Rio de Janeiro (RV) - No último dia 14 de julho comemoramos o Dia de São Camilo
de Lelis, fundador da Ordem dos Ministros dos Enfermos (Camilianos). Neste ano
de 2012, os religiosos Camilianos Brasileiros celebram os 90 anos da chegada dos seus
pioneiros no Brasil, no porto do Rio de Janeiro, em 15 de setembro (1922-2012). Em
2014 se completarão 400 anos da morte de São Camilo (1550-1614). Para celebrar
essas datas, a Província Camiliana Brasileira trouxe a relíquia do coração de São
Camilo ao Brasil, que percorre neste mês as diversas cidades onde os Camilianos atuam.
A Arquidiocese do Rio de Janeiro receberá essa relíquia no dia 21de julho, sábado,
e aproveitará deste momento para celebrar o trabalho da Pastoral dos Enfermos ou da
Saúde, dentro deste ano em que aprofundamos o tema da Campanha da Fraternidade sobre
a saúde pública. Antes da Missa faremos a IIª Peregrinação da Pastoral da Saúde da
Arquidiocese ao Santuário de São Camilo. A inspiração da vida e missão de São Camilo
pode nos ajudar em nosso empenho tanto no trabalho de presença junto aos enfermos,
como na luta por uma saúde com mais dignidade. Quatro séculos de distância não
apagaram a atualidade da mensagem e espiritualidade vivida e transmitida por São Camilo.
Ainda mais, à medida que o tempo passa fica sempre mais evidente a sua atualidade
e sua capacidade de atração. Sobretudo pelo caráter humano e singular de sua pessoa
e biografia, mas também, por certo, por que em sua espiritualidade se cumprem com
rigor os principais requisitos para sua credibilidade e duração no tempo: sua clara
inspiração evangélica, a resposta a um dom particular (carisma) recebido em vista
da missão, sua dimensão eclesial e capacidade de conduzir seus seguidores à santidade
efetiva. No itinerário espiritual de Camilo existem experiências e momentos que
marcaram sua vida e deram também uma configuração especial à sua espiritualidade.
Algumas de suas características mais marcantes desta espiritualidade. Camilo chegou
ao encontro decisivo com Deus pela “via da indigência”. Desde a orfandade prematura
(perde a mãe aos 13 anos e o pai, que era um militar, aos 19 anos), desde a pobreza
material, a chaga inoportuna e crônica no peito do pé direito, a vida sem rumo e o
vazio interior: parece que tudo estava misteriosamente predisposto para um encontro
que foi adquirindo forma e gerando nova vida. Em sua indigência se tornou palpável
a misericórdia de Deus. É o itinerário de um convertido, que deixou uma marca profunda
em seus filhos: os filhos de um convertido. A experiência de sua conversão, em
2 de fevereiro de 1575, centrou e unificou o seu coração, centrando sua vida e sobretudo
sua opção em Cristo misericordioso de uma radicalidade permanente: o serviço aos enfermos,
concebido e praticado, ainda que com o risco da própria vida – constitui o quarto
voto dos camilianos, tão original e essencial como a profissão dos conselhos evangélicos.
A atual Constituição da Ordem recolhe esta opção de fundo na confissão de Camilo e
dos religiosos camilianos: “Nós. Acreditamos no amor (1 Jo 4,16) e, movidos pelo Espírito
Santo, abraçamos o carisma próprio da Ordem. Queremos viver unicamente para Deus e
para Jesus Cristo misericordioso, servindo aos enfermos na pobreza, castidade e obediência”. Camilo
bebeu e transmitiu esta radicalidade centrando sua atenção no Evangelho da misericórdia.
A inspiração bíblica de sua espiritualidade se fundamenta basicamente em dois textos
evangélicos, nos quais encontrou a síntese vital de sua configuração com Cristo: A
parábola do bom Samaritano (Lc 10) e o texto de Mateus 25,36-40: Estive enfermo e
me visitastes... o que fizestes a um destes meus irmãos mais humildes, a mim o fizestes”.
Podemos fazer uma leitura “contemplativa e operativa” desses textos. A fonte
e o núcleo de sua espiritualidade, também para o cristão de hoje, estavam justamente
em ver, contemplar e servir a Cristo no enfermo, e em ver e servir ao enfermo com
os mesmos gestos, atitudes e sentimentos de Cristo misericordioso. A sua fé se traduzia
em caridade. Com esta harmonia interior, sem divisões nem dicotomias, Camilo viveu
as experiências mais belas, uma espécie de livro inesgotável para seus discípulos.
