Família e natureza do diálogo inter-religioso: temas abordados pelo Papa no encontro
de fim do ano com a Cúria Romana
De entre os “temas fundamentais do momento presente da nossa história”, no encontro
com a Cúria Romana para a apresentação de votos de boas-festas de Natal, nesta sexta-feira,
21, Bento XVI cuidou de clarificar brevemente duas questões: família e diálogo inter-religioso,
acrescendo no final duas palavras sobre a evangelização. Como é tradição nesta
circunstância anual, o Santo Padre começou por evocar alguns momentos mais salientes
no âmbito da vida da Igreja e do seu ministério petrino, em 2012. Antes de mais as
viagens ao México e a Cuba, mas também a grande Festa da Família, em Milão, a visita
ao Líbano, com a entrega da Exortação Apostólica sobre o Médio Oriente, e finalmente
o Sínodo sobre a Nova Evangelização, com o início do Ano da Fé e a comemoração da
abertura, há 50 anos, do Concílio Vaticano II. “Todas estas ocasiões permitiram
tocar temas fundamentais do momento presente da nossa história: a família (Milão),
o serviço em prol da paz no mundo e o diálogo inter-religioso (Líbano), bem como o
anúncio da mensagem de Jesus Cristo, no nosso tempo, àqueles que ainda não O encontraram
e a muitos que só O conhecem por fora e, por isso mesmo, não O reconhecem”.
Partindo
pois destas grandes temáticas, Bento XVI referiu querer reflectir um pouco mais detalhadamente
sobre o tema da família e sobre a natureza do diálogo.
Sobre o primeiro tema,
o Papa partiu da experiência do encontro mundial de Milão, que “mostrou que a família,
não obstante as múltiplas impressões em contrário, está forte e viva também hoje”
– disse Bento XVI, logo reconhecendo, porém que “é incontestável – especialmente no
mundo ocidental – a crise que a ameaça até nas suas próprias bases”. Uma crise profunda
e complexa.
“na questão da família, não está em jogo meramente uma determinada
forma social, mas o próprio homem: está em questão o que é o homem e o que é preciso
fazer para ser justamente homem. Os desafios, neste contexto, são complexos.”
Antes
de mais, “a questão da capacidade que o homem tem de se vincular ou então da sua falta
de vínculos. Pode o homem vincular-se para toda a vida? Isto está de acordo com a
sua natureza? ... Vale a pena também sofrer por um vínculo?” “A recusa do vínculo
humano, que se vai generalizando cada vez mais por causa duma noção errada de liberdade
e de auto-realização e ainda devido à fuga da perspectiva duma paciente suportação
do sofrimento, significa que o homem permanece fechado em si mesmo e, em última análise,
conserva o próprio «eu» para si mesmo, não o supera verdadeiramente”. “Com a recusa
de tal vínculo, desaparecem também as figuras fundamentais da existência humana: o
pai, a mãe, o filho; caem dimensões essenciais da experiência de ser pessoa humana.” “Na
luta pela família, está em jogo o próprio homem. E torna-se evidente que, onde Deus
é negado, dissolve-se também a dignidade do homem. Quem defende Deus, defende o homem.”
Passando
ao “segundo grande tema que (disse) desde Assis até ao Sínodo sobre a Nova Evangelização,
permeou todo o ano” 2012 – a questão do diálogo e do anúncio – Bento XVI refletiu
antes de mais sobre o diálogo, apontando três campos, para a Igreja, no nosso tempo:
diálogo com os Estados; diálogo com a sociedade (e portanto com as culturas, e com
a ciência) e, finalmente, com as religiões. Em todos estes diálogos, a Igreja
fala a partir da luz que a fé lhe dá. Ao mesmo tempo, porém, ela encarna a memória
da humanidade que, desde os primórdios e através dos tempos, é memória das experiências
e dos sofrimentos da humanidade, onde a Igreja aprendeu o que significa ser homem,
experimentando o seu limite e grandeza, as suas possibilidades e limitações. A cultura
do humano, de que ela se faz garante, nasceu e desenvolveu-se a partir do encontro
entre a revelação de Deus e a existência humana. “No diálogo com o Estado e a
sociedade (reconheceu o Papa), naturalmente que a Igreja não tem soluções prontas
para as diversas questões. Contudo (sublinhou), unida às outras forças sociais, a
Igreja há-de lutar pelas respostas que melhor correspondam à justa medida do ser humano».
