Rio de Janeiro, 17 abr (RV) - Domingo passado, ao celebrar o tema da “misericórdia”,
tive a oportunidade de estar com milhares de pessoas tanto na Catedral Metropolitana
como no anúncio e instalação do Santuário da Misericórdia, o segundo no Brasil, e
na Paróquia de Santa Luzia, que inicia os trabalhos de seu novo templo. Em todas as
celebrações pudemos pedir a Deus pelas pessoas que partiram e também pelas famílias
que experimentam a dor da separação. Também rezamos por todos os que se encontram
desabrigados e por aqueles cuja incerteza do amanhã está no horizonte de seus dias. Mas
o que tem me comovido é a solidariedade em nossas capelas e paróquias envolvendo pessoas
de todos os cantos deste estado, seja partilhando seus bens, seja permanecendo junto
às pessoas e proporcionando-lhes o necessário para esse momento de tragédia. O Papa
Bento XVI enviou-nos uma mensagem de solidariedade e também, através do “Cor Unum”,
uma contribuição em dinheiro para o socorro mais urgente. Esse clima de fraternidade
que contagia a todos é uma consequência de nossa formação cristã e católica, que procura
fazer o bem a todos, sem distinção. Sem dúvida que a experiência da misericórdia
de Deus nos faz também ter um coração misericordioso em todos os âmbitos e situações.
O grande segredo para o êxito de nossa vida cristã está na nossa capacidade de acolher
a Divina Misericórdia. O Cristianismo foi fundado pela misericórdia de Deus. Se experimentarmos
a misericórdia divina, tudo muda em nossa vida! Assim, renovaremos a nossa vida e
nos transformaremos, na verdade, em canais do amor de Deus manifestado em Cristo.
Segundo a grande apóstola da Divina Misericórdia, a Irmã Faustina, cada um de nós
torna-se instrumento da misericórdia na medida em que entrega a sua vida, sem reservas,
à Divina Misericórdia, que é o próprio Jesus, morto e ressuscitado para a nossa salvação.
A íntima união com Jesus, que perdoa, cura e salva, faz toda a diferença! Unidos a
Ele, seremos capazes de cumprir o mandamento bíblico: “Sede misericordiosos como
também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). A vida de Jesus é a vida do Pai.
Quem se une a Jesus recebe, por força do Espírito Santo, a vida divina. Não sejamos
indiferentes ao amor de Deus! É por causa desse amor que amamos os nossos irmãos e
irmãs, encontrando em cada um o próprio Jesus Cristo (o que fizerdes ao menor dos
meus irmãos é a Mim que o fareis...). Essas atitudes fazem a diferença! Teríamos até
mais carinho com as pessoas, com o meio ambiente e até mesmo com os monumentos de
nossas cidades! O tema da solidariedade deve colocar-se cada vez mais no centro
de nossas reflexões e ações. A humanidade sabe que o companheirismo, o espírito altruísta,
o apoio mútuo, o amor-doação, enfim, tudo o que se pode englobar no conceito de solidariedade
é o caminho para encontrar a justa solução para os desafios que se colocam ao longo
do caminho. A humanidade só pode alcançar a verdade sobre si mesma se se abre para
a doação, conforme as palavras de Bento XVI: “O ser humano está feito para o dom,
que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência” (Caritas in veritate, 34). Só
no amor recebido e dado, o ser humano se encontra com sua dimensão mais profunda.
Sim, o ser humano recebe de Deus o amor e deve difundi-lo ao seu redor com espírito
de verdadeira entrega pelo bem do outro. A grande dificuldade das leis hodiernas
é compreender esse clima de fraternidade que leva as pessoas a serem voluntárias e
a se doarem em causas sociais e religiosas. Hoje, há uma desconfiança de que tudo
pode ser uma exploração – de ambos os lados – quando se trata desse trabalho voluntário.
A sociedade que está sendo construída é aquela em que tudo desperta vínculos e responsabilidades
sociais que significam dinheiro e processos. Tanto os que lutam pelo social como os
que estão preocupados com o lucro caem na mesma armadilha. Diante da tragédia ocorrida
no Rio de Janeiro, pudemos constatar como o espírito de solidariedade está profundamente
inscrito nos corações. Muitas famílias desapareceram, outras perderam membros, entes
queridos ou bens. A dor é grande e as lágrimas ainda correm em nossos rostos, mas
o espírito fraterno mostrou-se, podemos dizer, com a mesma intensidade. Vemos pessoas
ajudando pessoas. Uns preocupam-se com o bem dos outros, e, animados pelo mais puro
espírito de amor e solidariedade, não têm medo de renunciar aos interesses próprios
para servir e aliviar a dor alheia. O testemunho de muitos homens e mulheres realmente
nos edifica. Quando vemos a obra do bem acontecendo em nosso meio ficamos ainda mais
convictos de que é pela senda do amor mútuo que devemos caminhar, sem jamais desistir.
