Cidade do Vaticano, 19 mar (RV) - Era uma vez... Essa forma técnica, introdutória
no gênero literário de contar histórias, que remete ao passado glorioso e edificante
de famílias, grupos e instituições, tem caído em desuso. É lamentável e preocupante
porque a razão disso é a escassez da honradez assumida como o tesouro maior na conduta
de todo cidadão. O tempo vai passando e tornando distantes as referências daqueles
depositários de credibilidade, merecedores de confiança e dignos da condição assumida
por compromisso profissional, tarefa política e por razão cidadã. Esse quadro é preocupante.
Desacostuma a consciência dos indivíduos em relação à dignidade, a fidelidade à palavra
dada e a capacidade de não negociar a verdade e colocar acima de tudo o bem comum.
As nefastas consequências desses desdobramentos determinam a necessidade,
em se tratando especificamente do mundo da política, de configurar as fichas dos cidadãos
para distinguir quem é ficha limpa de quem é ficha suja. A honradez da cidadania,
se vivida e assumida como resultado de educação familiar recebida e de formação consolidada
nas instituições, dispensaria tal distinção. Quando o Projeto de Lei de Iniciativa
Popular, Ficha Limpa, adentra o Parlamento com mais de um milhão e meio de assinaturas,
pedindo a legislação da matéria, é a sociedade gritando, como denúncia, o esvaziamento
e a desqualificação comum das condutas. Nos tempos de antanho, embora existissem os
que agiam e viviam na contramão dessa honradez, ainda não se exigiam leis para colocar
esse divisor entre cidadãos ficha limpa e suja, pretendentes ao exercício de cargos
públicos e de funções representativas do povo.
É grave a desconsideração por
essa honradez. É tão grave que o imperativo de legislar o assunto não deixa de ter
quem o considere inconstitucional, e não consegue ver a premência de balizamentos
que defendam o povo no seu direito de ter governantes honestos e probos. Assim, não
se reconhece a urgência de introduzir normativas com força educativa para recriar,
na consciência de cada um, o fluxo inteligente que mostra a inadiável necessidade
de mudanças na própria conduta. Do contrário, a política se tornará fonte permanente
de crise desestabilizadora, objeto de insatisfação e descrença geral. A credibilidade
na política é insubstituível, e a conduta cidadã, isto é, ficha limpa, é seu sustentáculo.
O apoio ao Projeto Ficha Limpa é comprovação, em se considerando os apoiadores,
especialmente no Parlamento, do desejo de uma intervenção imediata para não deixar
que a política seja entendida, menos ainda vivida, como coisa suja. A sujeira da política
é a fonte responsável por esta crise sistêmica que se abate sobre os destinos da sociedade
contemporânea. A crise e suas consequências são tão corrosivas e sérias que urgem
a coragem de uma apurada reforma política. A Igreja Católica - sempre iluminada pelo
Evangelho, cujo núcleo central é a conversão, com intervenções radicais na mudança
da própria conduta por esforço pessoal e por graça de Deus - torna-se porta-voz na
sociedade brasileira da necessidade de se proceder uma reforma política profunda.
Não é tão fácil assumir esse caminho revolucionário porque os interesses partidários
são muitos, são condutas comprometidas emoldurando procedimentos políticos e, particularmente,
a ganância por dinheiro e vantagens outras. A coragem de encaminhar a aprovação da
Lei de Iniciativa Popular, Ficha Limpa, se torna agora, neste contexto, um gesto político
corajoso e audaz da maior importância. Uma expectativa que é direito de todos os eleitores,
que voltam o olhar para o comportamento daqueles que foram por eles eleitos e que,
agora, retornam ao cenário para sufragar seus nomes.
A reforma política se
torna exigente porque deve tocar o Estado na sua estrutura organizacional e na concepção
dos seus funcionamentos. Mas, de modo especial, a reforma inclui o capítulo central
das mudanças que dizem respeito à conduta dos cidadãos que colocam seus nomes nas
listas de candidaturas. A nebulosidade das intenções, as confusões nos entendimentos
políticos de tantos e as razões advogadas pelos que se consideram os iluminados e
salvadores da pátria demonstram mesmo que é hora de avaliar suas fichas. Esses e outros
procedimentos reformatórios são indicações e sinal de esperança quanto à urgência
de se entender que a comunidade política é constituída para estar a serviço da sociedade
da qual deriva. Essa é a honradez, a joia maior que todos os cidadãos precisam ter
e venerar com amor.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo Metropolitano
de Belo Horizonte