Mensagem do Papa para a Quaresma de 2010: “A justiça de Deus está manifestada mediante
a fé em Jesus Cristo”
(4/2/2010) A injustiça, fruto do mal , não tem raízes exclusivamente externas; tem
origem no coração do homem, onde se encontram os germes de uma misteriosa conivência
com o mal. É o que afirma Bento XVI na sua mensagem para a Quaresma de 2010, apresentada
na Sala de Imprensa da Santa Sé e dedicado ao tema da justiça na sua acepção cristã. Este
o texto integral da mensagem: Queridos irmãos e irmãs,
todos
os anos, por ocasião da Quaresma, a Igreja convida-nos a uma revisão sincera da nossa
vida á luz dos ensinamentos evangélicos . Este ano desejaria propor-vos algumas reflexões
sobre o tema vasto da justiça, partindo da afirmação Paulina: A justiça de Deus está
manifestada mediante a fé em Jesus Cristo (cfr Rom 3,21 – 22 ).
Justiça:
“dare cuique suum” Detenho-me em primeiro lugar sobre o significado da
palavra “justiça” que na linguagem comum implica “dar a cada um o que é seu – dare
cuique suum”, segundo a conhecida expressão de Ulpiano, jurista romana do século III.
Porém, na realidade, tal definição clássica não precisa em que é que consiste aquele
“suo” que se deve assegurar a cada um. Aquilo de que o homem mais precisa não lhe
pode ser garantido por lei. Para gozar de uma existência em plenitude, precisa de
algo mais intimo que lhe pode ser concedido somente gratuitamente: poderíamos dizer
que o homem vive daquele amor que só Deus lhe pode comunicar, tendo-o criado á sua
imagem e semelhança. São certamente úteis e necessários os bens materiais – no fim
de contas o próprio Jesus se preocupou com a cura dos doentes, em matar a fome das
multidões que o seguiam e certamente condena a indiferença que também hoje condena
centenas de milhões de seres humanos á morte por falta de alimentos, de água e de
medicamentos - , mas a justiça distributiva não restitui ao ser humano todo o “suo”
que lhe é devido. Como e mais do que o pão ele de facto precisa de Deus. Nora Santo
Agostinho: se “ a justiça é a virtude que distribui a cada um o que é seu…não é justiça
do homem aquela que subtrai o homem ao verdadeiro Deus” (De civitate Dei, XIX, 21).
De
onde vem a injustiça? O evangelista Marcos refere as seguintes palavras
de Jesus, que se inserem no debate de então acerca do que é puro e impuro: “Nada
há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem,
isso é que o torna impuro. Porque é do interior do coração dos homens, que saem os
maus pensamentos” (Mc 7,14-15.20-21). Para além da questão imediata relativo ao alimento,
podemos entrever nas reacções dos fariseus uma tentação permanente do homem: individuar
a origem do mal numa causa exterior. Muitas das ideologias modernas, a bem ver, têm
este pressuposto: visto que a injustiça vem “de fora”, para que reine a justiça é
suficiente remover as causas externas que impedem a sua actuação: Esta maneira de
pensar - admoesta Jesus – é ingénua e míope. A injustiça, fruto do mal , não tem
raízes exclusivamente externas; tem origem no coração do homem, onde se encontram
os germes de uma misteriosa conivência com o mal. Reconhece-o com amargura o Salmista:”Eis
que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-se no pecado” (Sl. 51,7). Sim, o homem
torna-se frágil por um impulso profundo, que o mortifica na capacidade de entrar em
comunhão com o outro. Aberto por natureza ao fluxo livre da partilha, adverte dentro
de si uma força de gravidade estranha que o leva a dobrar-se sobre si mesmo, a afirmar-se
acima e contra os outros: é o egoísmo, consequência do pecado original. Adão e Eva,
seduzidos pela mentira de Satanás, pegando no fruto misterioso contra a vontade divina,
substituíram á lógica de confiar no Amor aquela da suspeita e da competição ; á lógica
do receber, da espera confiante do Outro, aquela ansiosa do agarrar, do fazer sozinho
(cfr Gn 3,1-6) experimentando como resultado uma sensação de inquietação e de incerteza. Como
pode o homem libertar-se deste impulso egoísta e abrir-se ao amor?
