A Vigília Pascal, coração do Ano litúrgico, presidida pelo Papa na Basílica de São
Pedro
(23/4/2011) Na noite, em que Jesus Cristo passou da morte à vida, a Igreja convida
os seus filhos a reunirem-se em vigília e oração. Na verdade, a Vigília pascal foi
sempre considerada a mãe de todas a vigílias e o coração do Ano litúrgico. A celebração
da Vigília pascal articula-se em quatro partes: 1) a liturgia da luz ou “lucernário”;
2) a liturgia da Palavra; 3) a liturgia batismal; 4) a liturgia eucarística. Estes
quatro momentos celebrativos têm como fio condutor a unidade do plano de salvação
de Deus em favor dos homens, que se realiza plenamente na Páscoa de Cristo por nós.
Por consequência, a Ressurreição de Cristo é o fundamento da fé e da esperança da
Igreja. Esta noite o Papa Bento XVI presidiu na Basílica de S. Pedro a celebração
da Vigília Pascal. Este o texto integral da homilia:“Amados irmãos e irmãs,
Dois
grandes sinais caracterizam a celebração litúrgica da Vigília Pascal. Temos antes
de mais nada o fogo que se torna luz. A luz do círio pascal que, na procissão através
da igreja encoberta na escuridão da noite, se torna uma onda de luzes, fala-nos de
Cristo como verdadeira estrela da manhã eternamente sem ocaso, fala-nos do Ressuscitado
em quem a luz venceu as trevas. O segundo sinal é a água. Esta recorda, por um lado,
as águas do Mar Vermelho, o afundamento e a morte, o mistério da Cruz; mas, por outro,
aparece-nos como água nascente, como elemento que dá vida na aridez. Torna-se assim
imagem do sacramento do Baptismo, que nos faz participantes da morte e ressurreição
de Jesus Cristo.
Mas não são apenas estes grandes sinais da criação,
a luz e a água, que fazem parte da liturgia da Vigília Pascal; outra característica
verdadeiramente essencial da Vigília é o facto de nos proporcionar um vasto encontro
com a palavra da Sagrada Escritura. Antes da reforma litúrgica, havia doze leituras
do Antigo Testamento e duas do Novo. As do Novo Testamento permaneceram; entretanto
o número das leituras do Antigo Testamento acabou fixado em sete, que, atendendo às
situações locais, se podem reduzir a três leituras. A Igreja quer, através de uma
ampla visão panorâmica, conduzir-nos ao longo do caminho da história da salvação,
desde a criação passando pela eleição e a libertação de Israel até aos testemunhos
proféticos, pelos quais toda esta história se orienta cada vez mais claramente para
Jesus Cristo. Na tradição litúrgica, todas estas leituras se chamavam profecias: mesmo
quando não são directamente vaticínios de acontecimentos futuros, elas têm um carácter
profético, mostram-nos o fundamento íntimo e a direcção da história; fazem com que
a criação e a história se tornem transparentes no essencial. Deste modo tomam-nos
pela mão e conduzem-nos para Cristo, mostram-nos a verdadeira luz.
Na
Vigília Pascal, o percurso ao longo dos caminhos da Sagrada Escritura começa pelo
relato da criação. Desta forma, a liturgia quer-nos dizer que também o relato da criação
é uma profecia. Não se trata de uma informação sobre a realização exterior da transformação
do universo e do homem. Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja, que entenderam
este relato não como narração real das origens das coisas, mas como apelo ao essencial,
ao verdadeiro princípio e ao fim do nosso ser. Ora, podemo-nos interrogar: mas, na
Vigília Pascal, é verdadeiramente importante falar também da criação? Não se poderia
começar pelos acontecimentos em que Deus chama o homem, forma para Si um povo e cria
a sua história com os homens na terra? A resposta deve ser: não! Omitir a criação
significaria equivocar-se sobre a história de Deus com os homens, diminuí-la, deixar
de ver a sua verdadeira ordem de grandeza. O arco da história que Deus fundou chega
até às origens, até à criação. A nossa profissão de fé inicia com as palavras: «Creio
em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra». Se omitimos este início do
Credo, a história global da salvação torna-se demasiado restrita, demasiado pequena.
