PUBLICADA CARTA PASTORAL DE BENTO XVI AOS CATÓLICOS NA IRLANDA
Cidade do Vaticano, 20 mar (RV) – O Papa sempre se empenhou contra a cultura
da ocultação e do silêncio: foi o que afirmou o Diretor da Sala de Imprensa da Santa
Sé, Pe. Federico Lombardi, que na manhã deste sábado numa coletiva ilustrou aos jornalistas
o conteúdo da Carta pastoral do Santo Padre aos fiéis irlandeses. Um documento – disse
Pe. Lombardi – que não faz rodeios em relação à verdade e à justiça ao tratar da questão
da pedofilia.
Verdade, consciência, dor, conversão, compromisso: Pe. Lombardi
indicou as palavras-chaves para interpretar o significado da Carta do Papa aos fiéis
irlandeses. Um documento – observou ele – redigido em estilo simples e com espírito
de participação, com algumas passagens que expressam comoção, sinal da participação
do Santo Padre quando se dirige às vítimas dos abusos.
Dito isso, o Diretor
da Sala de Imprensa da Santa Sé observou:
"É um documento que não procura desculpas,
honesto e sincero. A Carta pastoral permanece muito honestamente e lealmente concentrada
na Igreja, sobre as responsabilidades dos membros da Igreja, sobre os sofrimentos
provocados aos outros e não busca descarregar o problema para fora de si."
Além
disso, Pe. Lombardi ressaltou o realismo do Papa, que antes de publicar essa Carta
se documentou sobre os relatórios irlandeses Ryan e Murphy e encontrou os bispos do
país:
"O Papa não pensa que se trate de uma coisa simples e rápida. Ele mesmo
afirma que "este é somente um passo de um longo caminho"."
Respondendo às perguntas
dos jornalistas, o Diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé evidenciou o compromisso
do Papa contra a pedofilia na Igreja e contra a "cultura do silêncio" desde quando
era cardeal:
"Quem conhece a situação e conhece também o trabalho realizado
pelo Papa, constata que o Santo Padre é uma testemunha da busca de coerência e de
clareza e que também durante todo o tempo que passou à frente da Congregação para
a Doutrina da Fé foi um tempo não de acobertamento ou de escondimento das questões,
mas sempre de decidido compromisso em favor do esclarecimento e da intervenção."
A
Carta – disse o Diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé – é um documento pastoral
e, portanto, não se detém sobre medidas administrativas e jurídicas relacionadas a
eventuais renúncias de prelados irlandeses. Contudo, são decisões que cabem ao Pontífice.
Pe.
Lombardi explicou que no momento não está em preparação um novo documento da Congregação
para a Doutrina da Fé sobre a questão. Em seguida, reiterou que os membros da Igreja
são chamados a respeitar as leis dos países em que vivem e a colaborar com as autoridades
civis.
A Igreja – acrescentou – se propõe como uma autoridade moral e, portanto,
esses crimes são ainda mais graves se cometidos por expoentes eclesiais.
Por
fim, a propósito da situação dos abusos na Alemanha, Pe. Lombardi afirmou que todo
país tem uma especificidade própria e que cabe ao Papa escolher o tempo e o modo de
intervir. (RL)
Eis a carta na íntegra, em português:
1. Amados
Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos escrevo como
Pastor da Igreja universal. Como vós, fiquei profundamente perturbado com as notícias
dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis da parte de membros da Igreja
na Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não posso deixar de partilhar o
pavor e a sensação de traição que muitos de vós experimentastes ao tomar conhecimento
destes actos pecaminosos e criminais e do modo como as autoridades da Igreja na Irlanda
os enfrentaram.
Como sabeis, convidei recentemente os bispos irlandeses para
um encontro aqui em Roma a fim de referir sobre o modo como trataram estas questões
no passado e indicar os passos que empreenderam para responder a esta grave situação.
Juntamente com alguns altos Prelados da Cúria Romana ouvi quanto tinham para dizer,
quer individualmente quer em grupo, enquanto propunham uma análise dos erros cometidos
e das lições aprendidads, e uma descrição dos programas e dos protocolos hoje existente.
