2011-04-16 14:40:15

OLHAR SOBRE AS REVOLTAS AFRICANAS


A crise que afecta a África do Norte mostra que a Comunidade Internacional é ainda hoje prisioneira duma certa visão da África, típica do século XIX. Isto é, a de um continente visto apenas como apêndice da história mundial, como um simples parágrafo da geopolítica planetária e não como um sujeito político com um papel geoestratégico a desempenhar no concerto das nações.
Os meios de comunicação internacional falaram neste período sobretudo de “revolução árabe”, associando imediatamente a essas revoltas o perigo duma difusão do fundamentalismo islâmico. Interpretaram mal a realidade dos países em questão que são, antes de mais, países africanos, fundadores e membros de pleno direito da União Africana – instituição que representa o continente no organigrama da Comunidade Internacional. Além disso, convém recordar, por um lado, que a Argélia, a Líbia, Marrocos e Tunísia não são os únicos países árabes do continente africano e, por outro, que outros Estados africanos, como a Mauritânia, Moçambique, Senegal, África do Sul, etc., estão a viver importantes crises sociais e políticas, de que os meios de comunicação não falam. Essa má interpretação está na origem do contraste que se criou na gestão da crise líbia entre a UA e a chamada “coligação de voluntários” constituída essencialmente por países europeus e pelos Estados Unidos da América. Embora a própria Carta da ONU atribua um papel prioritário às organizações regionais na resolução de crises locais, a estratégia adoptada até hoje pelos euro-norte-americanos não prevê o envolvimento da UA como guia no processo de interposição entre as parte em conflito. Isto mostra claramente que é essa visão clássica da geopolítica que leva as potencias ocidentais a ignorar o papel da UA e dos países africanos na procura de soluções para essas crises. A atitude assumida pela Europa é típica de quem continua a considerar a África do Norte como um “corpo estranho” em relação ao resto do Continente, colocando-a no seio duma estratégia medio-oriental e daquilo a que se chama hoje de “Espaço Euro-mediterrâneo”. Uma visão que não leva em consideração nem a África a Sul do Sahara (onde se verificam também análogas mobilizações públicas de protesto) - dando assim a imagem dum continente fragmentado - nem o longo período em que os africanos gozaram dum certo bem-estar. Enfim, é a imagem que convém ao mundo ocidental, aos seus interesses estratégicos e à sua segurança, isto é: por um lado, a exigência de garantir o equilíbrio no Médio Oriente e, por outro, o acesso aos recursos petrolíferos locais.

De que modo teria a UA gerido a revolução na África do Norte, e de modo particular na Líbia?

No âmbito do projecto de “Renascimento Continental”, o programa NEPAD (Nova Parceria Económica para o Desenvolvimento da África), lançado no início do novo milénio pelos Chefes de Estado africanos, prevê, entres as reformas necessárias para o desenvolvimento do continente, a edificação da paz e da reconciliação nacional e a construção de Estados de Direito democrático através de processos que levem ao pluralismo institucional e a eleições livres e populares.
A Líbia é um país importante para a actuação do programa da UA e para o equilíbrio geoestratégico e económico de toda a África. De acordo com as linhas traçadas pelo NEPAD, os dirigentes da UA estão a trabalhar desde há muito a favor duma transição pacífica para um novo regime na Líbia. Com efeito, a tendência a procurar soluções concertadas em vez de usar a violência está patente no Estatuto da própria União Africana. Foi instituída, há já alguns anos, sob a égide da UA, uma mesa de dialogo informal destinada precisamente a facilitar a compreensão e a construção da paz entre os diversos grupos que compõem a sociedade líbia, por forma a responder às legítimas aspirações do povo. Além disso, na sequência da explosão das violências em Fevereiro passado, antes de a ONU optar pela “no-fly zone” e da intervenção armada, a UA tinha dado início a negociações com vista num cessar-fogo imediato entre o Conselho Nacional de Transição (CNT) em Benghazi e as autoridades de Tripoli. E, no âmbito do roteiro da UA, estava prevista a deslocação duma missão de cinco Chefes de Estado africanos para a Líbia, precisamente com vista numa concertação entre Gheddafi e os rebeldes. Não surpreende, portanto, que a intervenção militar tenha suscitado uma clara condenação por parte de quase todos os Chefes de Estado africanos (mesmo daqueles que geralmente são muito críticos em relação ao regime de Gheddafi) e das populações, que manifestaram o seu descontentamento com manifestações em Dakar e noutras cidades africanas.
O Presidente da Comissão da UA, Jean Ping, sublinhou já em várias ocasiões que o diálogo entre as partes é fundamental a fim de restabelecer a paz e preservar a integridade territorial da Líbia. A UA insistiu também sobre a necessidade de manter o embargo sobre as armas, de atenuar o ódio e de criar um novo pacto político, cultural e religioso no seio da população. Mas, devido à explosão da violência interna e à resposta inadequada dada pela Europa e pelos Estados Unidos, o tecido social necessário para a reconciliação nacional e a edificação dum Estado de Direito democrático na Líbia está agora comprometida. Por outro lado, o uso da violência política traz problemas também do ponto de vista do reconhecimento duma eventual nova coligação política que guie o país pois, obedecendo ao seu Estatuto, a UA não pode reconhecer um Governo que suba ao poder pelas armas.