A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas dos
homens e cujo objectivo se limitaria precisamente ao de uma tal associação. Não, a
Igreja leva o homem ao contacto com Deus e, consequentemente, com o princípio de tudo.
Por isso, Deus tem a ver connosco como Criador, e por isso possuímos uma responsabilidade
pela criação. A nossa responsabilidade inclui a criação, porque esta provém do Criador.
Deus pode dar-nos vida e guiar a nossa vida, só porque Ele criou o todo. A vida na
fé da Igreja não abrange somente o âmbito de sensações e sentimentos e porventura
de obrigações morais; mas abrange o homem na sua integralidade, desde as suas origens
e na perspectiva da eternidade. Só porque a criação pertence a Deus, podemos depositar
n’Ele completamente a nossa confiança. E só porque Ele é Criador, é que nos pode dar
a vida por toda a eternidade. A alegria e gratidão pela criação e a responsabilidade
por ela andam juntas uma com a outra.
Podemos determinar ainda mais
concretamente a mensagem central do relato da criação. Nas primeiras palavras do seu
Evangelho, São João resumiu o significado essencial do referido relato com uma única
frase: «No princípio, era o Verbo». Com efeito, o relato da criação, que ouvimos anteriormente,
caracteriza-se pela frase que aparece com regularidade: «Disse Deus…». O mundo é uma
produção da Palavra, do Logos, como se exprime João com um termo central da língua
grega. «Logos» significa «razão», «sentido», «palavra». Não é apenas razão, mas Razão
criadora que fala e comunica a Si mesma. Trata-se de Razão que é sentido, e que cria,
Ela mesma, sentido. Por isso, o relato da criação diz-nos que o mundo é uma produção
da Razão criadora. E deste modo diz-nos que, na origem de todas as coisas, não está
o que é sem razão, sem liberdade; pelo contrário, o princípio de todas as coisas é
a Razão criadora, é o amor, é a liberdade. Encontramo-nos aqui perante a alternativa
última que está em jogo na disputa entre fé e incredulidade: o princípio de tudo é
a irracionalidade, a falta de liberdade e o acaso, ou então o princípio do ser é razão,
liberdade, amor? O primado pertence à irracionalidade ou à razão? Tal é a questão
de que, em última análise, se trata. Como crentes, respondemos com o relato da criação
e com João: na origem, está a razão. Na origem, está a liberdade. Por isso, é bom
ser uma pessoa humana. Assim o que sucedera no universo em expansão não foi que por
fim, num angulozinho qualquer do cosmos, ter-se-ia formado por acaso também uma espécie
como qualquer outra de ser vivente, capaz de raciocinar e de tentar encontrar na criação
uma razão ou de lha conferir. Se o homem fosse apenas um tal produto casual da evolução
num lugar marginal qualquer do universo, então a sua vida seria sem sentido ou mesmo
um azar da natureza. Mas não! No início, está a Razão, a Razão criadora, divina. E,
dado que é Razão, ela criou também a liberdade; e, uma vez que se pode fazer uso indevido
da liberdade, existe também o que é contrário à criação. Por isso se estende, por
assim dizer, uma densa linha escura através da estrutura do universo e através da
natureza do homem. Mas, apesar desta contradição, a criação como tal permanece boa,
a vida permanece boa, porque na sua origem está a Razão boa, o amor criador de Deus.
Por isso, o mundo pode ser salvo. Por isso podemos e devemos colocar-nos da parte
da razão, da liberdade e do amor, da parte de Deus que nos ama de tal maneira que
Ele sofreu por nós, para que, da sua morte, pudesse surgir uma vida nova, definitiva,
restaurada.
O relato veterotestamentário da criação, que escutámos,
indica claramente esta ordem das coisas. Mas faz-nos dar um passo mais em frente.