As nossas reflexões foram francas e construtivas. Alimento a confiança de que, como
resultado, os bispos se encontrem agora numa posição mais forte para levar por diante
a tarefa de reparar as injustiças do passado e para enfrentar as temáticas mais amplas
relacionadas com o abuso dos menores segundo modalidades conformes com as exigências
da justiça e com os ensinamentos do Evangelho.
2. Por meu lado, considerando
a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada
da parte das autoridades eclesiásticas no vosso país,, decidi escrever esta Carta
Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e para vos propor um caminho de cura,
de renovação e de reparação.
Na realidade, como muitos no vosso país revelaram,
o problema do abuso dos menores não é específico nem da Irlanda nem da Igreja. Contudo
a tarefa que agora tendes à vossa frente é enfrentar o problema dos abusos que se
verificaram no âmbito da comunidade católica irlandesa e de o fazer com coragem e
determinação. Ninguém pense que esta dolorosa situação se resolverá em pouco tempo.
Foram dados passos em frente positivos, mas ainda resta muito para fazer. É preciso
perseverança e oração, com grande confiança na força restabelecedora da graça de Deus.
Ao
mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se recuperar desta
dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor
e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta consciência,
acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar
a um esforço concentrado para garantir a protecção dos jovens em relação a semelhantes
crimes no futuro.
Enquanto enfretais os desafios deste momento, peço-vos que
vos recordeis da «rocha de que fostes talhados» (Is 51, 1). Reflecti sobre as contribuições
generosas, com frequência heróicas, oferecidas à Igreja e à humanidade como tal pelas
passadas gerações de homens e mulheres irlandeses, e deixai que isto gere impulso
para um honesto auto-exame e um convicto programa de renovação eclesial e individual.
A minha oração é por que, assistida pela intercessão dos seus muitos santos e purificada
pela penitência, a Igreja na Irlanda supere a presente crise e volte a ser uma testemunha
convincente da verdade e da bondade de Deus omnipotente, manifestadas no seu Filho
Jesus Cristo.
3. Historicamente os católicos da Irlanda demonstraram-se uma
grande força de bem quer na pátria quer fora. Monges célticos, como São Colombano,
difundiram o Evangelho na Europa Ocidental lançando as bases da cultura monástica
medieval. Os ideais de santidade, de caridade e de sabedoria transcendente que derivam
da fé cristã, encontraram expressão na construção de igrejas e mosteiros e na instituição
de escolas, bibliotecas e hospitais que consolidaram a identidade espiritual da Europa.
Aqueles missionários irlandeses tiraram a sua força e inspiração da fé sólida, da
guia forte e dos comportamentos morais rectos da Igreja na sua terra natal.
A
partir do século XVI, os católicos na Irlanda sofreram um longo período de perseguição,
durante o qual lutaram para manter viva a chama da fé em circunstâncias perigosas
e difíceis. Santo Oliver Plunkett, o Arcebispo mártir de Armagh, é o exemplo mais
famoso de uma multidão de corajosos filhos e filhas da Irlanda dispostos a dar a própria
vida pela fidelidade ao Evangelho. Depois da Emancipação Católica, a Igreja teve a
liberdade de crescer de novo. Famílias e inúmeras pessoas que tinham preservado a
fé durante os tempos das provações tornaram-se a centelha de um grande renascimento
do catolicismo irlandês no século XIX. A Igreja forneceu escolarização, sobretudo
aos pobres, e isto deu uma grande contribuição à sociedade irlandesa. Um dos frutos
das novas escolas católicas foi um aumento de vocações: gerações de sacerdotes, irmãs
e irmãos missionários deixaram a pátria para servir em todos os continentes, sobretudo
no mundo de língua inglesa. Foram admiráveis não só pela vastidão do seu número, mas
também pela robustez da fé e pela solidez do seu empenho pastoral. Muitas dioceses,
sobretudo em África, América e Austrália, beneficiaram da presença de clero e religiosos
irlandeses que anunciaram o Evangelho e fundaram paróquias, escolas e universidades,
clínicas e hospitais, que serviram tanto os católicos, como a sociedade em geral,
com atenção especial às necessidades dos pobres.
Em quase todas as famílias
da Irlanda houve alguém – um filho ou uma filha, uma tia ou um tio – que deu a própria
vida à Igreja. Justamente as famílias irlandesas têm em grande estima e afecto os
seus queridos, que ofereceram a própria vida a Cristo, partilhando o dom da fé com
outros e actualizando-a num serviço amoroso a Deus e ao próximo.
