2012-09-04 17:51:22

In memoriam do cardeal Carlo Maria Martini


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A praça da catedral de Milão mal conseguiu conter a multidão que, não encontrando lugar dentro do templo, ali se concentrou segunda à tarde para acompanhar as exéquias do cardeal Martini, ao longo de 22 anos (1980-2002) pastor desta grande arquidiocese. Mais de 200 mil pessoas desfilaram, desde sábado ao meio-dia, perante o féretro desta figura amada por muitos e respeitada por todos.
Com os seus 85 anos de idade e o avanço inexorável da doença de Parkinson que o corroía desde 1993, a morte do purpurado não constituiu propriamente uma surpresa. E contudo, intensa e profunda foi a comoção que suscitou. Os meios de comunicação dedicaram-lhe amplo espaço, evocando a sua personalidade e a ação desenvolvida na sede de Santo Ambrósio e São Carlos Borromeu. Muitos os testemunhos dos que o conheciam de perto, assim como de quem, em graus e modos diversos, ficou marcado pela sua pessoa e pelas suas iniciativas e tomadas de posição.

O cardeal Martini não deixou testamento espiritual, mas escolheu para a lápide do túmulo um versículo do Salmo 118, que muito gostava de citar: “Lâmpada para os meus passos é a tua Palavra, luz para o meu caminho”. Citando estas palavras, na mensagem pessoal lida na celebração, Bento XVI define-o “homem de Deus que não só estudou a Sagrada Escritura, mas a amou intensamente”.

Como observa Padre Lombardi, o Carlo Maria Martini era, antes de mais, pela sua formação e pela sua espiritualidade um jesuíta e um apaixonado das Escrituras.
"A Palavra de Deus era o ponto de partida e o fundamento da sua abordagem a cada aspeto da realidade e de cada uma das suas intervenções; os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola eram a matriz da sua espiritualidade e da sua pedagogia espiritual, da relação contínua, direta, concreta, entre a leitura da Palavra de Deus e a vida, do discernimento espiritual e da decisão à luz do Evangelho."

Foi uma corajosa intuição de João Paulo II colocar a riqueza cultural e espiritual daquele que tinha sido até então um estudioso, Reitor do Instituto Bíblico e depois da Universidade Gregoriana ao serviço do governo pastoral de uma das maiores dioceses do mundo.
A nomeação colheu-o totalmente de surpresa, pois a Companhia de Jesus exclui os seus membros do acesso ao episcopado e a carreira académica não lhe tinha permitido uma verdadeira experiência pastoral. A insistência do Papa Wojtyla impôs-lhe o inaciano espírito de obediência. Partiu tendo como única “segurança” a Palavra de Deus. Significativamente, predispôs a entrada em Milão com um percurso a pé através da cidade, com o Evangelho nas mãos.

Uma das primeiras decisões em Milão foi instituir, na catedral, uma “Escola da Palavra”, para iniciar os leigos na Sagrada Escritura com o método da lectio divina. Uma ideia que rapidamente se alargou às paróquias e comunidades, estendendo-se gradualmente a muitas outras dioceses. Existem inteiras gerações de cristãos italianos marcadas por este caminho bíblico e espiritual. Ele próprio explicou, há anos, em entrevista à Rádio Vaticano, este confronto com a Palavra:
"Diria que é uma necessidade e também uma luta, um pouco como Jacob luta com o Anjo, porque a Palavra é sempre superior a nós, a Palavra - de alguma forma esmaga-nos, julga-nos e que nos toca e nos inflama interiormente. Portanto, não é nunca um discorrer tranquilo com a Palavra; é um escutá-la para ser continuamente abalados e transformados interiormente."

As linhas de orientação pastoral do cardeal Martini ficaram bem definidas nas memoráveis Cartas Pastorais que foram abordando sucessivamente os grandes temas da existência humana e cristã. Especial importância assumiu, em 1986, um Encontro diocesano que tinha como tema “Tornar-se próximo”. Foi a partir daí que surgiram “escolas” de formação no empenho social e político. Paralelamente, começaram a ter lugar, sempre na catedral, os encontros designados como a “Cátedra dos não-crentes”, para escutar a interpelação de pessoas não membros da Igreja, mas preocupadas em pensar as questões de fundo que a existência coloca. Explicando a importância do diálogo com gente dotada de sentido de responsabilidade e consciência dos valores, Martini sempre declarava muito ter aprendido com essas pessoas e considerava muito importante esse diálogo:
“Sim, é um diálogo muito importante. Falo evidentemente, antes de mais, aos não crentes que, contudo, pensam, refletem, têm um forte sentido de responsabilidade, uma consciência dos valores. Com eles aprendi certamente muito. É preciso continuar a dialogar para reconhecer os desejos profundos do coração humano, e portanto ajudar cada um a encontrar a sua plena autenticidade."

Nem sempre foram fáceis as relações do arcebispo Martini com o Movimento “Comunhão e libertação” (CL), surgido precisamente em Milão e que tendia a polarizar em si muito da vida eclesial e social, com tendências mais excludentes do que inclusivas. Passados os anos, veio ao de cima o que de melhor o arcebispo lhes propunha. Interrogado agora sobre a recordação mais forte que lhe ficou do falecido, padre Julian Carron, presidente de CL, não hesitou em referir antes de mais “a capacidade que ele tinha de entrar em relação com tudo e com todos”, juntamente com uma grande “atenção” que lhe permitia “intercetar todo e qualquer fragmento de verdade” que advertia em quem quer que encontrasse.








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