunidos em Roma. Três anos mais tarde, em 1518, era sagrado
bispo em Roma. Regressou ao Kongo em 1521. Mas a sua frágil saúde levou-o à morte
nove anos depois, sem ter podido ter um papel marcante na igreja católica no Kongo.
As
relações idílicas entre o Kongo e Portugal vieram, contudo, a entrar numa fase de
dificuldade e ruptura devido à questão da escravatura. Necessitando de mão de obra
para as plantações das Américas que tinham sido descobertas, os portugueses vêem no
Reino do Kongo um posto de abastecimento humano do tráfico negreiro. Chocado com a
pouca consideração que os europeus reservavam aos seus cidadãos e desiludido pelo
modo como os princípios morais introduzidos pelo cristianismo não eram aplicados aos
africanos, o Rei Afonso I, proibiu toda e qualquer forma de comercio de escravos no
seu território. Uma decisão que não agradou nada aos negreiros brancos que chegaram
mesmo a tentar assassiná-lo em plena missa de Páscoa de 1540. No entanto, príncipes,
duques, marqueses e outros nobres locais até então fiéis às ordens do Rei, - sedentos
de produtos europeus - submetem-se às regras dos portugueses que decidem aceitar
em troca desses produtos apenas escravos. Nada impede, agora, a esses nobres, banalizar
as instituições da monarquia e desencadear guerras se assim lhes apetecer. Vale a
pena recordar que no Reino do Congo os escravos que faziam como, vimos parte da estrutura
social, eram utilizados nos trabalhos agrícolas e ao serviço da nobreza provincial,
mas não comercializados.
Colaboradores da Metrópole portuguesa à qual transmitiam
sempre informações sobre os diversos aspectos geográficos, económicos, sociológicos
e políticos das áreas africanas onde se tinham implantado e das quais conheciam as
forças e as fraquezas, os missionários não se demarcam dessa situação, e na população
cria-se uma certa desconfiança em relação a eles.
Assim, depois da morte de
Afonso I, as lutas entre clãs pela captura de escravos domina a vida política do Reino,
que acaba por cair na decadência no século XVIII. Guerras, fome, epidemia … apoderaram-se
da população, a qual não sabe a que santo rogar para o retorno da paz.
*** É
neste contexto que surge, em 1704, Kimpa Vita. Declara ter recebido de Santo António,
padroeiro dos náufragos e dos que sofrem, a missão de reunir o povo para pôr termo
às desordens e permitir ao Reino recuperar a sua potencia.
No meio do desespero,
e como já acontecera noutras situações, sobretudo no contexto das crises ligadas à
presença dos europeus no continente, o povo dava ouvido a todos aqueles (feiticeiros,
profetas, sacerdotisas, e outros ) que, de algum modo, prometiam ajudá-lo a reencontrar
a paz e a responder às interrogações sobre o porquê da presença desses brancos em
África e porque é que espoliavam os africanos dos seus bens e da sua dignidade. Esses
dissidentes religiosos - escreve Sylvia Serbin nas páginas sobre Kimpa Vita – pregavam,
por vezes, a rejeição do cristianismo que, a seu ver, tinha coincidido com os males
provocados pela escravatura e o colonialismo. O Cristianismo pregava a igualdade e
a fraternidade entre os homens e dizia que Deus não fazia nenhuma distinção entre
os seres humanos. Porque então os europeus impunham aos africanos essa flagrante desigualdade
em nome da sua superioridade racial? Daí que muitos profetas diziam que era necessário
um cristianismo africanizado, uma espécie de embrião – se assim se pode dizer – daquilo
que é hoje a inculturação.
***
Nascida de uma família aristocrática,
Kimpa Vita, educada no catolicismo, retoma o seu nome cristão e põe-se, então, à cabeça
dum grupo de discípulos, percorrendo, infatigavelmente, todas as aldeias e províncias
ligadas a São Salvador (Mbanza Kongo), a cidade das sete igrejas, entretanto destruída
e abandonada pela sua população. Alta e esbelta, Kimpa Vita apresentava-se sempre
vestida de um pano de veludo de ráfia verde e uma coroa de fibras entrançadas na testa.
