Belo Horizonte (RV) - A grave questão da descriminalização de aborto de anencéfalos
não pode deixar a sociedade brasileira, suas instâncias e cidadãos em paz. O caminho
interpretativo adotado não pode ser entendido como uma verdade sobre a vida, que precisa
ser incondicionalmente respeitada. O poder de decidir não é, em si, a verdade na sua
inteireza. Aquela importante cena do Evangelho de São João, narrando a paixão e morte
de Jesus Cristo, quando o Senhor da vida contracena com Pilatos, que o condenou à
crucificação ouvindo o clamor do povo, mostra isso.
Nesse mesmo Evangelho
conhecemos a revelação que Jesus faz de sua identidade quando diz ser o caminho, a
verdade e a vida. Sua missão o revela não como simples intérprete de sentimentos,
tentando conciliar situações, identificando-as como respeito a um direito de decidir,
mesmo que este “respeito” signifique ferir a integridade e a liberdade de um indefeso,
um inocente. Se a análise é necessária como caminho em busca da verdade, é indispensável
também ajuizar os critérios e princípios de interpretação adotados, para que não se
comprometa o dom da vida.
Oportunamente, assinala o Bem-Aventurado João Paulo
II, na sua Carta Encíclica Fé e Razão, de 14 de setembro de 1998: “No âmbito da investigação
científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas se afastou
de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo, deixou cair qualquer
alusão à visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de
qualquer referimento ético, correm o risco de não manterem, ao centro de seu interesse,
a pessoa e a globalidade de sua vida”. A crise atual do racionalismo compromete, incontestavelmente,
muitos critérios interpretativos que são adotados em decisões de grande impacto, com
tendências a relativizar, particularmente, a importância dada a quem não tem voz para
se defender.
Os critérios usados para elaborar pareceres decisórios, como nesta
questão grave do aborto de anencéfalos, parecem ceder a lógicas bafejadas por relativismos
que não consideram os sentimentos de todos os envolvidos. É preciso continuar ecoando
nas consciências que as deficiências não diminuem a dignidade da vida humana em gestação.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em posicionamento para reafirmar o compromisso
com a moral cristã católica, em nota, sublinha que os princípios da inviolabilidade
do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e da promoção do bem de todos, sem
qualquer forma de discriminação, conforme determina a Constituição Federal, referem-se
também aos fetos anencefálicos.
Ora, não respeitar a vida é porta aberta para
desrespeitar os outros direitos. A descriminalização de aborto de fetos anencefálicos
será, sem dúvida, entrada para desqualificação da pessoa humana, podendo justificar
práticas contra doentes e indefesos. Nossa posição precisa ser permanentemente reafirmada,
não admitindo relativizações. A vida tem que ser acolhida como dom e compromisso,
mesmo quando seu percurso natural for presumivelmente breve. Portanto, em qualquer
circunstância, provocar a morte é crime.
Como é possível admitir que uma legislação
possa tornar lícito o que é intrinsecamente ilícito? Não matarás é um importante mandamento
da Lei de Deus. Exige fidelidade daqueles que creem. A Igreja Católica não pode fazer
concessões quanto ao entendimento dos mandamentos de seu Mestre e Senhor, Jesus Cristo,
que veio ‘para que todos tenham vida e vida em abundância’. O esplendor da verdade
que brilha em todas as obras do Criador, cintila especialmente no homem criado à imagem
e semelhança de Deus.
Este princípio é inegociável e exige incondicional obediência
de todos, especialmente dos que professam a sua fé em Cristo, o Salvador. É indispensável
continuar a reflexão e a luta pela vida. Os critérios interpretativos usados para
justificar votos que permitem a descriminalização de abortos de fetos anencefálicos
precisam ser confrontados com os ensinamentos da Igreja Católica, propiciando o conhecimento
e a argumentação de verdades fundamentais que não podem ser deformadas ou até negadas.
Há um patrimônio moral que não pode ser desconhecido ou suplantado por certas concepções
antropológicas e éticas, que desconectam a liberdade humana de sua relação essencial
com a verdade. A comunidade cristã está convocada a continuar esta importante luta
a favor da vida.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo metropolitano
de Belo Horizonte