2010-08-20 11:30:03

O conceito de Justiça no segundo o Sínodo dos Bispos para a África


Extractos duma reflexão de Paul Béré, Sj – Professor de Sagrada Escritura no Instituto de Teologia da Companhia de Jesus em Abidjan e Consultor da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos – publicada no site da Promotio Iustitiae
(http://sjweb.info/sjs/pjnew/PJShow.cfm?pubTextID=9004)

Três noções fundamentais foram tomados em consideração pelo segundo Sínodo para a África: a reconciliação, a justiça e a paz. Estas noções constituem hoje, para a Igreja em África, os desafios da Evangelização.

A justiça distributiva: “a cada um o seu”
No Instrumentum Laboris, a noção de justiça aparece sob a sua forma comum de “dar a cada um a sua parte”.
Se em todas as sociedades do planeta fala-se do fosso existente entre ricos e pobres, em África é a consciência humana que é mais chamada em causa. O solo e o subsolo africanos têm imensos recursos, desfrutados e exportados em benefício de sociedades não africanas ou duma oligarquia africana, em detrimento das populações do continente. Há, portanto, um grave problema de “distribuição” das riquezas por forma a garantir a cada um o mínimo indispensável para uma vida digna. É, no entanto, verdade que à luz das discussões suscitadas por esta compreensão do conceito de justiça, esse “mínimo” põe problemas. (Cfr. M. Ndomba, “De l’Injustice comme violence à la justice comme contenu de l’étique de la paix », Akwaba, 2,2009, pp. 55-63)

Quem deveria assegurar a distribuição ?
Nas intervenções e documentos dos Padres sinodais, os governos, os agentes políticos e económicos são considerados responsáveis pela distribuição iníqua dos bens produzidos. Com efeito, lê-se no Nuntios: “Qualquer que seja o nível da responsabilidade atribuível às sociedades estrangeiras, não se pode negar a vergonhosa e trágica cumplicidade dos líderes locais: dos políticos que traem e leiloam os próprios países; dos homens de negócio que, sem nenhum pudor, estabelecem alianças com as vorazes multinacionais; dos africanos que traficam armas e fazem especulações sobre as armas ligeiras, causas de destruição de vidas humanas; dos agentes locais de organizações internacionais que se fazem pagar para difundir ideologias negativas a que nem sequer eles próprios aderem”. Esta denúncia das injustiças apoia-se na concepção da justiça distributiva. Lançando um olhar positivo sobre os esforços feitos pelos governos africanos, o Sínodo dá prova de justiça. Àqueles que se empenham com firmeza, dá o justo reconhecimento por aquilo que fazem no sector da política e da economia. Como exemplo, podemos mencionar a atenção dada ao “Mecanismo de controlo paritário africano” (MAEP), órgão de auto-avaliação da gestão económica e política.
Na leitura do fenómeno da mundialização, o Sínodo lança o olhar ao conceito de justiça distributiva. Constata uma situação de injustiça em relação à África injuriada, espoliada não só da sua auto-gestão, mas também e, sobretudo, da sua cultura, violentada na sua alma religiosa, pois que, embora seja “o pulmão espiritual do mundo de hoje, corre o risco de ser infectada pelo vírus do materialismo e do fanatismo religioso”. Com efeito, vendedores de soluções “mágicas” de desenvolvimento manipulam, através dos media, a juventude, fazendo-a crer que a cultura materialista é sinal e prova de desenvolvimento.

Num tal contexto, quem é que deve dar às gerações africanas actuais e futuras o que lhes é devido?

