Cidade do Vaticano, 25 dez (RV) - Leia a seguir a homilia do Santo Padre na
missa da noite de Natal: Amados irmãos e irmãs, «Um Menino nasceu para nós,
um filho nos foi dado» (Is 9, 5). Aquilo que Isaías, olhando ao longe para o futuro,
diz a Israel como consolação nas suas angústias e obscuridade, o Anjo, de quem emana
uma nuvem de luz, anuncia-o aos pastores como presente: «Nasceu-vos hoje, um Salvador,
que é o Messias Senhor, na cidade de David,» (Lc 2, 11). O Senhor está presente. Desde
então, Deus é verdadeiramente um «Deus conosco». Já não é o Deus distante, que, através
da criação e por meio da consciência, se pode de algum modo intuir de longe. Ele entrou
no mundo. É o Vizinho. Disse-o Cristo ressuscitado aos seus, a nós: «Eis que eu estou
convosco todos os dias, até a consumação dos tempos» (Mt 28, 20). Nasceu para vós
o Salvador: aquilo que o Anjo anunciou aos pastores, Deus no-lo recorda agora por
meio do Evangelho e dos seus mensageiros. Trata-se de uma notícia que não pode deixar-nos
indiferentes. Se é verdadeira, mudou tudo. Se é verdadeira, diz respeito a mim também.
Então, como os pastores, devo dizer também eu: Levantemo-nos, quero ir a Belém e ver
a Palavra que aconteceu lá. Não é sem intuito que o Evangelho nos narra a história
dos pastores. Estes mostram-nos o modo justo como responder àquela mensagem que nos
é dirigida também a nós. Que nos dizem então estas primeiras testemunhas da encarnação
de Deus? A respeito dos pastores, diz-se em primeiro lugar que eram pessoas vigilantes
e que a mensagem pôde chegar até eles precisamente porque estavam acordados. Nós temos
de despertar, para que a mensagem chegue até nós. Devemos tornar-nos pessoas verdadeiramente
vigilantes. Que significa isto? A diferença entre um que sonha e outro que está acordado
consiste, antes de mais nada, no fato de aquele que sonha se encontrar num mundo particular.
Ele está, com o seu eu, fechado neste mundo do sonho que é apenas dele e não o relaciona
com os outros. Acordar significa sair desse mundo particular do eu e entrar na realidade
comum, na única verdade que a todos une. O conflito no mondo, a recíproca inconciliabilidade
derivam do fato de estarmos fechados em nossos próprios interesses e opiniões pessoais,
em nosso próprio e minúsculo mundo privado. O egoísmo, tanto do grupo como do indivíduo,
mantém-nos prisioneiros em nossos interesses e desejos, que contrastam com a verdade
e dividem-nos uns dos outros. Acordai: diz-nos o Evangelho. Vinde para fora, a fim
de entrar na grande verdade comum, na comunhão do único Deus. Acordar significa, portanto,
desenvolver a sensibilidade para com Deus, para com os sinais silenciosos pelos quais
Ele quer nos guiar, para os múltiplos indícios da sua presença. Há pessoas que se
dizem «religiosamente desprovidas de ouvido musical». A capacidade de perceber Deus
parece quase uma qualidade que é recusada por alguns. E, realmente, a nossa maneira
de pensar e agir, a mentalidade do mundo actual, a gama das nossas diversas experiências
parecem talhadas para reduzir a nossa sensibilidade a Deus, para nos tornar «desprovidos
de ouvido musical» a respeito d’Ele. E todavia em cada alma está presente de maneira
velada ou patente a expectativa de Deus, a capacidade de encontrá-Lo. A fim de obter
esta vigilância, este despertar para o essencial, queremos rezar, por nós mesmos e
pelos outros, por quantos parecem ser «desprovidos deste ouvido musical» e contudo
neles está vivo o desejo de que Deus Se manifeste. O grande teólogo Orígenes disse:
Se eu tivesse a graça de ver como viu Paulo, poderia agora (durante a Liturgia) contemplar
um falange imensa de Anjos (cf. In Lc 23, 9). De facto, na Liturgia sagrada, rodeiam-nos
os Anjos de Deus e os Santos. O próprio Senhor está presente no meio de nós. Senhor,
abri os olhos dos nossos corações, para nos tornarmos vigilantes e videntes e assim
