2011-09-22 17:35:25

A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma. Desse encontrou tomou "forma a identidade íntima da Europa": Bento XVI, no Bundestag


(22/09/2011) Num discurso extenso e bem argumentado, Bento XVI teceu uma série de “considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito”, sublinhando nomeadamente a necessidade de que a política esteja sempre subordinada ao direito e recordando que na busca do que é justo o simples critério da maioria não basta. Considerando que não há que renunciar à visão positivista do mundo, “parcela grandiosa do conhecimento humano”, o Papa alertou porém que a razão positivista não pode considerar-se a única cultura suficiente, “relegando todos as outras realidades culturais para o estado de subculturas”.

Para as suas “reflexões sobre os fundamentos do direito”, Bento XVI partiu do episódio bíblico do Livro dos Reis, em que Salomão pede a Deus que lhe conceda “um coração dócil, para saber administrar a justiça... e distinguir o bem do mal”.

“Com esta narração, a Bíblia quer indicar-nos o que, em última análise, deve ser importante para um político”. O critério último e a motivação para a atividade do político não há-de ser o sucesso, nem muito menos o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz.”

Naturalmente – reconheceu o Papa – “um político procurará o sucesso, que, de per si, lhe abre a possibilidade de uma acção política efectiva; mas o sucesso há-de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de aplicar o direito”. Isso porque – advertiu – “o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim o caminho à falsificação do direito, à destruição da justiça”. «Se se põe de parte o direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de salteadores?» – sentenciou uma vez Santo Agostinho”.

“Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentámos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se um bando de salteadores muito bem organizado, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício”.

“Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente” – sublinhou Bento XVI.
Mas como distinguir o bem do mal, como discernir entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? “O pedido de Salomão permanece a questão decisivoa perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política”.
Se uma boa parte da matéria jurídica pode ser regulamentada tendo como critério suficiente a maioria, este nem sempre basta:

“É evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação.”

Foi com esta convicção – recordou o Papa - que os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade. Para eles era incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Ora também nas decisões de um político democrático, não é sempre evidente. o que corresponde à lei da verdade, o que é verdadeiramente justo e se pode tornar-se lei, nas questões antropológicas fundamentais. Nunca foi fácil saber o que é justo, mas hoje em dia tal questão tornou-se muito mais difícil.

Se ao longo da história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre motivados religiosamente, com referência à divindade, para decidir aquilo que é justo, não assim com o cristianismo:

“Ao contrário de outras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, um ordenamento jurídico derivado duma revelação. Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objectiva e subjectiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus”.

Os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II a.C., num encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano.

“Neste contacto nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, «os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo».

Bento XVI sublinhou que vêm aqui ao de cima “os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a «consciência» o mesmo que o «coração dócil» de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. Ora – considerou – “se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação”. Que aconteceu? É que hoje em dia quase já não se fala de direito natural, como se se tratasse de uma doutrina católica bastante singular, a que se evita mesmo fazer qualquer referência. Ora – prosseguiu o Papa – “uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a explicam as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais”. E “o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito”.

“Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso”.

“O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar” – afirmou textualmente o Papa. Contudo, prosseguiu, “Não é, no seu conjunto, uma cultura que corresponda e baste ao ser humano em toda a sua amplitude.

“Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, enquanto todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura são reduzidos ao estado de uma subcultura. Assim coloca-se a Europa, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus.”

Na parte final do seu discurso ao Bundestag, Bento XVI referiu-se ainda ao movimento ecológico surgido na política alemã a partir dos Anos Setenta, considerando que ele “foi e continua a ser, um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem acantonar”.

“A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero ainda enfrentar decididamente um ponto que, hoje como ontem, é largamente descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando ele escuta a natureza, respeita-a e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana”.

A concluir, uma alusão às raízes da cultura europeia, que incluem Jerusalém, Atenas e Roma.

“A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.”
(discurso integral em Viagens apostolicas)








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