A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma. Desse encontrou
tomou "forma a identidade íntima da Europa": Bento XVI, no Bundestag
(22/09/2011) Num discurso extenso e bem argumentado, Bento XVI teceu uma série de
“considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito”, sublinhando nomeadamente
a necessidade de que a política esteja sempre subordinada ao direito e recordando
que na busca do que é justo o simples critério da maioria não basta. Considerando
que não há que renunciar à visão positivista do mundo, “parcela grandiosa do conhecimento
humano”, o Papa alertou porém que a razão positivista não pode considerar-se a única
cultura suficiente, “relegando todos as outras realidades culturais para o estado
de subculturas”.
Para as suas “reflexões sobre os fundamentos do direito”,
Bento XVI partiu do episódio bíblico do Livro dos Reis, em que Salomão pede a Deus
que lhe conceda “um coração dócil, para saber administrar a justiça... e distinguir
o bem do mal”.
“Com esta narração, a Bíblia quer indicar-nos o que, em última
análise, deve ser importante para um político”. O critério último e a motivação para
a atividade do político não há-de ser o sucesso, nem muito menos o lucro material.
A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições
de fundo para a paz.”
Naturalmente – reconheceu o Papa – “um político procurará
o sucesso, que, de per si, lhe abre a possibilidade de uma acção política efectiva;
mas o sucesso há-de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de aplicar
o direito”. Isso porque – advertiu – “o sucesso pode tornar-se também um aliciamento,
abrindo assim o caminho à falsificação do direito, à destruição da justiça”. «Se se
põe de parte o direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de salteadores?»
– sentenciou uma vez Santo Agostinho”.
“Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência
que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentámos a separação entre o
poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito,
de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se
um bando de salteadores muito bem organizado, que podia ameaçar o mundo inteiro e
impeli-lo até à beira do precipício”.
“Servir o direito e combater o domínio
da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político. Num momento histórico
em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente
urgente” – sublinhou Bento XVI. Mas como distinguir o bem do mal, como discernir
entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? “O pedido de Salomão permanece
a questão decisivoa perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política”.
Se uma boa parte da matéria jurídica pode ser regulamentada tendo como critério
suficiente a maioria, este nem sempre basta:
“É evidente que, nas questões
fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade,
o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa
que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação.”
Foi
com esta convicção – recordou o Papa - que os combatentes da resistência agiram contra
o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço
ao direito e à humanidade. Para eles era incontestável que, na realidade, o direito
vigente era injustiça. Ora também nas decisões de um político democrático, não é sempre
evidente. o que corresponde à lei da verdade, o que é verdadeiramente justo e se pode
tornar-se lei, nas questões antropológicas fundamentais. Nunca foi fácil saber o que
é justo, mas hoje em dia tal questão tornou-se muito mais difícil.
Se ao longo
da história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre motivados religiosamente,
com referência à divindade, para decidir aquilo que é justo, não assim com o cristianismo:
“Ao
contrário de outras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade
um direito revelado, um ordenamento jurídico derivado duma revelação. Mas apelou para
a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre
razão objectiva e subjectiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas
fundadas na Razão criadora de Deus”.
Os teólogos cristãos associaram-se a
um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II a.C., num
encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e
autorizados mestres do direito romano.
“Neste contacto nasceu a cultura jurídica
ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica
da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho
que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo
até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela
qual o nosso povo reconheceu, em 1949, «os direitos invioláveis e inalienáveis do
homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo».
Bento
XVI sublinhou que vêm aqui ao de cima “os dois conceitos fundamentais de natureza
e de consciência, sendo aqui a «consciência» o mesmo que o «coração dócil» de Salomão,
a razão aberta à linguagem do ser. Ora – considerou – “se até à época do Iluminismo,
da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da
nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida,
no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação”. Que aconteceu?
É que hoje em dia quase já não se fala de direito natural, como se se tratasse de
uma doutrina católica bastante singular, a que se evita mesmo fazer qualquer referência.
Ora – prosseguiu o Papa – “uma concepção positivista de natureza, que compreende a
natureza de modo puramente funcional, tal como a explicam as ciências naturais, não
pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas
apenas funcionais”. E “o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada
por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou
falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito”.
“Onde vigora
o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa
consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são
postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a
qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção
essencial deste discurso”.
“O conceito positivista de natureza e de razão,
a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento
humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar” – afirmou
textualmente o Papa. Contudo, prosseguiu, “Não é, no seu conjunto, uma cultura que
corresponda e baste ao ser humano em toda a sua amplitude.
“Onde a razão positivista
se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades
culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua
humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram
reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a
formação do direito, enquanto todas as outras convicções e os outros valores da nossa
cultura são reduzidos ao estado de uma subcultura. Assim coloca-se a Europa, face
às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo
tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de
modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se
aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por
nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus.”
Na
parte final do seu discurso ao Bundestag, Bento XVI referiu-se ainda ao movimento
ecológico surgido na política alemã a partir dos Anos Setenta, considerando que ele
“foi e continua a ser, um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode
ignorar nem acantonar”.
“A importância da ecologia é agora indiscutível.
Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero ainda
enfrentar decididamente um ponto que, hoje como ontem, é largamente descurado: existe
também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar
e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria
por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também
natureza, e a sua vontade é justa quando ele escuta a natureza, respeita-a e quando
se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo,
e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana”.
A concluir, uma
alusão às raízes da cultura europeia, que incluem Jerusalém, Atenas e Roma.
“A
cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre
a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma.
Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade
do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada
homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste
momento histórico.” (discurso integral em Viagens apostolicas)