Homilia de D. M. Clemente, bispo do Porto, na Solenidade de Cristo Rei, encerramento
da Semana Social
Cristãos caríssimos: 1. Reunidos nesta catedral a celebrar a solenidade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, o que havemos de fazer e desde já é darmos por
isto mesmo, tão rapidamente enunciado e tão demoradamente consciencializado. Refiro-me
ao facto de estarmos aqui, vindos de mais perto ou de mais longe, confirmando a verdade
da realeza de Cristo, que só ela nos explica deste modo. Historicamente falando,
Jesus viveu no mundo há dois milénios já, no povo que foi o seu e falando a sua língua,
dentro dos seus usos e costumes. Trinta e tantos anos, dos quais conhecemos sobretudo
os últimos dois ou três, entre Nazaré da Galileia e Jerusalém da Judeia... Anunciou
de facto um “reino”, pelo qual também morreu. E uma inscrição, ao alto da sua cruz,
assim transformada em trono, proclamava-o em várias línguas: “Jesus Nazareno Rei dos
Judeus”. Ali por perto já restavam muito poucos, que lhe ouviram algumas palavras
e testemunharam os últimos sinais, quase a resumir tudo quanto dissera e fizera: perdão
até ao fim, mesmo dos próprios inimigos, sede de nós, abandono no Pai, entrega do
Espírito… Um dos relatos menciona a Mãe que também nos ofereceu, confiando-a ao discípulo
que somos todos. E acrescenta que do seu peito brotaram depois sangue e água, ou seja,
a vida e o Espírito que nos sustentam agora. Passou esse dia, passou ainda outro,
e veio a alvorada em que nunca mais deixaremos de amanhecer: o túmulo estava vazio
e os corações dos discípulos ficaram cheios da sua paz. Nunca mais calaremos o brado:
“Ele está no meio de nós!”. E aqui estamos agora, nesta concentração máxima dos
sinais da sua presença – palavra, sacramento, irmãos – repetindo de coração e vida
as palavras absolutas de Tomé, quando finalmente O viu: “Meu Senhor e meu Deus!”. 2.
É deste reino que falamos e é desta lição que damos conta. Saúdo muito especialmente
os organizadores e participantes da Semana Social, que aqui aconteceu no Porto, subordinada
ao indispensável tema “Estado Social e Sociedade Solidária”. Os esforços em realizá-la
nestes tempos difíceis, em que – apesar de tudo e acima de tudo – é preciso realmente
pensar e abrir rasgões de luz e esperança a tanta gente sofrida ou ameaçada no que
mais importa à sua existência e dos seus, foram amplamente recompensados pela quantidade
e qualidade das participações. Muitos parabéns – em especial ao coordenador nacional
(Dr. Guilherme d’Oliveira Martins) e ao responsável diocesano (Prof. Joaquim Azevedo),
aos seus colaboradores mais próximos e à Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade
Humana (presidida pelo Senhor D. Jorge Ortiga). O trabalho feito e as conclusões finais
da Semana Social foram e serão um excelente contributo para o nosso futuro solidário. 3.
O Evangelho escutado narrava-nos um momento específico da paixão de Cristo, no seu
diálogo com Pôncio Pilatos, o representante do maior reino daquele tempo, o Império
Romano. Fora e era este uma grande construção humana, tanto na civilização como
na cultura, de que ainda hoje somos herdeiros a vários títulos: língua, direito, administração,
sistematização básica dos saberes, estruturação material e urbana e tantos outros
itens importantes. Abarcando e sistematizando a generalidade dos contributos das civilizações
mediterrânicas antigas, especialmente a helenista, o Império Romano estabilizou-os
e desenvolveu-os entre os vários povos que abrangia, durante quatro ou cinco séculos.