O seu rosto de traços finos exprimia uma grande serenidade e firmeza nas suas pregações.
Declarando que renunciou a todos os seus haveres depois que Santo António
lhe apareceu e lhe confiou a missão de libertar o seu povo, Kimpa Vita exorta os seus
fiéis a renunciar aos objectos ligados à feitiçaria e às pequenas cruzes impostas
pela religião estrangeira. Anuncia o advento de um tempo novo, de renascença dum reino
onde o povo não viverá mais na miséria. Os seus adeptos são cada vez mais numerosos.
As pessoas acreditam realmente nesse mundo novo, onde haja uma religião mais próxima
delas, uma religião onde os anjos não sejam apenas brancos, mas haja também negros.
“A verdadeira Terra Santa é no Congo – dizia ela aos seus discípulos – Os
verdadeiros fundadores da religião católica são da nossa raça, de raça negra. Jesus
Cristo nasceu em São Salvador, mas os brancos falam de Belém! Foi baptizado em Sundi,
que é chamado Nazaré. Mas, saibam que Jesus Cristo, Nossa Senhora e São Francisco
são também originários do Kongo! Que todos os missionários que se apoderam das nossas
riquezas em proveito unicamente dos brancos, abandonem o Kongo! São contra a potencia
do nosso Reino. Santo António é o nosso remédio. Só ele nos entende, só ele nos poderá
ajudar a reconstruir o nosso país”.
As palavras de Kimpa ecoam por todo
o Reino. Devagar, devagar, muitos nobres começam também a seguir os seus preceitos.
Diz-se que cura doentes, que árvores ressequidas resplandecem à sua passagem, as pessoas
disputam os restos das suas refeições, que consideram benéficas… Além disso, há o
ritual da sexta-feira: todas as sextas-feiras ela se retira em silêncio absoluto.
Sexta-feira simboliza para ela a morte de Cristo. Diz que nesse retiro ela vai ao
Céu defender a causa dos Negros. Sábado, retorna às suas actividades de pregação
de aldeia em aldeia, de província em província.
***
Considerada por
multidões exaltadas uma profetisa, Kimpa Vita decide ir falar com o Rei Pedro IV
que se tinha refugiado com os seus sequazes nos montes Kibangu. Ela quer convencê-lo
a regressar a São Salvador. Filho de um príncipe kimpanzu e de uma nobre kimuzala
(as partes em conflito) ele tinha sido eleito Rei com a esperança de que essa sua
dupla pertença pudesse beneficiar a procura da paz. A sua eleição tinha sido vista
de bons olhos pelos missionários capuchinhos – escreve Sylvia Serbin - que não desdenhavam
a sua fraqueza de carácter. Não obstante o veto dos capuchinhos – continua Sylvia
- Pedro IV aceitou receber Kimpa Vita e tal como a sua esposa e o chefe dos seus generais,
ele é conquistado pelo seu carisma e a sua mensagem cheia de bom senso.
Muitos
daqueles que tinham abandonado a cidade começam a regressar e a reconstruí-la. Alguns
príncipes rebeldes declaram-se prontos a reconciliar-se com o Rei. Kimpa começa a
enviar para todos os cantos do país mensageiros chamados “pequenos Antónios”. O sucesso
é grande! Populações de cultos tradicionais, aderem à sua mensagem. Clãs aristocráticos
começam a virar as costas à Igreja católica. Em menos de dois anos Kimpa Vita põe
de pé os alicerces duma nova igreja africanizada, em que se misturam influências católicas
e práticas tradicionais.
Os missionários começam então a ver nela uma ameaça
para a sua posição e os seus privilégios – sublinha Sylvia Serbin no seu livro Rainhas
da África e heroínas da Diáspora Negra. Essa reacção do povo era, aos olhos dos missionários,
muito perigosa para que fosse deixada sem controlo. Isolado na sua colina o Rei era
mais facilmente controlável. Não se podia permitir a restauração dum reino forte que
daria aos congoleses o gosto da resistência. Além disso – recorda ainda a autora –
os portugueses instalados nas vizinhas colinas angolanas esperavam apenas o momento
propício para submeterem todo o território do Reino do Congo.