«Aquilo que (a Igreja) identificou como valores fundamentais, constitutivos
e não negociáveis da existência humana, deve defendê-lo com a máxima clareza. Deve
fazer todo o possível por criar uma convicção que possa depois traduzir-se em acção
política”.
Passando ao diálogo com as religiões, o Papa observou que “na situação
actual da humanidade, este é uma condição necessária para a paz no mundo, constituindo
por isso mesmo um dever para os cristãos bem como para as outras crenças religiosas.”
Ora o diálogo das religiões possui diversas dimensões: antes de mais, diálogo da vida,
diálogo da acção compartilhada. Trata-se dos problemas concretos da convivência e
da responsabilidade comum pela sociedade, pelo Estado, pela humanidade. “É necessário
fazer da responsabilidade comum pela justiça e a paz o critério basilar do diálogo.
Um diálogo, onde se trate de paz e de justiça indo mais além do que é simplesmente
pragmático, torna-se por si mesmo uma luta ética sobre os valores que são pressupostos
em tudo. Assim o diálogo, ao princípio meramente prático, torna-se também uma luta
pelo justo modo de ser pessoa humana.”
Ainda sobre o diálogo inter-religioso,
Bento XVI deteve-se a comentar duas regras consideradas fundamentais, hoje em dia,
para a sua própria essência: que “o diálogo não tem como alvo a conversão, mas sim
a compreensão”; e que, portanto, neste diálogo, ambas as partes permanecem deliberadamente
na sua identidade própria”. Embora reconhecendo como corretos estes princípios, contudo
– advertiu o Papa - seria superficial ficar por aí. «a busca de conhecimento
e compreensão sempre pretende ser também uma aproximação da verdade. Assim, ambas
as partes, aproximando-se passo a passo da verdade, avançam e caminham para uma maior
partilha, que se funda sobre a unidade da verdade”. “Eu diria que o cristão possui
a grande confiança, mais ainda, a certeza basilar de poder tranquilamente fazer-se
ao largo no vasto mar da verdade, sem dever temer pela sua identidade de cristão”.
Eis
a tradução completa do seu discurso, pronunciado em italiano:
Senhores Cardeais, Venerados
Irmãos no Episcopado e no Presbiterado, Queridos irmãos e irmãs!
Com grande
alegria, me encontro hoje convosco, amados membros do Colégio Cardinalício, representantes
da Cúria Romana e do Governatorado, para este momento tradicional antes do Natal.
A cada um de vós dirijo uma cordial saudação, começando pelo Cardeal Angelo Sodano,
a quem agradeço as amáveis palavras e os ardentes votos que me exprimiu em nome dele
e vosso. O Cardeal Decano recordou-nos uma frase que se repete muitas vezes na liturgia
latina destes dias: «Prope este iam Dominus, venite, adoremus! – O Senhor está perto;
vinde, adoremos!». Também nós, como uma única família, nos preparamos para adorar,
na gruta de Belém, aquele Menino que é Deus em pessoa e tão próximo que Se fez homem
como nós. De bom grado retribuo os votos formulados e agradeço de coração a todos,
incluindo os Representantes Pontifícios espalhados pelo mundo, pela generosa e qualificada
colaboração que cada um presta ao meu ministério.
Encontramo-nos no fim de
mais um ano, também este caracterizado – na Igreja e no mundo – por muitas situações
atribuladas, por grandes problemas e desafios, mas também por sinais de esperança.
Limito-me a mencionar alguns momentos salientes no âmbito da vida da Igreja e do meu
ministério petrino. Começo pelas viagens realizadas ao México e a Cuba: encontros
inesquecíveis com a força da fé, profundamente enraizada nos corações dos homens,
e com a alegria pela vida que brota da fé. Recordo que, depois da chegada ao México,
na borda do longo troço de estrada que tivemos de percorrer, havia fileiras infindáveis
de pessoas que saudavam, acenando com lenços e bandeiras. Recordo que, durante o trajecto
para Guanajuato – pitoresca capital do Estado do mesmo nome –, havia jovens devotamente
ajoelhados na margem da estrada para receber a bênção do Sucessor de Pedro; recordo
como a grande liturgia, nas proximidades da estátua de Cristo-Rei, constituiu um acto
que tornou presente a realeza de Cristo: a sua paz, a sua justiça, a sua verdade.
