D. Carlos Azevedo sobre Card. Martini: mestre espiritual, praticante da Palavra
Tem o entusiasmo de quem fala de um amigo, alguém a quem muito deve daquilo que é,
pensa, vive. Considera-o “mestre espiritual”, que “sabia retirar da Palavra de Deus
ensinamentos que transformavam a vida” e que sempre deu provas de “firmeza evangélica”.
Era o Evangelho a comandar as suas opções. Admira também a “abertura aos outros”.
Testemunho que do cardeal Carlo Maria Martini nos dá D. Carlos Azevedo, desde há quase
um ano em Roma, ao serviço do Conselho Pontifício para a Cultura, entrevistado por
Pacheco Gonçalves para a rubrica “Sal da Terra / Luz do Mundo. Factos e personagens
da história da Igreja”. *** "Para
mim o Cardeal Carlo Maria Martini é um mestre espiritual pessoalmente porque devorei
os seus livros e eles foram alimento essencial da minha formação espiritual. E muito
daquilo que fiz como orientação de retiros era ao seu jeito, à sua maneira, sob a
sua inspiração. E penso que essa é uma das dimensões que mais deve incidir em muita
gente. Foi um mestre espiritual, um praticante da Palavra, uma pessoa que sabia retirar
da Palavra de Deus ensinamentos que transformavam a vida, e isso foi uma escola. Ele
próprio, fez , de certo modo, da sua Catedral, um lugar onde isso acontecia. Mas também
os livros que estão traduzidos em imensas línguas levaram longe este alcance para
além da sua Diocese nos 22 anos do seu governo.
O que admira
na sua figura é, antes de mais, a sua firmeza evangélica, é o Evangelho que comanda
as opções, não é mais nada, e por isso fala para dentro da Igreja e fala para fora
sempre com algo de profético porque é o Evangelho que orienta a sua mente e orienta
as suas decisões e isso é que, de certo modo, atraiu tantos jovens, porque havia essa
clareza sem tergiversações, era de uma firmeza evangélica e de uma abertura aos outros.
Eu caracterizaria essas duas grandes atitudes: uma abertura a todos como Jesus e uma
firmeza evangélica enorme.
Para além dessa dimensão espiritual
temos que considerar que foi um intelectual, não só pela quantidade de escritos, alguns
ele próprio sentia que saiam sem ele dar por ela, por que ele falava em qualquer sítio
registavam e depois publicavam livros, quase sem ele os rever. Mas, é um homem assim
tipo Santo Agostinho. Com certeza, que Santo Ambrósio está mais presente na sua catedra
de Milão mas, a sua produção, a simplicidade da comunicação, o tornar a Palavra de
Deus muito acessível, muito fácil de entender faz lembrar mais Agostinho do que Ambrósio.
E depois também o aspecto vivencial, porque tudo isto que ele
ensinava, nós hoje vamos sabendo e, no futuro talvez venha a saber-se mais, porque
isso permanecia um pouco no segredo da sua vivência, mas era um homem com um testemunho
evangélico vivencial não só no acolhimento das pessoas, mas mesmo em atitudes de
desprendimento de si próprio, de ir lavar doentes, hoje sabe-se que ele tinha esse
costume, mesmo aqui em Roma quando era Reitor da Universidade. Portanto, era algo
que estava nele como uma atitude de pastor que estendia o seu abraço a toda a gente
e tentava imitar Jesus nos gestos de lavar os pés aos mais pobres.
A
sua distância de uma visão oficial e curial causou certamente algumas polémicas e
isso trouxe visões contrastadas de quem gosta e de quem não gosta, mas ele não se
resignava a um papel marginal da Igreja e isso é outro aspecto que é muito importante
neste momento. Mesmo sendo uma Igreja cada vez vez mais minoria e tendo consciência
disso, ele intervinha naquilo que ele chamava a mediação antropológico-ética. a Igreja
tem uma missão seja nas Brigadas Vermelhas (no princípio do seu episcopado), seja
depois ao longo da história até aos nossos dias, ele não deixava de apelar ao contributo
dos católicos para a sociedade civil, para o bem comum da sociedade. E as suas intervenções
tinham aqui, mais uma vez, o rasgo evangélico que era bem patente, porque para o Cardeal
Martini a Igreja não é um lobby de pressão, uma representação política de valores
permanentes que depois fecha os olhos a algumas regras éticas para salvaguardar interesses,
mas era um homem frontal em todas as suas dimensões. Nunca se escondeu, para ele a
prudência era mais uma virtude interior do que propriamente uma máscara para se defender
de não dizer aquilo que devia dizer. Não era uma máscara para a falta de coragem,
porque às vezes as pessoas são prudentes por falta de coragem e isso é uma máscara
e nele, sobretudo as virtudes, seja a justiça, seja a prudência eram chamadas a ir
ao interior mais profundo da pessoa e isso é muito mais importante porque depois transforma
quem está na justiça, quem está na política, quem está na economia, transformando
por dentro é capaz de transformar a realidade. E vemos que ele procura ,com dedicação
até ao fim, e isso é bem visível, a credibilidade da proposta eclesial. E isso, também
hoje, parece-me fundamental, que a proposta seja credível; aqueles que andam em busca
e que esperam, por isso, uma coerência evangélica profunda.