Justiça
e Sedaqah No coração da sabedoria de Israel encontramos um laço profundo
entre fé em Deus que “levanta do pó o indigente (Sl. 113,7) e justiça em relação ao
próximo. A própria palavra com a qual em hebraico se indica a virtude da justiça,
sedaqah, exprime-o bem. De facto sedaqah significa, dum lado a aceitação
plena da vontade do Deus de Israel; do outro, equidade em relação ao próximo (cfr
Ex 29,12-17), de maneira especial ao pobre, ao estrangeiro, ao órfão e á viúva (
cfr Dt 10,18-19). Mas os dois significados estão ligados, porque o dar ao pobre, para
o israelita nada mais é senão a retribuição que se deve a Deus, que teve piedade da
miséria do seu povo. Não é por acaso que o dom das tábuas da Lei a Moisés, no monte
Sinai, se verifica depois da passagem do Mar Vermelho. Isto é, a escuta da Lei , pressupõe
a fé no Deus que foi o primeiro a ouvir o lamento do seu povo e desceu para o libertar
do poder do Egipto (cfr Ex s,8). Deus está atento ao grito do pobre e em resposta
pede para ser ouvido: pede justiça para o pobre ( cfr.Ecli 4,4-5.8-9), o estrangeiro
( cfr Ex 22,20), o escravo ( cfr Dt 15,12-18). Para entrar na justiça é portanto necessário
sair daquela ilusão de auto – suficiência , daquele estado profundo de fecho, que
á a própria origem da injustiça. Por outras palavras, é necessário um “êxodo” mais
profundo do que aquele que Deus efectuou com Moisés, uma libertação do coração, que
a palavra da Lei, sozinha, é impotente a realizar. Existe portanto para o homem esperança
de justiça?
Cristo, justiça de Deus O
anuncio cristão responde positivamente á sede de justiça do homem, como afirma o
apóstolo Paulo na Carta aos Romanos: “ Mas agora, é sem a lei que está manifestada
a justiça de Deus… mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os crentes. De facto
não há distinção, porque todos pecaram e estão privados da glória de Deus, sendo justificados
gratuitamente pela Sua graça, por meio da redenção que se realiza em Jesus Cristo,
que Deus apresentou como vitima de propiciação pelo Seu próprio sangue, mediante a
fé” (3,21-25) Qual é portanto a justiça de Cristo? É antes de mais a justiça
que vem da graça, onde não é o homem que repara, que cura si mesmo e os outros. O
facto de que a “expiação” se verifique no “sangue” de Jesus significa que não são
os sacrifícios do homem a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor
de Deus que se abre até ao extremo, até fazer passar em si “ a maldição” que toca
ao homem, para lhe transmitir em troca a “bênção” que toca a Deus (cfr Gal 3,13-14).
Mas isto levanta imediatamente uma objecção: Que justiça existe lá onde
o justo morre pelo culpado e o culpado recebe em troca a bênção que toca ao justo?
Desta maneira cada um não recebe o contrário do que é “seu”? Na realidade, aqui manifesta-se
a justiça divina, profundamente diferente da justiça humana. Deus pagou por nós no
seu Filho o preço do resgate, um preço verdadeiramente exorbitante. Perante a justiça
da Cruz o homem pode revoltar-se, porque ele põe em evidencia que o homem não é um
ser autárquico , mas precisa de um Outro para ser plenamente si mesmo. Converter-se
a Cristo, acreditar no Evangelho, no fundo significa precisamente isto: sair da ilusão
da auto suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência – indigência dos
outros e de Deus, exigência do seu perdão e da sua amizade. Compreende-se
então como a fé não é um facto natural, cómodo, obvio: é necessário humildade para
aceitar que se precisa que um Outro me liberte do “meu”, para me dar gratuitamente
o “seu”. Isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitencia e da Eucaristia.
Graças á acção de Cristo, nós podemos entrar na justiça “ maior”, que é aquela do
amor ( cfr Rom 13,8-10), a justiça de quem se sente em todo o caso sempre mais devedor
do que credor, porque recebeu mais do que aquilo que poderia esperar. Precisamente
fortalecido por esta experiencia, o cristão é levado a contribuir para a formação
de sociedades justas, onde todos recebem o necessário para viver segundo a própria
dignidade de homem e onde a justiça é vivificada pelo amor. Queridos irmãos
e irmãs, a Quaresma culmina no Triduo Pascal, no qual também este ano celebraremos
a justiça divina, que é plenitude de caridade, de dom, de salvação. Que este tempo
penitencial seja para cada cristão tempo de autentica conversão e de conhecimento
intenso do mistério de Cristo, que veio para realizar a justiça. Com estes sentimentos,
a todos concedo de coração, a Bênção Apostólica.