4. Contudo,
nos últimos decénios a Igreja no vosso país teve que se confrontar com novos e graves
desafios à fé que surgiram da rápida transformação e secularização da sociedade irlandesa.
Verificou-se uma mudança social muito rápida, que muitas vezes atingiu com efeitos
hostis a tradicional adesão do povo ao ensinamento e aos valores católicos. Com frequência
as práticas sacramentais e devocionais que sustentam a fé e a tornam capaz de crescer,
como por exemplo a confissão frequente, a oração quotidiana e os ritos anuais, não
foram atendidas. Determinante foi também neste período a tendência, até da parte de
sacerdotes e religiosos, para adoptar modos de pensamento e de juízo das realidades
seculares sem referência suficiente ao Evangelho. O programa de renovação proposto
pelo Concílio Vaticano II por vezes foi mal compreendido e na realidade, à luz das
profundas mudanças sociais que se estavam a verificar, não era fácil avaliar o modo
melhor de o realizar. Em particular, houve uma tendência, ditada por recta intenção
mas errada, a evitar abordagens penais em relação a situações canónicas irregulares.
É neste contexto geral que devemos procurar compreender o desconcertante problema
do abuso sexual dos jovens, que contribuiu em grande medida para o enfraquecimento
da fé e para a perda do respeito pela Igreja e pelos seus ensinamentos.
Só
examinando com atenção os numerosos elementos que deram origem à crise actual é possível
empreender uma diagnose clara das suas causas e encontrar remédios eficazes. Certamente,
entre os factores que para ela contribuíram podemos enumerar: procedimentos inadequados
para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente
formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados;
uma tendência na sociedade a favorecer o clero e outras figuras com autoridade e uma
preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que levaram
como resultado à malograda aplicação das penas canónicas em vigor e à falta da tutela
da dignidade de cada pessoa. É preciso agir com urgência para enfrentar estes factores,
que tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias
e obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de perseguição
não tinham chegado.
5. Em diversas ocasiões desde a minha eleição para a Sé
de Pedro, encontrei vítimas de abusos sexuais, assim como estou disponível a fazê-lo
no futuro. Detive-me com elas, ouvi as suas vicissitudes, tomei nota do seu sofrimento,
rezei com e por elas. Precedentemente no meu pontificado, na preocupação por enfrentar
este tema, pedi aos Bispos da Irlanda, por ocasião da visita ad limina de 2006, que
«estabelecessem a verdade de quanto aconteceu no passado, tomassem todas as medidas
adequadas para evitar que se repita no futuro, garantissem que os princípios de justiça
sejam plenamente respeitados e, sobretudo, curassem as vítimas e quantos são atingidos
por estes crimes abnormes» (Discurso aos Bispos da Irlanda, 28 de Outubro de 2006).
Com
esta Carta, pretendo exortar todos vós, como povo de Deus na Irlanda, a reflectir
sobre as feridas infligidas ao corpo de Cristo, sobre os remédios, por vezes dolorosos,
necessários para as atar e curar, e sobre a necessidade de unidade, de caridade e
de ajuda recíproca no longo processo de restabelecimento e de renovação eclesial.
Dirijo-me agora a vós com palavras que me vêm do coração, e desejo falar a cada um
de vós individualmente e a todos como irmãos e irmãs no Senhor.
6. Às vítimas
de abuso e às suas famílias
Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo
desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança
e violada a vossa dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente
corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós
sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de evitar
os vossos sofrimentos. É comprensível que vos seja difícil perdoar ou reconciliar-vos
com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos sentimos.