Muita coisa e muito tempo, efetivamente, podendo dizer-se que nada aconteceu antes
nem depois de tal qualidade e dimensão, ao longo da história mundial. Naquele dia
e naquela circunstância evangélica este reino tinha nome e figura: Pôncio Pilatos. À
sua frente estava Jesus de Nazaré. Tão diverso de Roma, que tudo era ao contrário:
oriundo da mais remota e desacreditada província do Império; criado numa terra que
nem entre os outros judeus tinha grande fama; sem letras nem artes deste mundo, que
o fizessem sobressair de entre tantos; desapoiado dos muitos que antes o tinham seguido
e aclamado… Chegara àquele ponto em absoluto contraste com os triunfos dos heróis
romanos, que Pôncio Pilatos decerto admirava: esses mesmos que eram recebidos com
arcos de triunfo e as aclamações do povo, arrastando atrás de si os inimigos vencidos
e os melhores despojos. Jesus não arrastava nada nem ninguém: despojos nenhuns e amigos
poucos e escondidos; o povo, que dias antes o aclamara, deitara fora os ramos e as
palmas e agora injuriava-o e pedia a sua morte… Mas alguém dissera ao representante
de Roma que aquele homem se pretendia “rei”. Por isso foi certamente com sarcasmo
que Pilatos lhe perguntou: «Tu és o rei dos judeus?». Para ouvir em resposta: «O meu
reino não é deste mundo». E, mais à frente: «É como dizes: sou rei. Para isso nasci
e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta
a minha voz». Irmãos e amigos: - Percebemos agora, porventura mais, e nestas concretíssimas
circunstâncias pessoais e sociais, o significado autêntico da realeza de Cristo?!
Assim o creio e confirmo, vendo-nos aqui reunidos “em seu nome” e com Ele no meio
de nós, nos múltiplos sinais da sua presença ressuscitada e ressuscitadora das vidas
pessoais e compartilhadas. A resposta à pergunta de Pilatos sobre a realeza de
Cristo são as nossas vidas, redobradamente atraídas pela verdade de quanto disse,
fez e inabalavelmente é. Por isso o seu reino não tem a exterioridade dos reinos deste
mundo, nem a sua efemeridade também. As suas conquistas são essenciais, vão muito
dentro e bem fundo de cada um de nós, convertendo corações e critérios, alterando
radicalmente gostos, desejos, preferências e projetos. 4. Mas a nossa presença
aqui, amados irmãos, significa ainda mais. Comprova a vitória de Cristo e o seu modo
de acontecer, tão diversos das vitórias de Roma e do seu modo de impor-se. O Reino
a que pertencemos é propriamente pascal e não pode ser doutra forma. E Páscoa quer
dizer ganhar-se o que se dá, não o que se tira; Páscoa quer dizer ressurreição pela
cruz e não fora dela; Páscoa significa pensamento e ação inteiramente polarizados
na vontade de Deus Pai, que é o bem concreto de todos; Páscoa é confiar, mesmo quando
o abandono nos avassala e sufoca, ao ponto de só podermos repetir como Cristo na cruz:
“Meu Deus, meu Deus…”; e ainda assim – e sobretudo então – persistir. A nossa
Semana Social, teve alguma cobertura mediática, não sendo de esperar outra coisa,
pela oportunidade do tema e pelo reconhecido valor dos conferencistas. Mas o que mais
valeu – permiti-me o sentimento pessoal – foi a qualidade pascal do evento, o testemunho
de que, mesmo nos momentos mais difíceis e complexos duma sociedade concreta, é possível
acreditar e persistir em valores humanos tão essenciais, que foram divinamente assumidos
e infinitamente potenciados por aquele jovem de Nazaré da Galileia em cujo nome nos
reunimos agora aqui no Porto. Dois milénios depois, mas na mesma hora pascal em
que o mundo sempre se renova; em que tudo o que parece irremediável e final de novo
desponta nos corações e nas vidas de pessoas, famílias, empresas e sociedades inteiras.
Deste reino somos, os que escutamos a sua voz e damos testemunho da verdade pascal
da vida. Como, muito felizmente, aconteceu nestes dias, nesta Cidade da Virgem, a
Mãe que Jesus Cristo nos ofereceu na cruz. + Manuel Clemente Sé do Porto, 25
de Novembro de 2012