E tudo isto, tendo como pano de fundo os problemas dum país que sofre devido a múltiplas
formas de violência e a dificuldades resultantes de dependências económicas. Sem dúvida,
são problemas que não se podem resolver simplesmente com a religiosidade, mas sê-lo-ão
ainda menos sem aquela purificação interior dos corações que provém da força da fé,
do encontro com Jesus Cristo. Seguiu-se a experiência de Cuba; também lá nas grandes
liturgias, com seus cânticos, orações e silêncios, se tornou perceptível a presença
d’Aquele a quem, por muito tempo, se quisera recusar um lugar no país. A busca, naquele
país, de uma justa configuração da relação entre vínculos e liberdade, seguramente,
não poderá ter êxito sem uma referência àqueles critérios fundamentais que se manifestaram
à humanidade no encontro com o Deus de Jesus Cristo.
Como sucessivas etapas
deste ano que se encaminha para o fim, gostava de mencionar a grande Festa da Família
em Milão, bem como a visita ao Líbano com a entrega da Exortação apostólica pós-sinodal
que deverá agora constituir, na vida das Igrejas e da sociedade no Médio Oriente,
uma orientação nos difíceis caminhos da unidade e da paz. O último acontecimento importante
deste ano, a chegar ao ocaso, foi o Sínodo sobre a Nova Evangelização, que constituiu
ao mesmo tempo um início comunitário do Ano da Fé, com que comemorámos a abertura
do Concílio Vaticano II, cinquenta anos atrás, para o compreender e assimilar novamente
na actual situação em mudança.
Todas estas ocasiões permitiram tocar temas
fundamentais do momento presente da nossa história: a família (Milão), o serviço em
prol da paz no mundo e o diálogo inter-religioso (Líbano), bem como o anúncio da mensagem
de Jesus Cristo, no nosso tempo, àqueles que ainda não O encontraram e a muitos que
só O conhecem por fora e, por isso mesmo, não O reconhecem. De todas estas grandes
temáticas, quero reflectir um pouco mais detalhadamente sobre o tema da família
e sobre a natureza do diálogo, acrescentando ainda uma breve consideração sobre
o tema da Nova Evangelização.
A grande alegria, com que se encontraram em
Milão famílias vindas de todo o mundo, mostrou que a família, não obstante as múltiplas
impressões em contrário, está forte e viva também hoje; mas é incontestável – especialmente
no mundo ocidental – a crise que a ameaça até nas suas próprias bases. Impressionou-me
que se tenha repetidamente sublinhado, no Sínodo, a importância da família como lugar
autêntico onde se transmitem as formas fundamentais de ser pessoa humana. É vivendo-as
e sofrendo-as, juntos, que as mesmas se aprendem. Assim se tornou evidente que, na
questão da família, não está em jogo meramente uma determinada forma social, mas o
próprio homem: está em questão o que é o homem e o que é preciso fazer para ser justamente
homem. Os desafios, neste contexto, são complexos. Há, antes de mais nada, a questão
da capacidade que o homem tem de se vincular ou então da sua falta de vínculos. Pode
o homem vincular-se para toda a vida? Isto está de acordo com a sua natureza? Ou não
estará porventura em contraste com a sua liberdade e com a auto-realização em toda
a sua amplitude? Será que o ser humano se torna-se ele próprio, permanecendo autónomo
e entrando em contacto com o outro apenas através de relações que pode interromper
a qualquer momento? Um vínculo por toda a vida está em contraste com a liberdade?