Ao mesmo tempo peço-vos que não percais a esperança. É na comunhão da Igreja que encontramos
a pessoa de Jesus Cristo, ele mesmo vítima de injustiça e de pecado. Como vós, ele
ainda tem as feridas do seu injusto padecer. Ele compreende a profundeza dos vossos
padecimentos e o persistir do seu efeito nas vossas vidas e nos relacionamentos com
os outros, incluídas as vossas relações com a Igreja. Sei que alguns de vós têm dificuldade
até de entrar numa igreja depois do que aconteceu. Contudo, as mesmas feridas de Cristo,
transformadas pelos seus sofrimentos redentores, são os instrumentos graças aos quais
o poder do mal é infrangido e nós renascemos para a vida e para a esperança. Creio
firmemente no poder restabelecedor do seu amor sacrifical – também nas situações mais
obscuras e sem esperança – que traz a libertação e a promessa de um novo início. Dirigindo-me
a vós como pastor, preocupado pelo bem de todos os filhos de Deus, peço-vos com humildade
que reflictais sobre quanto vos disse. Rezo a fim de que, aproximando-vos de Cristo
e participando na vida da sua Igreja – uma Igreja purificada pela penitência e renovada
na caridade pastoral – possais redescobrir o amor infinito de Cristo por todos vós.
Tenho confiança em que deste modo sereis capazes de encontrar reconciliação, profunda
cura interior e paz.
7. Aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens
Traístes
a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis
responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos.
Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos
irmãos. Quantos de vós sois sacerdotes violastes a santidade do sacramento da Ordem
Sagrada, no qual Cristo se torna presente em nós e nas nossas acções. Juntamente com
o enorme dano causado às vítimas, foi perpetrado um grande dano à Igreja e à percepção
pública do sacerdócio e da vida religiosa.
Exorto-vos a examinar a vossa consciência,
a assumir a vossa responsabilidade dos pecados que cometestes e a expressar com humildade
o vosso pesar. O arrependimento sincero abre a porta ao perdão de Deus e à graça do
verdadeiro emendamento. Oferecendo orações e penitências por quantos ofendestes, deveis
procurar reparar pessoalmente as vossas acções. O sacrifício redentor de Cristo tem
o poder de perdoar até o pecado mais grave e de obter o bem até do mais terrível dos
males. Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das nossas acções
sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa, submetei-vos às exigências
da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus.
8. Aos pais
Ficastes
profundamente transtornados ao tomar conhecimento das coisas terríveis que tiveram
lugar naquele que deveria ter sido o ambiente mais seguro para todos. No mundo de
hoje não é fácil construir um lar doméstico e educar os filhos. Eles merecem crescer
num ambiente seguro, amados e queridos, com um forte sentido da sua identidade e do
seu valor. Têm direito a ser educados nos valores morais autênticos, radicados na
dignidade da pessoa humana, a serem inspirados pela verdade da nossa fé católica e
a aprender modos de comportamento e de acção que os levem a uma sadia estima de si
e à felicidade duradoura. Esta tarefa nobre e exigente está confiada em primeiro lugar
a vós, seus pais. Exorto-vos a fazer a vossa parte para garantir a melhor cura possível
dos jovens, quer em casa quer na sociedade em geral, enquanto que a Igreja, por seu
lado, continua a pôr em prática as medidas adoptadas nos últimos anos para tutelar
os jovens nos ambients paroquiais e educativos. Enquanto dais continuidade às vossas
importantes responsabilidades, certifico-vos de que estou próximo de vós e que vos
dou o apoio da minha oração.
9. Aos meninos e aos jovens da Irlanda
Desejo
oferecer-vos uma particular palavra de encorajamento. A vossa experiência de Igreja
é muito diversa da que fizeram os vossos pais e avós. O mundo mudou muito desde quando
eles tinham a vossa idade. Não obstante, todos, em cada geração, estão chamados a
percorrer o mesmo caminho da vida, sejam quais forem as circunstâncias. Todos estamos
escandalizados com os pecados e as falências de alguns membros da Igreja, sobretudo
de quantos foram escolhidos de modo especial para guiar e servir os jovens. Mas é
na Igreja que encontrareis Jesus Cristo que é o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb
13, 8). Ele ama-vos e ofereceu-se a si próprio na Cruz por vós. Procurai uma relação
pessoal com ele na comunhão da sua Igreja, porque ele nunca trairá a vossa confiança!
Só ele pode satisfazer as vossas expectativas mais profundas e conferir às vossas
vidas o seu significado mais pleno orientando-as para o serviço ao próximo. Mantende
o olhar fixo em Jesus e na sua bondade e protegei no vosso coração a chama da fé.