Infelizmente, as “visões antigas” que determinam a percepção que o mundo ocidental tem da realidade internacional não lhe permite empreender uma parceria mais serena com o continente africano no seu conjunto. A perspectiva duma verdadeira cooperação deve ter presente a evolução das políticas e das sociedades que, para acompanharem a evolução do mundo, têm necessariamente de “mudar à medida que o mundo muda”. Daí a necessidade de um olhar dinâmico, atento ao que se passa no seio das sociedades africanas e à maneira como os africanos se colocam perante a actual conjuntura geopolítica continental e internacional. Uma leitura mais coerente com a realidade local – diferente das “narrações históricas” feitas pelos principais meios de comunicação internacionais – teria permitido dar-se conta de que o comportamento da oposição constitui desde há anos o elemento fundamental da vida social em todo o continente africano. Os povos africanos estão a acordar-se e isto faz parte duma generalizada “cultura da discórdia” que surgiu em concomitância e graças ao evento do chamado pluralismo político. Hoje em dia homens e mulheres levantam a voz e enfrentam abertamente a violência sistemática dos poderes dominantes. Estão conscientes da necessidade de lutar contra a terrível miséria da era contemporânea, dominada pelo “Evangelho do Mercado” no âmbito do qual o dinheiro tem sempre um valor absoluto. Populações, inteiras, privadas de direitos políticos, revelam todo o seu potencial de protesto colectivo, resistindo à tentação de se render perante a repressão dos chamados “regimes de ferro”. A África é, desde há muito, um continente em ebulição e corre o risco de implodir se às demandas bem precisas e sem nenhum carácter ideológico dos povos em tumulto não forem dadas respostas globais adequadas. Das revoluções ideológicas passou-se para revoltas populares na base das quais estão legítimas reivindicações. Os revoltosos de hoje não pretendem tomar o poder. Pedem, isso sim, pão, medicamentos, justiça social, trabalho, democracia… Trata-se de reivindicações sociais que podem ser compreendidas só se for dado o justo valor – sem pôr de lado a complexidade do continente - ao “bricolage” e à pluralidade de experiências que caracterizam as sociedades africanas. Com a intervenção das potências europeias, estas revoltas foram, de certo modo, voluntariamente, mantidas à margem da região da África do Norte e consideradas como uma realidade à parte, tutelando assim um conceito de “segurança” que não toma em consideração as profundas aspirações dos povos africanos à paz, ao desenvolvimento e à liberdade.
Podemos, portanto, concluir que a África do Norte, com excepção da Argélia, é atravessada, com 20 anos de atraso em relação às outras regiões da África, por essa sede de libertação.
O factor inovativo dos últimos meses não está, portanto, na mobilização das pessoas nas praças públicas, mas na surpresa que – no caso da Tunísia - parece ter causado aos Estados Unidos e à Europa, e – no caso da Líbia - na decisão duma intervenção directa sem consultar previamente a UA.
A solução encontrada pelos aliados para a crise líbia - contra um líder que tinha demonstrado em política estrangeira uma posição de grande autonomia em relação às potencias ocidentais – renova nos africanos o medo do retorno do “fantasma de Patrice Lumumba”, líder da República Democrática do Congo nos anos 50, vítima e símbolo daquela estratégia de eliminação sistemática de todos os políticos da África que mostram espírito de independência em relação aos interesses das potências estrangeiras. Hoje, mais do que nunca, a grande maioria dos dirigentes africanos perguntam-se se – como disse o Presidente do Uganda, Yoweri Museveni – no âmbito duma verdadeira cooperação será, por ventura, permitido também aos líderes africanos ter uma certa “independência intelectual”, sem com isso ter de fazer o mesmo fim de Lumumba, Amílcar Cabral, Thomás Sakara e muitos outros.

(Sob a orientação de Filomeno Lopes, do Programa Português)








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