Aliás, o inigualável Mestre de Nazaré já nos recomendara: “Amai-vos uns aos outros,
como eu vos tenho amado”. Encontrei pessoas que tinham permanecido acordadas quase
toda a noite acolhendo outras, preparando refeições, acomodando em colchonetes e consolando
as pessoas em nossas capelas e mesmo trabalhando em locais públicos que abrigam os
mais necessitados neste momento. Além das celebrações gerais, em todas as capelas
e paróquias estivemos juntos em oração sabendo que, além das necessidades atuais,
precisamos também experimentar o Amor Misericordioso de Deus. Aproveitamos o ensejo
para dirigir um apelo aos homens e mulheres de boa vontade, às paróquias, igrejas
e aos diversos segmentos da sociedade (afinal, fizemos parcerias com muitos grupos
e entidades), a fim de que o bem às pessoas e famílias necessitadas não cesse de ser
feito. Não podemos cruzar os braços numa hora decisiva como esta, em que nos é pedido
um verdadeiro testemunho de solidariedade. Voltemo-nos para o profundo de nosso ser
e reconheçamos que o amor é positivo, o amor constrói, o amor cura e liberta. Isso
é muito mais urgente, pois agora que a mídia começa a se preocupar com outros assuntos
e a catástrofe deixa de gerar notícias, cabe a nós acompanhar as famílias e dar os
encaminhamentos que irão se seguir. Cada um faça segundo as suas possibilidades, mas
não deixe de fazer alguma coisa. Uma prece, um abraço, uma palavra de conforto, uma
ajuda financeira... tudo é bem-vindo. Tudo isso se acrescenta ao mutirão de solidariedade
que já está acontecendo. A tragédia nos leva também a refletir sobre o papel do
Estado como promotor da dignidade dos cidadãos. Somos chamados a examinar a história
e verificar os encaminhamentos do passado, mas temos também por obrigação refletir
sobre o papel de todos nós nesses fatos que ora nos comovem. Por que muitos foram
morar em áreas de extremo risco e periculosidade? Como aproveitar a inteligência e
estudos que temos para descobrir como fazer e viver melhor? O Estado, sem dúvida,
tem de fazer valer a constituição. Mas uma pergunta não cessa de vir ao nosso coração,
que é a lei que regulamenta a ocupação do solo urbano e orienta nos caminhos a serem
trilhados. É um direito de cada cidadão ter condições mínimas de vida digna, e assim
muitas tragédias poderiam ser evitadas se a justiça fosse realmente garantida e o
bem comum da sociedade fosse buscado com sinceridade por todos, cada um de nós e,
em especial, nossos representantes políticos. Às pessoas que perderam entes queridos
e as próprias casas queremos dirigir uma palavra de conforto e esperança: não desanimem!
Deus acompanha com o seu coração de Pai tudo o que acontece conosco. Ele não nos é
indiferente. Em seus desígnios misteriosos, até mesmo dos males pode jorrar a luz
do bem, pois Deus sabe tirar dos males o bem. Confiemos! Nós, cariocas, sabemos que
todos os momentos difíceis da vida são enfrentados e vencidos através da Fé, da prática
do Bem e da Solidariedade. Por isso, nunca desanimamos; ao contrário, unimo-nos no
sorriso e nas lágrimas; abraçamo-nos na festa e na dor. Que os cristãos e todas
as pessoas de boa-vontade sejam para os irmãos precisados uma luz no caminho e um
sinal de esperança na estrada! Que a força do Ressuscitado envolva cada coração, em
especial dos que estão sofrendo, para que todos juntos possamos trabalhar por uma
cidade onde reinem a paz, a valorização da vida, o respeito ao meio ambiente e o amor
a Deus. Não deixemos de fazer o bem! Não percamos a esperança! O Senhor venceu!
N’Ele somos mais que vencedores. Sempre é Páscoa para os que creem! É tempo de solidariedade,
tempo de fraternidade, tempo de amar os irmãos e irmãs e continuar construindo entre
nós a “civilização do amor”. + Orani João Tempesta, O. Cist. Arcebispo de São
Sebastião do Rio de Janeiro, RJ