Juntamente com os vossos irmãos católicos na Irlanda olho para vós a fim de que sejais
discípulos fiéis do nosso Deus e contribuais com o vosso entusiasmo e com o vosso
idealismo tão necessários para a reconstrução e para o renovamento da nossa amada
Igreja.
10. Aos sacerdotes e aos religiosos da Irlanda
Todos nós estamos
a sofrer como consequência dos pecados dos nossos irmãos que traíram uma ordem sagrada
ou não enfrentaram de modo justo e responsável as acusações de abuso. Perante o ultraje
e a indignação que isto causou, não só entre os leigos mas também entre vós e as vossas
comunidades religiosas, muitos de vós sentis-vos pessoalmente desanimados e também
abandonados. Além disso, estou consciente de que aos olhos de alguns sois culpados
por associação, e considerados como que de certo modo responsáveis pelos delitos de
outros. Neste tempo de sofrimento, desejo reconhecer-vos a dedicação da vossa vida
de sacerdotes e de religiosos e dos vossos apostolados, e convido-vos a reafirmar
a vossa fé em Cristo, o vosso amor à sua Igreja e a vossa confiança na promessa de
redenção, de perdão e de renovação interior do Evangelho. Deste modo, demonstrareis
a todos que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rm 5, 20).
Sei que
muitos de vós estais desiludidos, transtornados e encolerizados pelo modo como estas
questões foram tratadas por alguns dos vossos superiores. Não obstante, é essencial
que colaboreis de perto com quantos têm a autoridade e que vos comprometais para fazer
com que as medidas adoptadas para responder à crise sejam verdadeiramente evangélicas,
justas e eficazes. Sobretudo, exorto-vos a tornar-vos cada vez mais claramente homens
e mulheres de oração, seguindo com coragem o caminho da conversão, da purificação
e da reconciliação. Deste modo, a Igreja na Irlanda haurirá nova vida e vitalidade
do vosso testemunho ao poder redentor do Senhor tornado visível na vossa vida.
11.
Aos meus irmãos bispos
Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores
falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canónico codificado
há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no
tratamento das acusações. Compreendo como era difícil lançar mão da extensão e da
complexidade do problema, obter informações fiáveis e tomar decisões justas à luz
de conselhos divergentes de peritos. Contudo, deve-se admitir que foram cometidos
graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente
a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que fizestes para remediar
os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além de pôr plenamente em
prática as normas do direito canónico ao enfrentar os casos de abuso de jovens, continuai
a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua competência. Claramente, os superiores
religiosos devem fazer o mesmo. Também eles participaram em recentes encontros aqui
em Roma destinados a estabelecer uma abordagem clara e coerente destas questões. É
obrigatório que as normas da Igreja na Irlanda para a tutela dos jovens sejam constantemente
revistas e actualizadas e que sejam aplicadas de modo total e imparcial em conformidade
com o direito canónico.
Só uma acção decidida levada em frente com total honestidade
e transparência poderá restabelecer o respeito e a benquerença dos Irlandeses em relação
à Igreja à qual consagrámos a nossa vida. Isto deve brotar, antes de tudo, do exame
de vós próprios, da purificação interior e da renovação espiritual. O povo da Irlanda
espera justamente que sejais homens de Deus, que sejais santos, que vivais com simplicidade,
que procureis todos os dias a conversão pessoal. Para ele, segundo a expressão de
Santo Agostinho, sois bispos; contudo estais chamados a ser com eles seguidores de
Cristo (cf. Discurso 340, 1). Exorto-vos portanto a renovar o vosso sentido de responsabilidade
diante de Deus, a crescer em solidariedade com o vosso povo e a aprofundar a vossa
solicitude pastoral por todos os membros da vossa grei. Em particular, sede sensíveis
à vida espiritual e moral de cada um dos vossos sacerdotes. Sede um exemplo com as
vossas próprias vidas, estai-lhes próximos, ouvi as suas preocupações, oferecei-lhes
encorajamento neste tempo de dificuldades e alimentai a chama do seu amor a Cristo
e o seu compromisso no serviço dos seus irmãos e irmãs.
Também os leigos devem
ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja. Fazei com que sejam formados
de modo que possam dizer a razão, de maneira articulada e convincente, do Evangelho
na sociedade moderna (cf. 1 Pd 3, 15), e cooperem mais plenamente na vida e na missão
da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis
da verdade redentora de Cristo.