Manipular um
Rei sem carácter como Pedro IV será apenas uma brincadeira de criança. Os missionários
tentam, então persuadi-lo de que Kimpa Vita ofuscará a sua imagem, porá o seu poder
em perigo. O Rei hesita. Teme ferir o sentimento popular mandando deter Kimpa Vita.
Mas os missionários não desistem do seu intento. Pedro IV ordena então a repressão
do movimento. Kimpa tem apenas o tempo de fugir e de se refugiar na floresta em companhia
de alguns discípulos. É ali que dá à luz um rapaz, filho de Barro, o seu fiel companheiro
de pregação. E’ ali que é encontrada pelos soldados do Rei, enquanto aleita o bebé.
O Rei continua a hesitar. Não está certo de que ela seja assim tão perigosa. Ela parece
sincera na sua determinação em garantir aos congoleses uma vida melhor num país unido.
Mas os missionários pressionam esse reizinho – palavras da autora – a tomar uma decisão,
pedindo-lhe para a deter. Ela é então submetida a um primeiro interrogatório por um
missionário sobre a origem do seu filho:
“Não posso negar que seja meu. Mas
como é que o tive não sei. Sei apenas que veio do Céu e que será o salvador do meu
povo”
Kimpa é, então, algemada e conduzida perante o Padre Bernardo di Gallo,
o Superior dos Capuchinhos, para uma interrogação mais aprofundada. Ela leva sempre
o bebé consigo.
Quem sois – pergunta-lhe o Padre. Vim do Céu – responde.
E que novidades trazeis de lá? Há lá Negros do Congo, estão lá com a sua cor negra?
Impassível – revela Sylvia Serbin – Kimpa Vita responde que no Céu há congoleses,
crianças e adultos, mas que não têm nem a cor branca nem a cor negra pois que, no
Céu não há nenhuma cor. Os seus interrogadores ficam escandalizados. Negros no Céu,
onde é que se viu isto?!
Kimpa Vita, ou Dona Beatriz é então acusada de heresia.
Os missionários reclamam um castigo exemplar. Esse castigo será a morte. “Que me importa
morrer, exclama Dona Beatriz, O meu corpo não é senão pó. Não lhe atribuo muita importância.
Cedo ou tarde será reduzido a cinza”.
E é com uma descrição do P. Laurent
de Lucques que assistiu à execução de Kimpa Vita, a 2 de Julho de 1706 que Sylvia
conclui as páginas que dedica à “Joana d’Arco Africana” como viria a ser mais tarde
denominada.
“O basciamucano, ou seja o juiz pronunciou finalmente a sentença
contra Dona Beatriz, dizendo que sob o falso nome de Santo António, ela tinha enganado
o povo com as suas heresias e falsidades. Consequentemente o Rei seu senhor e o Conselho
real a condenava à morte na fogueira, assim como também ao seu companheiro que se
fazia chamar São João. Lida a sentença foram conduzidos à fogueira. Ela levava o seu
filho nos braços. Houve então um tão grande tumulto entre a multidão desesperada que
não houve meio de nós prestarmos qualquer assistência aos dois condenados. Tinham
juntado aí um monte de lenha sobre o qual eles foram postos. Foram cobertos com mais
lenha e foram queimados vivos. Não contentes disso, no dia seguinte alguns homens
foram ainda queimar aquilo ou aqueles que tinham ficado, reduzindo tudo a cinzas muito
fina”.
O filho de D. Beatriz – revela a autora – foi salvo pelo P. Laurent
Lucques que, considerando-o inocente em relação aos erros da mãe, obteve do Rei a
graça para ele.
“Africa. Vozes Femininas”. Com a rubrica de hoje quisemos
recordar, a 3 séculos da sua morte na fogueira, Kimpa Vita ou Dona Beatriz do Kongo,
figura controversa da história do antigo Reino do Kongo. Fizemo-lo através dalgumas
páginas publicadas pela historiadora das Antilhas, Sylvia Serbin no seu livro Rainhas
da África e Heroínas da Diáspora Negra, publicada em 2005 pelas edições Sépia, na
capital francesa. Até para a semana com “África. Vozes Femininas”, a rubrica dedicada
às mulheres da África e não só.