Vale a pena também sofrer por um vínculo? A recusa do vínculo humano, que se vai generalizando
cada vez mais por causa duma noção errada de liberdade e de auto-realização e ainda
devido à fuga da perspectiva duma paciente suportação do sofrimento, significa que
o homem permanece fechado em si mesmo e, em última análise, conserva o próprio «eu»
para si mesmo, não o supera verdadeiramente. Mas, só no dom de si é que o homem se
alcança a si mesmo, e só abrindo-se ao outro, aos outros, aos filhos, à família, só
deixando-se plasmar pelo sofrimento é que ele descobre a grandeza de ser pessoa humana.
Com a recusa de tal vínculo, desaparecem também as figuras fundamentais da existência
humana: o pai, a mãe, o filho; caem dimensões essenciais da experiência de ser pessoa
humana.
Num tratado cuidadosamente documentado e profundamente comovente,
o rabino-chefe de França, Gilles Bernheim, mostrou que o ataque à forma autêntica
da família (constituída por pai, mãe e filho), ao qual nos encontramos hoje expostos
– um verdadeiro atentado –, atinge uma dimensão ainda mais profunda. Se antes tínhamos
visto como causa da crise da família um mal-entendido acerca da essência da liberdade
humana, agora torna-se claro que aqui está em jogo a visão do próprio ser, do que
significa realmente ser homem. Ele cita o célebre aforismo de Simone de Beauvoir:
«Não se nasce mulher; fazem-na mulher – On ne nat pas femme, on le devient». Nestas
palavras, manifesta-se o fundamento daquilo que hoje, sob o vocábulo «gender - género»,
é apresentado como nova filosofia da sexualidade. De acordo com tal filosofia, o sexo
já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente
de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente, enquanto
até agora era a sociedade quem a decidia. Salta aos olhos a profunda falsidade desta
teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. O homem contesta o facto
de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser
humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto
pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da
criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem
ou como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É precisamente
esta dualidade como ponto de partida que é contestada. Deixou de ser válido aquilo
que se lê na narração da criação: «Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Isto deixou
de ser válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher; mas teria sido
a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a decidir
sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da pessoa humana,
já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora, é só espírito e vontade.
A manipulação da natureza, que hoje deploramos relativamente ao meio ambiente, torna-se
aqui a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora existe apenas o homem
em abstracto, que em seguida escolhe para si, autonomamente, qualquer coisa como sua
natureza. Homem e mulher são contestados como exigência, ditada pela criação, de haver
formas da pessoa humana que se completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade
de homem e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família
como realidade pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole perdeu
o lugar que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é própria; Bernheim
mostra como o filho, de sujeito jurídico que era com direito próprio, passe agora
necessariamente a objecto, ao qual se tem direito e que, como objecto de um direito,
se pode adquirir. Onde a liberdade do fazer se torna liberdade de fazer-se por si
mesmo, chega-se necessariamente a negar o próprio Criador; e, consequentemente, o
próprio homem como criatura de Deus, como imagem de Deus, é degradado na essência
do seu ser. Na luta pela família, está em jogo o próprio homem. E torna-se evidente
que, onde Deus é negado, dissolve-se também a dignidade do homem. Quem defende Deus,
defende o homem.
Dito isto, gostava de chegar ao segundo grande tema que,
desde Assis até ao Sínodo sobre a Nova Evangelização, permeou todo o ano que chega
ao fim: a questão do diálogo e do anúncio. Comecemos pelo diálogo. No nosso tempo,
para a Igreja, vejo principalmente três campos de diálogo, onde ela deve estar presente
lutando pelo homem e pelo que significa ser pessoa humana: o diálogo com os Estados,
o diálogo com a sociedade – aqui está incluído o diálogo com as culturas e com a ciência
– e, finalmente, o diálogo com as religiões. Em todos estes diálogos, a Igreja fala
a partir da luz que a fé lhe dá. Ao mesmo tempo, porém, ela encarna a memória da humanidade
que, desde os primórdios e através dos tempos, é memória das experiências e dos sofrimentos
da humanidade, onde a Igreja aprendeu o que significa ser homem, experimentando o
seu limite e grandeza, as suas possibilidades e limitações. A cultura do humano, de
que ela se faz garante, nasceu e desenvolveu-se a partir do encontro entre a revelação
de Deus e a existência humana. A Igreja representa a memória do que é ser homem defronte
a uma civilização do esquecimento que já só se conhece a si mesma e só reconhece o
próprio critério de medição. Mas, assim como uma pessoa sem memória perdeu a sua identidade,
assim também uma humanidade sem memória perderia a própria identidade. Aquilo que
foi dado ver à Igreja, no encontro entre revelação e experiência humana, ultrapassa
sem dúvida o mero âmbito da razão, mas não constitui um mundo particular que seria
desprovido de interesse para o não-crente. Se o homem, com o próprio pensamento entra
na reflexão e na compreensão daqueles conhecimentos, estes alargam o horizonte da
razão e isto diz respeito também àqueles que não conseguem partilhar a fé da Igreja.