12. A todos os fiéis da Irlanda
A experiência
que um jovem faz da Igreja deveria dar sempre fruto num encontro pessoal e vivificante
com Jesus Cristo numa comunidade que ama e que oferece alimento. Neste ambiente, os
jovens devem ser encorajados a crescer até à sua plena estatura humana e espiritual,
a aspirar por ideais nobres de santidade, de caridade e de verdade e a inspirar-se
nas riquezas de uma grande tradição religiosa e cultural. Na nossa sociedade cada
vez mais secularizada, na qual também nós critãos muitas vezes temos dificuldade em
falar da dimensão transcendente da nossa existência, precisamos de encontrar novos
caminhos para transmitir aos jovens a beleza e a riqueza da amizade com Jesus Cristo
na comunhão da sua Igreja. Ao enfrentar a presente crise, as medidas para se ocupar
de modo justo de cada um dos crimes são essenciais, mas sozinhas não são suficientes:
há necessidade de uma nova visão para inspirar a geração actual e as futuras a fazer
tesouro do dom da nossa fé comum. Caminhando pela via indicada pelo Evangelho, observando
os mandamentos e conformando a nossa vida de maneira cada vez mais próxima com a pessoa
de Jesus Cristo, fareis a experiência da renovação profunda da qual hoje há uma urgente
necessidade. Convido-vos a todos a perseverar neste caminho.
13. Amados irmãos
e irmãs em Cristo, é com profunda preocupação por todos vós neste tempo de sofrimento,
no qual a fragilidade da condição humana foi tão claramente revelada, que desejei
oferecer-vos estas palavras de encorajamento e de apoio. Espero que as acolhais como
um sinal da minha proximidade espiritual e da minha confiança na vossa capacidade
de responder aos desafios do momento actual tirando renovada inspiração e força das
nobres tradições da Irlanda de fidelidade ao Evangelho, de perseverança na fé e de
firmeza na consecução da santidade. Juntamente com todos vós, rezo com insistência
para que, com a graça de Deus, as feridas que atingiram muitas pessoas e famílias
possam ser curadas e que a Igreja na Irlanda possa conhecer uma época de renascimento
e de renovação espiritual.
14. Desejo propor-vos algumas iniciativas concretas
para enfrentar a situação. No final do meu encontro com os Bispos da Irlanda, pedi
que a Quaresma deste ano fosse considerada como tempo de oração para uma efusão da
misericórdia de Deus e dos dons de santidade e de força do Espírito Santo sobre a
Igreja no vosso país. Agora convido todos vós a dedicar as vossas penitências da sexta-feira,
durante todo o ano, de agora até à Páscoa de 2011, por esta finalidade. Peço-vos que
ofereçais o vosso jejum, a vossa oração, a vossa leitura da Sagrada Escritura e as
vossas obras de misericórdia para obter a graça da cura e da renovação para a Igreja
na Irlanda. Encorajo-vos a redescobrir o sacramento da Reconciliação e a valer-vos
com mais frequência da força transformadora da sua graça.
Deve ser dedicada
também particular atenção à adoração eucarística, e em cada diocese deverão haver
igrejas ou capelas reservadas especificamente para esta finalidade. Peço que as paróquias,
os seminários, as casas religiosas e os mosteiros organizem tempos para a adoração
eucarística, de modo que todos tenham a possibilidade de participar deles. Com oração
fervorosa diante da presença real do Senhor, podeis fazer a reparação pelos pecados
de abuso que causaram tantos danos, e ao mesmo tempo implorar a graça de uma renovada
força e de um sentido da missão mais profundo por parte de todos os bispos, sacerdotes,
religiosos e fiéis. Tenho esperança em que este programa levará a um renascimento
da Igreja na Irlanda na plenitude da própria verdade de Deus, porque é a verdade que
nos torna livres (cf. Jo 8, 32).
Além disso, depois de me ter consultado e
rezado sobre a questão, tenciono anunciar uma Visita Apostólica a algumas dioceses
da Irlanda, assim como a seminários e congregações religiosas. A Visita propõe-se
ajudar a Igreja local no seu caminho de renovação e será estabelecida em cooperação
com as repartições competentes da Cúria Romana e com a Conferência Episcopal Irlandesa.