O processo da criação aparece estruturado no quadro de uma semana que se orienta para
o Sábado, encontrando neste a sua perfeição. Para Israel, o Sábado era o dia em que
todos podiam participar no repouso de Deus, em que homem e animal, senhor e escravo,
grandes e pequenos estavam unidos na liberdade de Deus. Assim o Sábado era expressão
da aliança entre Deus, o homem e a criação. Deste modo, a comunhão entre Deus e o
homem não aparece como um acréscimo, algo instaurado posteriormente num mundo cuja
criação estava já concluída. A aliança, a comunhão entre Deus e o homem, está prevista
no mais íntimo da criação. Sim, a aliança é a razão intrínseca da criação, tal como
esta é o pressuposto exterior da aliança. Deus fez o mundo, para haver um lugar no
qual Ele pudesse comunicar o seu amor e a partir do qual a resposta de amor retornasse
a Ele. Diante de Deus, o coração do homem que Lhe responde é maior e mais importante
do que todo o imenso universo material que, certamente, já nos deixa vislumbrar algo
da grandeza de Deus.
Entretanto, na Páscoa e a partir da experiência
pascal dos cristãos, devemos ainda dar mais um passo. O Sábado é o sétimo dia da semana.
Depois de seis dias em que o homem, de certa forma, participa no trabalho criador
de Deus, o Sábado é o dia do repouso. Mas, na Igreja nascente, sucedeu algo de inaudito:
no lugar do Sábado, do sétimo dia, entra o primeiro dia. Este, enquanto dia da assembleia
litúrgica, é o dia do encontro com Deus por meio de Jesus Cristo, que no primeiro
dia, o Domingo, encontrou como Ressuscitado os seus, depois que estes encontraram
vazio o sepulcro. Agora inverte-se a estrutura da semana: já não está orientada para
o sétimo dia, em que se participa no repouso de Deus; a semana inicia com o primeiro
dia como dia do encontro com o Ressuscitado. Este encontro não cessa jamais de verificar-se
na celebração da Eucaristia, durante a qual o Senhor entra de novo no meio dos seus
e dá-Se a eles, deixa-Se por assim dizer tocar por eles, põe-Se à mesa com eles. Esta
mudança é um facto extraordinário, quando se considera que o Sábado – o sétimo dia
– está profundamente radicado no Antigo Testamento como o dia do encontro com Deus.
Quando se pensa como a passagem do trabalho ao dia do repouso corresponde também a
uma lógica natural, torna-se ainda mais evidente o alcance impressionante de tal alteração.
Este processo inovador, que se deu logo ao início do desenvolvimento da Igreja, só
se pode explicar com o facto de ter sucedido algo de inaudito em tal dia. O primeiro
dia da semana era o terceiro depois da morte de Jesus; era o dia em que Ele Se manifestou
aos seus como o Ressuscitado. De facto, este encontro continha nele algo de impressionante.
O mundo tinha mudado. Aquele que estivera morto goza agora de um vida que já não está
ameaçada por morte alguma. Fora inaugurada uma nova forma de vida, uma nova dimensão
da criação. O primeiro dia, segundo o relato do Génesis, é aquele em que teve início
a criação. Agora tornara-se, de uma forma nova, o dia da criação, tornara-se o dia
da nova criação. Nós celebramos o primeiro dia. Deste modo celebramos Deus, o Criador,
e a sua criação. Sim, creio em Deus, Criador do Céu e da Terra. E celebramos o Deus
que Se fez homem, padeceu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Celebramos a vitória
definitiva do Criador e da sua criação. Celebramos este dia como origem e simultaneamente
como meta da nossa vida. Celebramo-lo porque agora, graças ao Ressuscitado, vale de
modo definitivo que a razão é mais forte do que a irracionalidade, a verdade mais
forte do que a mentira, o amor mais forte do que a morte. Celebramos o primeiro dia,
porque sabemos que a linha escura que atravessa a criação não permanece para sempre.
Celebramo-lo, porque sabemos que agora vale definitivamente o que se diz no fim do
relato da criação: «Deus viu que tudo o que tinha feito; era tudo muito bom» (Gn 1,
31). Amen.” Neste Domingo de Páscoa Bento XVI preside na Praça de S. Pedro
a celebração da Missa e ao meio dia, da varanda central da Basílica proferirá a sua
mensagem pascal que se concluirá com a bênção á cidade de Roma e ao mundo