Estas considerações são prova da necessidade dum conceito operativo de justiça a nível horizontal. Contudo, uma tal visão da justiça seria insuficiente, não tanto pelos resultados tangíveis, quanto pela intensa procura duma justiça autentica. Então, os padres sinodais sublinharam a importância de tomar em consideração a dimensão transcendente da noção de justiça que vem da Sagrada Escritura e que serve de ponto de partida.
Baseando-se tanto no Antigo como no Novo Testamentos, o termo “justiça” foi tomado de novo em consideração para indicar já não “objectos” (físicos) a dar, mas sim relações a restabelecer. É a aliança bíblica que se torna, deste modo, ponto de referência nesta forma de entender a justiça.
Sucessivamente, assistiu-se ao crescimento do “espírito do capitalismo” unido à alienação do conceito de justiça deixando de lado toda e qualquer referência às raízes transcendentais. A moral no âmbito económico, por exemplo, era racionalista e individualista. O seu principal ponto de interesse era o lucro e prescindia de qualquer pedido de solidariedade de um “ordo amoris” e de qualquer ligação moral com a religião. Consequentemente, era completamente anulada a noção de justiça social e a “justiça”não era aplicada senão aos acordos estabelecidos através de contratos negociados no quadro da lei da demanda e da oferta, sem nenhuma restrição perante a empresa individual. O Estado tinha apenas a tarefa de fazer respeitar a ordem pública e os empenhos contratuais, mas permanecia totalmente neutro em relação aos seus conteúdos.”

Para corrigir esta visão das coisas, o Sínodo recorreu à Palavra de Deus. E fez notar que a narração da história da salvação no Antigo Testamento trouxe ao de cima a incapacidade dos filhos de Israel de se elevar à altura das exigências da Aliança. Foram completamente infiéis ao seu companheiro, o Senhor Deus. A justiça de que o Sínodo se fez eco é a da Sagrada Escritura, a qual concebe-a como dom de Deus, no qual Deus se revela de forma significativa e concede a graça da salvação àqueles que não a merecem.
A justiça consiste em restabelecer as relações originárias duma Aliança em que todos os africanos viverão como filhos e filhas duma mesma família. É este tipo de justiça, maior do que a dos homens, que a Igreja, como Família de Deus, sente o dever de promover.
Esta concepção de justiça encontra, assim, a sua própria finalidade na reconciliação de que a paz é sinal: assenta na relação com Deus e se revela na relação entre os seres humanos.

De que modo a justiça distributiva e a justiça da Aliança podem enlaçar-se?

Na óptica do Sínodo, “a justiça da diakonia cristã é a justa ordem das coisas e a satisfação das exigências legítimas das relações. Trata-se da justiça e da rectidão de Deus e do seu Reino (cfr. Mt, 6,33)”. Implicitamente, dir-se-ia, portanto, que “dar a cada um a sua parte”, em que o paradigma da distribuição se amplia inscrevendo-se num quadro relacional mais vasto, permite dar-se conta dos aspectos daquilo que é devido a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, e que fogem às estruturas de distribuição.
A dimensão espiritual da justiça é, portanto, o perno em volta do qual o Sínodo acha que deve rodar a formação do artífice da justiça, ajudando-o a relacionar-se com Deus e, deste modo, também com os outros, porque “a justiça não pode realizar-se apenas com a força do homem. É um dom de Deus…. Aquele Deus que se manifesta em Cristo”
Contudo, através das várias tomadas de posição, pôde-se perceber que o conceito de justiça dominante permanece o de “dar a cada um a sua parte”. A insistência na dimensão transcendental é a condição necessária para tornar possível e efectiva a justiça distributiva. Como salientei, mesmo o paradigma da distribuição se amplia, integrando, assim, a realidade não distribuível, inserindo-a na esfera das relações.

Para terminar, quero fazer notar que, não é de admirar que pastores a braços com situações candentes como a africana, não
tenham suficientemente elaborado a base conceptual da justiça a fim de a tornar operativa na óptica da análise das situações pastorais. Quando se afirma que: “Deus justifica o pecador com um acto de graça, e o homem faz justiça àquele que o ofendeu, perdoando-lhe as próprias culpas”, fica por definir o conceito de perdão na ordem humana das coisas como componente da justiça à imagem da justiça de Deus?

Paul Béré, Sj
Costa do Marfim







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