Tratava os doentes como se fosse o próprio Cristo e, além de lhes resgatar sua dignidade,
os enlevava enquanto objeto de amor, na mesma “categoria” de Cristo. Chegou a tal
ponto, nesta perspectiva, de pedir perdão de seus pecados e de considerar os enfermos
como seus “patrões e senhores”. Esta configuração com Cristo misericordioso
e bom samaritano operou em Camilo uma verdadeira transformação de sua própria humanidade
com todas suas faculdades e energias. Uma transformação com uma forte dimensão estética:
o serviço como obra de arte, em que o corpo, educado na escola do bom Samaritano,
se converte em veículo da ternura de Cristo. Era todo coração para os enfermos, e
transformou em programa de educação, transmitido de geração em geração, a expressão
“mais coração nessas mãos, irmão!”, ou então aquele pensamento em que diz; “cada um
peça a Graça ao Senhor... porque queremos servir aos enfermos com o mesmo amor com
que uma mãe cuida de seu próprio filho enfermo”. Aqui estão colocados os valores
fundamentais de qualquer programa de humanização de serviços de saúde, hoje sempre
mais técnicos, frios e sem alma! Urge transformar esta cultura. A espiritualidade
camiliana aparece profundamente radicada no Carisma da Ordem e na experiência do Espírito
transmitida pelo fundador, e é expressa como “o dom de reviver e testemunhar no mundo
o amor sempre presente de Cristo para com os enfermos “(C 1). Dito de uma forma direta
e sem matizes, o dom que alimenta e dá conteúdo à espiritualidade consiste no presente
de uma nova experiência: a possibilidade de apropriar-se dos sentimentos, gestos e
atitudes de Cristo misericordioso (o que ele sentiu e fez). Resulta transparente
a centralidade do ministério/serviço. Trata-se do serviço ao próprio Cristo (aqui
seu valor), do que Ele fez e do significado de sua ação solidária, terapêutica e salvífica
em favor dos enfermos. Este ministério acolhido e realizado é obra da Graça, a qual
edifica sobre a fraqueza humana, se integra no seguimento de cristo, constitui um
modo novo de viver a relação com Deus. Nós, cristãos de hoje, precisamos estar conscientes
de que o serviço nos remete sempre ao Cristo misericordioso como referência existencial
e contempla em Jesus não somente um exemplo a ser seguido, mas também a razão que
orienta e reorienta sua vida. Na vivência do ministério, o cristão se coloca na
mesma perspectiva de Cristo. O cristão e, especialmente o Camiliano, está consciente
de que, com sua consagração a serviço da saúde e aos enfermos, prolonga no mundo a
missão salvífica e terapêutica de Cristo. Sabe, portanto, que tem a oferecer a mesma
saúde que Jesus ofereceu: uma saúde integral, que compreende todas as dimensões da
pessoa (física, psíquica, social e espiritual), uma saúde orientada para a salvação.
Para ele, para além do horizonte final de sua ação, é importante explicitar o “a partir
de onde”. Como em Cristo, a partir de “baixo”, a partir de sua atitude vital que leva
a sério todo o humano, que descende ao centro das periferias, que encontra e serve
a Cristo no caminho samaritano (a “liturgia dos gestos”) e traduz a caridade em sensibilidade,
num sexto sentido e num terceiro ouvido. Este serviço se inspira no mistério
mesmo da Encarnação. Nele, aprende a olhar com olhos diferentes todo o humano, alimenta
sua “paixão pela vida”, especialmente a mais ameaçada, frágil e indefesa; aprende
a viver saudavelmente e santamente seu próprio corpo. Da Encarnação parte e se expande
o plano salvífico de Cristo. Uma de suas expressões mais significativas está em Jo
10,10: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”. Da vocação,
a identificar-se com Cristo e sua paixão pela vida, brota espontaneamente uma associação
indissolúvel entre o serviço da vida e a vida de oração. Para São Camilo, como vimos,
o serviço aos enfermos era uma Graça a ser pedida e, ao mesmo tempo, a expressão mais
perfeita da caridade. Algumas características específicas que convém ressaltar:
esta espiritualidade de oração tão rente ao chão da vida, significa orar diante da
realidade da vida. Para o cristão este é “o espaço”, sempre com rostos, de sua relação
com Deus. Sabedor de sua missão de dar vida, o cristão percorre o mesmo caminho de
Cristo: situa-se a partir dos sofrimentos do homem, em suas pequenas expectativas
e em suas grandes esperanças. Torna-se um expert em humanidade, acolhe e respeita
todo o humano, acompanha os processos de perto, ajuda a curar as feridas e a abrir
novos horizontes... Outro aspecto fundamental, embora nem sempre explicitado:
espiritualidade da comunhão, em todos os níveis. Para entendermos melhor precisamos
partir das referências fundamentais. A primeira é Bíblica: a saúde e o serviço aos
enfermos foram encomendados à Igreja como dom e como missão. Além disso, situados
por Cristo, no mesmo nível que o anúncio do Reino: curar e anunciar (Lc 10,9). Outro
referencial: a saúde remete sempre a um lugar, a uma comunidade, a um tecido relacional.
Pois bem, a espiritualidade camiliana tem uma de suas expressões mais relevantes em
sua capacidade de gerar alianças (aliança terapêutica), de semear solidariedade e
de buscar efeitos multiplicadores. Nascidos segundo o dom do Espírito, para cuidar
e ensinar a cuidar da vida e saúde da humanidade ferida e sofrida. Não foi por
acaso que São Camilo foi proclamado como sendo o padroeiro dos doentes e dos profissionais
da saúde e dos hospitais. Foi seguindo este itinerário espiritual que ele se santificou
e transformou a realidade dos cuidados de saúde de então. Necessitamos hoje de mais
“Camilos”, como agentes da pastoral da saúde, profissionais da saúde conscientes do
seu dever de servir com amor e competência científica, para viabilizar nosso sistema
público de saúde, o SUS que queremos.
São Camilo de Lélis, rogai por nós!
†
Orani João Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio
de Janeiro, RJ