Bento XVI na missa de Corpus Christi: “O Sacramento da Caridade de Cristo deve permear
toda a vida cotidiana”
Cidade do Vaticano (RV) - O Papa Bento XVI presidiu no início da noite desta
quinta-feira, Festa de Corpus Christi a Santa Missa na Basílica de São João de Latrão,
às 19 horas (14h de Brasília). Após a celebração, seguiu-se a procissão litúrgica
até a Basílica de Santa Maria Maior.
Em sua homília, durante a missa Bento
XVI reiterou o aspecto da adoração eucarística da festa de hoje, mas não deixou de
abordar o sentido celebrativo.
Leia abaixo a íntegra da homília do Papa.
Queridos
irmãos e irmãs!
Esta noite gostaria de meditar com vocês sobre dois aspectos,
entre eles relacionados, do Mistério eucarístico: o culto da Eucaristia e a sua sacralidade.
É importante levá-los em consideração para preservá-los de visões incompletas do próprio
Mistério, como as que se verificaram num passado recente.
Antes de tudo, uma
reflexão sobre o valor do culto eucarístico, em especial da adoração ao Santíssimo
Sacramento. É a experiência que também esta noite nós viveremos depois da Missa, antes
da procissão, durante sua realização e no seu final. Uma interpretação unilateral
do Concílio Vaticano II penalizou esta dimensão, restringindo na prática a Eucaristia
ao momento celebrativo.
Com efeito, foi muito importante reconhecer a centralidade
da celebração, em que o Senhor convoca o seu povo, o reúne em torno da dúplice Ceia
da Palavra e do Pão da vida, o nutre e o une a Si na oferta do Sacrifício. Essa valorização
da assembleia litúrgica, em que o Senhor atua e realiza o seu mistério de comunhão,
permanece naturalmente válida, mas deve ser reinserida no justo equilíbrio.
Com
efeito, como muitas vezes acontece, para destacar um aspecto se acaba por sacrificar
outro. Neste caso, a acentuação dada à celebração da Eucaristia foi em detrimento
da adoração, como ato de fé e de oração dirigido ao Senhor Jesus, realmente presente
no Sacramento do altar. Esse desequilíbrio teve repercussões também na vida espiritual
dos fiéis. De fato, concentrando toda a relação com Jesus Eucaristia somente no momento
da Santa Missa, corre-se o risco de esvaziar de Sua presença o restante do tempo e
do espaço existenciais.
E assim se percebe menos o sentido da presença constante
de Jesus no meio de nós e conosco, uma presença concreta, próxima, entre as nossas
casas, como “Coração pulsante” da cidade, do país, do território com as suas várias
expressões e atividades. O Sacramento da Caridade de Cristo deve permear toda a vida
cotidiana.
Na realidade, está errado contrapor celebração e adoração, como
se estivessem em concorrência uma com a outra. É justamente o contrário: o culto do
Santíssimo Sacramento constitui o “ambiente” espiritual dentro do qual a comunidade
pode celebrar bem e em verdade a Eucaristia. Somente se for precedida, acompanhada
e seguida por essa atitude interior de fé e de adoração, a ação litúrgica poderá expressar
seu pleno significado e valor.
O encontro com Jesus na Santa Missa se realiza
realmente e plenamente quando a comunidade é capaz de reconhecer que Ele, no Sacramento,
habita a sua casa, nos aguarda, nos convida à sua ceia e, a seguir, depois que a assembleia
se desfaz, permanece conosco, com a sua presença discreta e silenciosa, e nos acompanha
com a sua intercessão, continuando a recolher os nossos sacrifícios espirituais e
a oferecê-los ao Pai.
A esse propósito, quero ressaltar a experiência que viveremos
juntos esta noite. No momento da adoração, nós estamos todos no mesmo plano, de joelhos
diante do Sacramento do Amor. O sacerdócio comum e o ministerial se encontram acomunados
no culto eucarístico. É uma experiência muito bela e significativa, que vivemos diversas
vezes na Basílica de S. Pedro, e também nas inesquecíveis vigílias com os jovens –
lembro por exemplo as de Colônia, Londres, Zagreb e Madri.
É evidente a todos
que esses momentos de vigília eucarística preparam a celebração da Santa Missa, preparam
os corações ao encontro, de modo que isso resulte ainda mais frutuoso. Estar todos
em silêncio prolongado diante do Senhor presente no seu Sacramento é uma das experiências
mais autênticas do nosso ser Igreja, que acompanha de modo complementar a celebração
da Eucaristia, ouvindo a Palavra de Deus, cantando, aproximando-se junto da ceia do
Pão da Vida.