podermos estender a vossa proximidade também aos outros! Voltemos ao Evangelho
de Natal. Aí se narra que os pastores, depois de ter ouvido a mensagem do Anjo, disseram
uns para os outros: «“Vamos até Belém” (…). Partiram então a toda a pressa» (Lc 2,
15s). «Apressaram-se»: diz, literalmente, o texto grego. O que lhes fora anunciado
era tão importante que deviam ir imediatamente. Com efeito, o que lhes fora dito ultrapassava
totalmente aquilo a que estavam habituados. Mudava o mundo. Nasceu o Salvador. O esperado
Filho de David veio ao mundo na sua cidade. Que podia haver de mais importante? Impelia-os
certamente a curiosidade, mas sobretudo o alvoroço pela realidade imensa que fora
comunicada precisamente a eles, os pequenos e homens aparentemente irrelevantes. Apressaram-se…
sem demora. Na nossa vida ordinária, as coisas não acontecem assim. A maioria dos
homens não considera prioritárias as coisas de Deus. Estas não nos premem de forma
imediata. E assim nós, na grande maioria, estamos prontos a adiá-las. Antes de tudo
faz-se aquilo que se apresenta como urgente aqui e agora. No elenco das prioridades,
Deus Se encontra frequentemente quase no último lugar. Isto – pensa-se – poder-se-á
realizar sempre. O Evangelho diz-nos: Deus tem a máxima prioridade. Se alguma coisa
na nossa vida merece a nossa pressa sem demora, isso só pode ser a causa de Deus.
Diz uma máxima da Regra de São Bento: «Nada antepor à obra de Deus (isto é, ao ofício
divino)». Para os monges, a Liturgia é a primeira prioridade; tudo o mais vem depois.
Mas, no seu núcleo, esta frase vale para todo o homem. Deus é importante, a realidade
absolutamente mais importante da nossa vida. É precisamente esta prioridade que nos
ensinam os pastores. Deles queremos aprender a não deixar-nos esmagar por todas as
coisas urgentes da vida de cada dia. Deles queremos aprender a liberdade interior
de colocar em segundo plano outras ocupações – por mais importantes que sejam – a
fim de nos encaminharmos para Deus, a fim de O deixarmos entrar na nossa vida e no
nosso tempo. O tempo empregue para Deus e, a partir d’Ele, para o próximo nunca é
tempo perdido. É o tempo em que vivemos de verdade, em que vivemos o ser próprio de
pessoas humanas. Alguns comentadores observam que foram os pastores, as almas simples,
os primeiros que buscaram a Jesus na manjedoura e puderam encontrar o Redentor do
mundo. Os sábios vindos do Oriente, os representantes daqueles que possuem classe
e nome chegaram muito mais tarde. E os comentadores acrescentam: O motivo é totalmente
óbvio. De fato, os pastores habitavam perto. Não tinham de fazer mais nada senão «atravessar»
(cf. Lc 2, 15), como se atravessa um breve espaço para ir ter com os vizinhos. Ao
contrário, os sábios habitavam longe. Tinham de percorrer um caminho longo e difícil
para chegar a Belém. E precisavam de guia e de orientação. Pois bem, hoje também existem
almas simples e humildes que habitam muito perto do Senhor. São, por assim dizer,
os seus vizinhos e podem facilmente ir ter com Ele. Mas a maior parte de nós, homens
modernos, vive longe de Jesus Cristo, d’Aquele que Se fez homem, de Deus que veio
para o nosso meio. Vivemos em filosofias, em negócios e ocupações que nos enchem totalmente
e a partir dos quais o caminho para a manjedoura é muito longo. De variados modos
e repetidamente, Deus tem de nos impelir e dar u'a mão para podermos sair do emaranhado
dos nossos pensamentos e ocupações e encontrar o caminho para Ele. Mas há um caminho
para todos. Para todos, o Senhor estabelece sinais pessoalmente adequados. Chama-nos
a todos, para que nos seja possível também dizer: Levantemo-nos, «atravessemos», vamos
a Belém, até junto d’Aquele Deus que veio ao nosso encontro. Sim, Deus Se dirigiu
para nós. Sozinhos, não poderíamos chegar até Ele. O caminho supera as nossas forças.
