Belo Horizonte (RV) - A cidadania como vivência de deveres e direitos inclui
também o compromisso e o desafio de lançar, permanentemente, um olhar perscrutador
sobre a realidade. A grande responsabilidade cidadã quanto aos rumos da história precisa
sempre ser destacada. Já agora, na segunda década deste terceiro milênio, as análises
vão estampando as marcas históricas do século 20, construídas em grande parte pela
intervenção humana.
Os avanços e conquistas foram incontáveis. Até admiráveis,
quando se contabilizam os progressos científicos, os engenhos tecnológicos, a força
sedutora, por isso não menos pesada, do fenômeno da globalização. Mudanças determinantes,
ditadas pela ciência e pela tecnologia, que têm avançado inteligentemente - seja pela
capacidade de manipular geneticamente a própria vida dos seres vivos, ou a de criar
uma rede de comunicação de alcance mundial.
Este é um tempo no qual a história
alcançou uma aceleração espaventosa produzindo mudanças grandes. No Documento de Aparecida,
nº 35, os bispos latino-americanos e caribenhos sublinham que “essa nova escala mundial
do fenômeno humano traz consequências em todos os campos da vida social, impactando
a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e
também, naturalmente, a religião”. Estas transformações, em razão dos rumos tomados
ou dados, têm atingido de maneira preocupante o tesouro que pertence à pessoa humana,
a abertura à transcendência.
O tesouro da pessoa humana não pode ser resumido
apenas no que é admirável nas conquistas científicas e tecnológicas. Aqui se põe um
enorme desafio, que inclui a compreensão do indivíduo na sua abertura sacrossanta
para a transcendência, como algo seu constitutivo e inalienável. Sua desconsideração,
ignorância ou manipulação, em razão de interesses utilitaristas, produz prejuízos
e riscos para os rumos da história. Como no passado, agora também, e de maneira não
menos preocupante, temos o horizonte da sociedade contemporânea povoado de relativizações
éticas advindas do fechamento e da incompetência para a compreensão e vivência deste
tesouro que é a abertura à transcendência.
É irrenunciável o princípio de que
a pessoa humana é aberta ao infinito, isto é, a Deus. Esta abertura é caminho para
a verdade e para o bem absolutos. Também é esta comunhão com Deus que capacita para
o encontro com o outro e com o mundo. Sem esta abertura ao transcendente nenhuma pessoa
consegue sair de si. Torna-se prisioneira, facilmente e cotidianamente, de uma condição
egoística da própria vida. É a transcendência que capacita a pessoa a entrar numa
relação de diálogo e de comunhão. A sociedade não pode e não consegue, com o indispensável
equilíbrio, organizar-se e configurar-se sem que se respeite e se cultive a capacidade
própria da pessoa de transcender.
É ilusão pensar e buscar uma sociedade justa
quando se desrespeita a dignidade transcendente da pessoa humana. O primado de cada
ser humano tem a prerrogativa de orientar a consciência e definir direções e configurações
para todos os programas sociais, científicos e culturais. Não sendo assim, a pessoa
será, inevitavelmente, instrumentalizada para projetos econômicos, social, político,
por qualquer autoridade. Não raramente, em nome de pretensos progressos e da modernização
da comunidade civil. Aqui está o “nó difícil de desatar” da questão ética na sociedade
contemporânea, pensando mais diretamente a de nosso país. Todos são chamados a refletir
sobre o futuro que deve ser buscado, o que exige o princípio irrenunciável da transcendência.
Num rol de muitas questões sérias e preocupantes, devemos incluir a que trata sobre
a grave cultura abortista, a investida irracional contra símbolos religiosos, ou a
morosidade ética para a convicção da aplicação da chamada “Lei da Ficha Limpa”.
A
orquestração que órgãos internacionais fazem ao celebrar acordos, por exemplo, com
países emergentes da América Latina, beneficiando projetos para o desenvolvimento,
em troca de controle demográfico que fomentam posições e entendimentos favoráveis
ao crime do aborto, merece reação e posicionamento claro de todos.
Há manipulações
na compreensão envolvendo os direitos da mulher para construir argumentos que justifiquem
o atentado homicida contra a vida do nascituro. Este equívoco, resultado da falta
de sentido e respeito à transcendência, atinge a família, num claro desígnio de sua
desconstrução e vai se infiltrando no sistema educacional. Estes rumos estão produzindo
riscos graves. É preciso reagir e lutar pelo respeito e obediência ao princípio da
transcendência.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo metropolitano de
Belo Horizonte