Comunhão e contemplação não podem se separar, vão juntas. Para
comunicar realmente com outra pessoa devo conhecê-la, saber estar em silêncio ao seu
lado, ouvi-la, olhá-la com amor. O verdadeiro amor e a verdadeira amizade vivem sempre
desta reciprocidade de olhares, de silêncios intensos, eloquentes, repletos de respeito
e de veneração, de modo que o encontro seja vivido profundamente, de modo pessoal
e não superficial.
E, infelizmente, se falta esta dimensão, também a própria
comunhão sacramental pode se tornar, da nossa parte, um gesto superficial. Ao invés,
na verdadeira comunhão, preparada com o colóquio da oração e da vida, nós podemos
dizer ao Senhor palavras íntimas, como as que ressoaram agora há pouco no Salmo responsorial:
“Sou teu servo, filho de tua serva, rompeste os meus grilhões. Vou te oferecer um
sacrifício de louvor, invocando o nome do Senhor” (Salmo 115, 16-17).
Agora
gostaria de passar brevemente para o segundo aspecto: a sacralidade da Eucaristia.
Também aqui sofremos no passado recente com certa incompreensão da mensagem autêntica
da Sagrada Escritura. A novidade cristã quanto ao culto foi influenciada por uma mentalidade
mundana dos anos 60 e 70 do século passado. É verdade, e permanece sempre válido,
que o centro do culto já não está mais nos ritos e nos sacrifícios antigos, mas no
próprio Cristo, na sua pessoa, na sua vida, no seu mistério pascal.
E, todavia,
desta novidade fundamental não se deve concluir que o sagrado não existe mais, mas
que encontrou sua realização em Jesus Cristo, Amor divino encarnado. A carta aos Hebreus,
que ouvimos esta noite na segunda Leitura, nos fala justamente da novidade do sacerdócio
de Cristo, “sumo sacerdote dos bens vindouros” (Hb 9, 11), mas não diz que o sacerdócio
acabou. Cristo “é mediador de uma nova aliança” (Hb9,15), estabelecida no seu sangue,
que purifica “a nossa consciência das obras mortas” (Hb9,14).
Ele não aboliu
o sagrado, mas o levou a cabo, inaugurando um novo culto, que é sim plenamente espiritual,
mas que todavia, até que estejamos em caminho no tempo, se serve ainda de sinais e
de ritos, que desaparecerão somente no fim, na Jerusalém celeste, onde não haverá
mais nenhum templo. Graças a Cristo, a sacralidade é mais verdadeira, mais intensa,
e, como acontece para os mandamentos, também mais exigente!
Não basta observar
o rito, mas se requer a purificação do coração e o envolvimento da vida. Apraz-me
sublinhar que o sagrado possui uma função educativa, e seu desaparecimento inevitavelmente
empobrecerá a cultura, de modo particular a formação das novas gerações.
Se,
por exemplo, em nome de uma fé secularizada e não mais necessária de sinais sagrados,
fosse abolida esta procissão urbana de Corpus Domini, o perfil espiritual de Roma
resultaria “esvaziado”, e nossa consciência pessoal e comunitária se tornaria enfraquecida.
Também pensamos em uma mãe e em um pai que, em nome de uma fé dessacralizada, privassem
seus filhos de qualquer ritual religioso: na realidade terminariam por deixar o campo
livre a tantos substitutos presentes na sociedade de consumo, e a outros ritos e a
outros sinais, que mais facilmente poderiam se tornar ídolos.
Deus, nosso
Pai, não fez assim com a humanidade: enviou seu Filho ao mundo não para abolir, mas
para dar cumprimento também ao sacro. No cume desta missão, na última Ceia, Jesus
instituiu o Sacramento de seu Corpo e de seu Sangue, o Memorial de seu Sacrifício
Pascal. Assim fazendo Ele mesmo se colocou no lugar dos sacrifícios antigos, mas o
fez dentro de um rito, que mandou os Apóstolos perpetuar, qual sinal supremo do verdadeiro
Sagrado, que é Ele mesmo.
Com esta fé, queridos irmãos e irmãs, celebramos
hoje e cada dia o Mistério Eucarístico e o adoramos como centro de nossa vida e coração
do mundo. Amém.