No diálogo com o Estado e a sociedade, naturalmente a Igreja não tem soluções prontas
para as diversas questões. Mas, unida às outras forças sociais, lutará pelas respostas
que melhor correspondam à justa medida do ser humano. Aquilo que ela identificou como
valores fundamentais, constitutivos e não negociáveis da existência humana, deve defendê-lo
com a máxima clareza. Deve fazer todo o possível por criar uma convicção que possa
depois traduzir-se em acção política.
Na situação actual da humanidade, o
diálogo das religiões é uma condição necessária para a paz no mundo, constituindo
por isso mesmo um dever para os cristãos bem como para as outras crenças religiosas.
Este diálogo das religiões possui diversas dimensões. Há-de ser, antes de tudo, simplesmente
um diálogo da vida, um diálogo da acção compartilhada. Nele, não se falará dos grandes
temas da fé – se Deus é trinitário, ou como se deve entender a inspiração das Escrituras
Sagradas, etc. –, mas trata-se dos problemas concretos da convivência e da responsabilidade
comum pela sociedade, pelo Estado, pela humanidade. Aqui é preciso aprender a aceitar
o outro na sua forma de ser e pensar de modo diverso. Para isso, é necessário fazer
da responsabilidade comum pela justiça e a paz o critério basilar do diálogo. Um diálogo,
onde se trate de paz e de justiça indo mais além do que é simplesmente pragmático,
torna-se por si mesmo uma luta ética sobre os valores que são pressupostos em tudo.
Assim o diálogo, ao princípio meramente prático, torna-se também uma luta pelo justo
modo de ser pessoa humana. Embora as escolhas básicas não estejam enquanto tais em
discussão, os esforços à volta duma questão concreta tornam-se um percurso no qual
ambas as partes podem encontrar purificação e enriquecimento através da escuta do
outro. Assim estes esforços podem ter o significado também de passos comuns rumo à
única verdade, sem que as escolhas básicas sejam alteradas. Se ambas as partes se
movem a partir duma hermenêutica de justiça e de paz, a diferença básica não desaparecerá,
mas crescerá uma proximidade mais profunda entre eles.
Hoje em geral, para
a essência do diálogo inter-religioso, consideram fundamentais duas regras: 1ª)
O diálogo não tem como alvo a conversão, mas a compreensão. Nisto se distingue da
evangelização, da missão. 2ª) De acordo com isso, neste diálogo, ambas as partes
permanecem deliberadamente na sua identidade própria, que, no diálogo, não põem em
questão nem para si mesmo nem para os outros.
Estas regras são justas; mas
penso que assim estejam formuladas demasiado superficialmente. Sim, o diálogo não
visa a conversão, mas uma melhor compreensão recíproca: isto é correcto. Contudo a
busca de conhecimento e compreensão sempre pretende ser também uma aproximação da
verdade. Assim, ambas as partes, aproximando-se passo a passo da verdade, avançam
e caminham para uma maior partilha, que se funda sobre a unidade da verdade. Quanto
a permanecer fiéis à própria identidade, seria demasiado pouco se o cristão, com a
sua decisão a favor da própria identidade, interrompesse por assim dizer por vontade
própria o caminho para a verdade. Então o seu ser cristão tornar-se-ia algo de arbitrário,
uma escolha simplesmente factual. Nesse caso, evidentemente, ele não teria em conta
que a religião tem a ver com a verdade. A propósito disto, eu diria que o cristão
possui a grande confiança, mais ainda, a certeza basilar de poder tranquilamente fazer-se
ao largo no vasto mar da verdade, sem dever temer pela sua identidade de cristão.
