São Paulo, 11 jul (RV) - Preservar a natureza, respeitar os ecossistemas e
não interferir indevidamente no delicado equilíbrio ambiental, para não comprometer
a sobrevivência das espécies... Será apenas exaltação romântica de ambientalistas?
Por certo, ninguém ousa mais afirmar isso; o desrespeito à natureza e uma relação
inconsequente com o mundo que nos sustenta poderia custar caro. Também nós somos parte
dessa natureza e dependemos dela.
Isso me faz refletir sobre a união estável
entre pessoas do mesmo sexo, equiparada pelo STF à união estável entre pessoas de
sexos diferentes; a decisão colocou ainda mais em evidência, na opinião pública, as
temáticas de homossexualismo e gênero, em discussão um pouco por toda parte. Penso
que isso requeira uma reflexão sobre a própria natureza do ser humano e sua sexualidade.
Parto
da antropologia cristã, que procura compreender e explicar o ser humano à luz do desígnio
de Deus sobre o homem e a mulher, perceptível pela inteligência a partir da natureza
das coisas e da revelação divina, na Sagrada Escritura. O pensamento cristão reconhece
dois gêneros complementares - masculino e feminino. O relato bíblico diz, de maneira
poética, que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança e constata: “homem
e mulher Deus os criou” (Gn 1,27). E Deus viu que assim estava bem, muito bom!
O
homem não é, pois, fruto de uma evolução caótica ou de um voluntarismo volúvel, mas
do desígnio divino, sábio e bom, perceptível na própria natureza humana: na sua corporeidade,
inteligência, vontade e capacidades espirituais, orientadas não apenas para a sobrevivência,
mas também para a busca da verdade, do bem e da plenitude do viver. O homem é dotado
de liberdade e tem a capacidade de discernir e de decidir-se pelo bem, ou pelo mal;
no exercício da liberdade, com responsabilidade, está uma das razões de sua dignidade
e grandeza.
Nem somos, como cantava um de nossos poetas, “esta metamorfose
ambulante”, que segue vagando pela vida sem saber quem é, o que quer, para quê vive,
por que é aquilo que é; e nem estamos presos a um determinismo cego, acorrentados
aos acontecimentos e à ignorância sobre nós mesmos, sem que possamos ser senhores
das nossas decisões e ações. Cabe-nos tomar conta de nós mesmos e viver de forma responsável,
conforme nossa natureza e dignidade.
Um aspecto importante desse viver conforme
a nossa natureza e dignidade consiste em assumir a própria identidade sexual. Sobre
isso há muita confusão na cultura atual; ao invés de ter a identidade sexual como
um dado de natureza, com significado e valores próprios, tende-se a ver nela um fenômeno
cultural volúvel, uma “construção subjetiva”; cada um lhe daria a orientação ditada
pela vontade, sentimentos e gostos pessoais. Nem mesmo a diferenciação sexual física
entre o masculino e o feminino é levada a sério; seria apenas um “fato secundário”,
quase um adereço descartável no corpo humano, contando mais aquilo que o sujeito decide
ser. Identidade sexual seria, pois, uma questão de opção.
Será que não estamos
aqui diante de um tremendo equívoco, apoiado no pressuposto errôneo de que a “natureza
humana” não é um dado real, mas algo projetado pelo sujeito, de dentro para fora de
si? Nega-se à natureza humana a “objetividade” que se afirma e defende, com razão,
para a natureza dos outros seres. Uma consequência dessa confusão, relativa à identidade
sexual, é o aumento de comportamentos pouco ou nada definidos, nem masculinos, nem
femininos. A “troca de sexo” parece um fato banal, apenas uma intervenção cirúrgica
no corpo... Neste contexto, ser heterossexual, homem ou mulher, seria apenas uma entre
várias possibilidades e opções quanto à identidade sexual. E se chama “casamento”
a união entre pessoas do mesmo sexo! Diante da pressão das circunstâncias, questionar
isso, quem ousaria? Seria politicamente incorreto!
Mas... perguntar é preciso!
Assim está bem? Assim vai ficar bem? Que conseqüências isso terá para o futuro? A
antropologia cristã afirma que a diferenciação sexual física tem um significado próprio,
a ser levado plenamente a sério. A pretensão de mexer na harmonia entre os sexos e
de submeter a identidade sexual ao arbítrio da vontade e dos sentimentos, tão influenciáveis
por fatores culturais e dinâmicas sócio-educativas (ou deseducativas...), é uma temeridade,
que não promete bons frutos.
A Igreja católica vê com preocupação a crescente
distorção sobre a identidade sexual. Antes mesmo de ser uma questão moral, é um problema
antropológico. A Igreja não incentiva, não apóia nem justifica qualquer tipo de violência
e agressão contra homossexuais, ou quem quer que seja, mas convida a uma séria reflexão.
Não é pensável que a natureza tenha errado, ao moldar o ser humano como homem e mulher.
Isso tem sentido e finalidade, que é preciso descobrir e acolher, em vez de banalizar.
A
sexualidade qualifica todos os aspectos da pessoa humana, na sua unidade de alma e
corpo, e diz respeito à afetividade, à capacidade de amar e procriar, de estabelecer
vínculos serenos e altruístas com os demais. Cabe a cada homem e mulher reconhecer
e aceitar a própria identidade sexual como um dom e uma missão; as diferenças físicas,
morais e espirituais são voltadas para a complementariedade, um bem para as pessoas
e para o fecundo convívio social.
O coração pode ser como um barco desatado;
não comandado pela racionalidade, ele é arrastado pelas correntes oportunistas e se
rebenta contra os rochedos... Não respeitar a natureza das coisas leva a desastres
ambientais e compromete a sustentabilidade da vida. E não é assim, quando se trata
da natureza humana?
SÃO PAULO, 08.07.2011 Card. Odilo P. Scherer Arcebispo
de São Paulo