Tóquio (RV)
- É com imensa alegria e forte esperança que saúdo aos ouvintes do Programa Brasileiro.
Parece ser grande e verdadeira a ideia de que a pessoa sábia medita sobre
a história para organizar seu presente e projetar seu futuro. Contudo existe também
a atitude contrária. `É o caso de Sanya no distrito de Tóquio, que, no passado, foi
um grande distrito e hoje não está em nenhum mapa. Para entender o motivo do cancelamento
de Sanya no mapa é preciso fazer um retrospecto histórico. Durante o período Edo(1603-1868),
que marca a reestruturação do Japão, trabalhadores de couro, caçadores, açougueiros,
preparadores de corpos para os funerais e criminosos eram confinados em Sanya. Foram
chamados de "burakumin" ou "eta-hinin". Não eram considerados seres humanos. Por isso
deviam viver no gueto. Discriminá-los era um dever. Por exercerem trabalhos considerados
sujos, deveriam dedicar-se única e exclusivamente a eles. Era uma classe de pessoas
intocáveis, sujas e proibidas de se misturar com outras pessoas.
Embora Sanya
não apareça em nenhuma indicação de trânsito ou estações de trem, pode-se ler um letreiro
"Namidabashi", traduzido, "Ponte das Lágrimas", sobre a qual os condenados à morte
acenavam aos familiares, antes de serem levados para o campo de execução, hoje coberto
pela malha ferroviária. A rua principal também tem um nome muito significativo:
"Kotsu Dori", ou seja," Rua dos Ossos", fazendo referência à exibição de cabeças humanas
enfileiradas depois da execução.
Durante a segunda Guerra Mundial, como a
maior parte do Japão, Tóquio foi praticamente destruída. Foi necessária muita mão
de obra para reconstruí-la. Acossados pela necessidade, muitos trabalhadores saíram
de suas províncias para trabalhar na capital, deixando para trás as famílias. Estas,
na sua maioria, não quiseram abrir-lhes as portas quando pretendiam regressar, após
terminar os trabalhos, por considerar vergonhoso ter um desempregado na família. Como
não havia outros empregos para eles, o destino de muitos homens foi engrossar o gueto
de Sanya que se transformou em sua nova família.
Com a intenção de apagar
uma história de horrores, faz sessenta e seis anos que Sanya deixou de existir como
divisão política. Contudo, ainda permanece o gueto Sanya com seus habitantes excluídos,
sem teto, discriminados, sem cidadania. É uma região que destoa completamente dentro
da rica Tóquio. É impressionante o número de pessoas que dormem nas ruas, sob as marquises
dos edifícios, parques e coberturas. Quem passa procura evitar fazer barulho para
que possam dormir tranquilos. Ao contrário do que se poderia pensar em situações como
essa, aqui, pobreza não é sinônimo de sujeira. As pessoas recolhem o lixo e mantêm
os locais limpos.
Tive a grata experiência de me unir a um dos diversos grupos
que, à noite, distribuem comida àqueles que fizeram da "inexistente Sanya" sua casa.
Eles mesmos organizam a fila e o sistema para receber a comida. Ninguém passa à frente.
Não existe empurra-empurra. Com extrema humildade e gratidão cada pessoa abre sua
bolsa para que nela depositemos o pão e o bolo de arroz enquanto, ao lado, lhes é
servida uma sopa.
Sanya já não existe para os grandes, mas o fato Sanya está
a indicar que o caminho para sentar, fraternalmente, à mesa e partilhar do mesmo pão
ainda é longo. A esperança não nos deixa desistir do projeto da fraternidade universal.