Mas Deus desceu. Vem ao nosso encontro. Percorreu a parte mais longa do caminho. Agora
pede-nos: Vinde e vede quanto vos amo. Vinde e vede que Eu estou aqui. Transeamus
usque Bethleem: diz a Bíblia latina. Atravessemos para o outro lado! Ultrapassemo-nos
a nós mesmos! Façamo-nos viandantes rumo a Deus dos mais variados modos: sentindo-nos
interiormente a caminho para Ele; mas também em caminhos muito concretos, como na
Liturgia da Igreja, no serviço do próximo onde Cristo me espera. Ouçamos uma vez
mais diretamente o Evangelho. Os pastores dizem uns aos outros o motivo por que se
põem a caminho: «Vamos ver o que aconteceu». Literalmente o texto grego diz: «Vejamos
esta Palavra, que lá aconteceu». Sim, aqui está a novidade desta noite: a Palavra
pode ser vista, porque Se fez carne. Aquele Deus de quem não se deve fazer qualquer
imagem, porque toda a imagem poderia apenas reduzi-Lo, antes desvirtuá-Lo, aquele
Deus tornou-Se, Ele mesmo, visível n’Aquele que é a sua verdadeira imagem, como diz
Paulo (cf. 2 Cor 4, 4; Col 1, 15). Na figura de Jesus Cristo, em todo o seu viver
e operar, no seu morrer e ressuscitar, podemos ver a Palavra de Deus e, consequentemente,
o próprio mistério do Deus vivo. Deus é assim. O Anjo dissera aos pastores: «Isto
vos servirá de sinal: achareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura»
(Lc 2, 12; cf. 16). O sinal de Deus, o sinal que é dado aos pastores e a nós não é
um milagre impressionante. O sinal de Deus é a sua humildade. O sinal de Deus é que
Ele Se faz pequeno; torna-Se menino; deixa-Se tocar e pede o nosso amor. Quanto desejaríamos
nós, homens, um sinal diverso, imponente, irrefutável do poder de Deus e da sua grandeza!
Mas o seu sinal convida-nos à fé e ao amor e assim nos dá esperança: assim é Deus.
Ele possui o poder e é a Bondade. Convida a tornarmo-nos semelhantes a Ele. Sim, tornamo-nos
semelhantes a Deus, se nos deixarmos plasmar por este sinal; se aprendermos, nós mesmos,
a humildade e deste modo a verdadeira grandeza; se renunciarmos à violência e usarmos
apenas as armas da verdade e do amor. Orígenes, na linha de uma palavra de João Batista,
viu expressa a essência do paganismo no símbolo das pedras: paganismo é falta de sensibilidade,
significa um coração de pedra, que é incapaz de amar e de perceber o amor de Deus.
Orígenes diz a respeito dos pagãos: «Desprovidos de sentimento e de razão, transformam-se
em pedras e madeira» (In Lc 22, 9). Mas Cristo quer nos dar um coração de carne. Quando
O vemos, ao Deus que Se tornou um menino, abre-se-nos o coração. Na Liturgia da Noite
Santa, Deus vem até nós como homem, para nos tornarmos verdadeiramente humanos. Escutemos
uma vez mais Orígenes: «Com efeito, de que te aproveitaria Cristo ter vindo uma vez
na carne, se Ele não chegasse até à tua alma? Oremos para que venha diariamente a
nós e possamos dizer: vivo, contudo já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive
em mim (Gal 2, 20)» (In Lc 22, 3). Sim, por isto queremos rezar nesta Noite Santa.
Senhor Jesus Cristo, Vós que nascestes em Belém, vinde a nós! Entrai em mim, na minha
alma. Transformai-me. Renovai-me. Fazei que eu e todos nós, de pedra e madeira que
somos, nos tornemos pessoas vivas, nas quais se torna presente o vosso amor e o mundo
é transformado.