Sem dúvida, não somos nós que possuímos a verdade, mas é ela que nos possui a nós:
Cristo, que é a Verdade, tomou-nos pela mão e, no caminho da nossa busca apaixonada
de conhecimento, sabemos que a sua mão nos sustenta firmemente. O facto de sermos
interiormente sustentados pela mão de Cristo torna-nos simultaneamente livres e seguros.
Livres: se somos sustentados por Ele, podemos, abertamente e sem medo, entrar em qualquer
diálogo. Seguros, porque Ele não nos deixa, a não ser que sejamos nós mesmos a desligar-nos
d’Ele. Unidos a Ele, estamos na luz da verdade.
Por último, impõe-se ainda
uma breve consideração sobre o anúncio, sobre a evangelização, de que, na sequência
das propostas dos Padres Sinodais, falará efectiva e amplamente o documento pós-sinodal.
Acho que os elementos essenciais do processo de evangelização são visíveis, de forma
muito eloquente, na narração de São João sobre a vocação de dois discípulos do Baptista,
que se tornam discípulos de Cristo (cf. Jo 1, 35-39). Antes de tudo, há o simples
acto do anúncio. João Baptista indica Jesus e diz: «Eis o Cordeiro de Deus!» Pouco
depois o evangelista vai narrar um facto parecido; agora é André que diz a Simão,
seu irmão: «Encontrámos o Messias!» (1, 41). O primeiro elemento fundamental é o anúncio
puro e simples, o kerigma, cuja força deriva da convicção interior do arauto. Na narração
dos dois discípulos, temos depois a escuta, o seguir os passos de Jesus; um seguir
que não é ainda verdadeiro seguimento, mas antes uma santa curiosidade, um movimento
de busca. Na realidade, ambos os discípulos são pessoas à procura; pessoas que, para
além do quotidiano, vivem na expectativa de Deus: na expectativa, porque Ele está
presente e, portanto, manifestar-Se-á. E a busca, tocada pelo anúncio, torna-se concreta:
querem conhecer melhor Aquele que o Baptista designou como o Cordeiro de Deus. Depois
vem o terceiro acto que tem início com o facto de Jesus Se voltar para trás, Se voltar
para eles e lhes perguntar: «Que pretendeis?» A resposta dos dois é uma nova pergunta
que indica a abertura da sua expectativa, a disponibilidade para cumprir novos passos.
Perguntam: «Rabi, onde moras?» A resposta de Jesus – «vinde e vereis» – é um convite
para O acompanharem e, caminhando com Ele, tornarem-se videntes.
A palavra
do anúncio torna-se eficaz quando existe no homem uma dócil disponibilidade para se
aproximar de Deus, quando o homem anda interiormente à procura e, deste modo, está
a caminho rumo ao Senhor. Então, vendo a solicitude de Jesus sente-se atingido no
coração; depois o impacto com o anúncio suscita uma santa curiosidade de conhecer
Jesus mais de perto. Este ir com Ele leva ao lugar onde Jesus habita: à comunidade
da Igreja, que é o seu Corpo. Significa entrar na comunhão itinerante dos catecúmenos,
que é uma comunhão feita de aprofundamento e, ao mesmo tempo, de vida, onde o caminhar
com Jesus nos faz tornar videntes.
«Vinde e vereis». Esta palavra dirigida
aos dois discípulos à procura, Jesus dirige-a também às pessoas de hoje que estão
em busca. No final do ano, queremos pedir ao Senhor para que a Igreja, não obstante
as próprias pobrezas, se torne cada vez mais reconhecível como sua morada. Pedimos-Lhe
para que, no caminho rumo à sua casa, nos torne, também a nós, sempre mais videntes
a fim de podermos afirmar sempre melhor e de modo cada mais convincente: encontrámos
Aquele que todo o mundo espera, ou seja, Jesus Cristo, verdadeiro Filho de Deus e
verdadeiro homem. Neste espírito, desejo de coração a todos vós um santo Natal e um
feliz Ano Novo.”