Os pormenores serão anunciados no devido momento.
Além disso proponho que se
realize uma Missão a nível nacional para todos os bispos, sacerdotes e religiosos.
Alimento a esperança de que, haurindo da competência de peritos pregadores e organizadores
de retiros quer da Irlanda como de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares,
os ritos litúrgicos da ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios,
alcanceis um apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir
as raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água
viva que ele vos oferece através da sua Igreja.
Neste Ano dedicado aos Sacerdotes,
recomendo-vos de modo muito particular a figura de São João Maria Vianney, que teve
uma compreensão tão rica do mistério do sacerdócio. «O sacerdote, escreveu, possui
a chave dos tesouros do céu: é ele quem abre a porta, é ele o dispensador do bom Deus,
o administrador dos seus bens». O cura d’Ars compreendeu bem como é grandemente abençoada
uma comunidade quando é servida por um sacerdote bom e santo. «Um bom pastor, um pastor
segundo o coração de Deus, é o tesouro maior que o bom Deus pode dar a uma paróquia
e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina». Por intercessão de São João
Maria Vianney possa o sacerdócio na Irlanda retomar vida e a inteira Igreja na Irlanda
crescer na estima do grande dom do ministério sacerdotal.
Aproveito esta ocasião
para agradecer desde já a quantos se comprometerem no empenho de organizar a Visita
Apostólica e a Missão, assim como os tantos homens e mulheres que em toda a Irlanda
já se comprometeram pela tutela dos jovens nos ambientes eclesiásticos. Desde quando
a gravidade e a extensão do problema dos abusos sexuais dos jovens em instituições
católicas começou a ser plenamente compreendido, a Igreja desempenhou uma grande quantidade
de trabalho em muitas partes do mundo, a fim de o enfrentar e remediar. Enquanto não
se deve poupar esforço algum para melhorar e actualizar procedimentos já existentes,
encoraja-me o facto de que as práticas de tutela em vigor, adoptadas pelas Igrejas
locais, são consideradas, nalgumas partes do mundo, um modelo que deve ser seguido
por outras instituições.
Desejo concluir esta Carta com uma especial Oração
pela Igreja na Irlanda, que vos envio com o cuidado que um pai tem pelos seus filhos
e com o afecto de um cristão como vós, escandalizado e ferido por quanto aconteceu
na nossa amada Igreja. Ao utilizardes esta oração nas vossas famílias, paróquias e
comunidades, que a Bem-Aventurada Virgem Maria vos proteja e vos guie pelo caminho
que conduz a uma união mais estreita com o seu Filho, crucificado e ressuscitado.
Com grande afecto e firme confiança nas promessas de Deus, concedo de coração a todos
vós a minha Bênção Apostólica em penhor de força e paz no Senhor.
Vaticano,
19 de Março de 2010, Solenidade de São José Benedictus PP. XVI
ORAÇÃO
PELA IGREJA NA IRLANDA Deus dos nossos pais, Renova-nos na fé que é para nós vida
e salvação na esperança que promete perdão e renovação interior, na caridade
que purifica e abre os nossos corações para te amar, e em ti, amar todos os nossos
irmãos e irmãs. Senhor Jesus Cristo possa a Igreja na Irlanda renovar o seu
milenário compromisso na formação dos nossos jovens no caminho da verdade, da
bondade, da santidade e do serviço generoso à sociedade. Espírito Santo, consolador,
advogado e guia, inspira uma nova primavera de santidade e de zelo apostólico para
a Igreja na Irlanda. Possa a nossa tristeza e as nossas lágrimas o nosso esforço
sincero por corrigir os erros do passado, e o nosso firme propósito de correcção, dar
abundantes frutos de graça para o aprofundamento da fé nas nossas famílias,
paróquias, escolas e associações, e para o progresso espiritual da sociedade irlandesa, e
para o crescimento da caridade, da justiça, da alegria e da paz, na inteira família
humana. A ti, Trindade, com plena confiança na amorosa protecção de Maria, Rainha
da Irlanda, nossa Mãe, e de São Patrício, de Santa Brígida e de todos os santos, recomendamos
a nós próprios, os nossos jovens, e as necessidades da Igreja na Irlanda. Amém.