ENTREVISTA: ELLACURÍA E COMPANHEIROS NOS ENSINAM COMO ENCARNAR O EVANGELHO
Cidade do Vaticano, 05 dez (RV) – "Inácio Ellacuría e os mártires de San Salvador."
Este é o título do livro apresentado ontem na Pontifícia Universidade Gregoriana,
em Roma, para recordar os 20 anos da morte dos jesuítas na Universidade de San Salvador.
Da
apresentação, participaram o autor do livro, Emanuele Maspoli, o Padre Joseph Joblin,
docente da Gregoriana, e o Pe. Gabriel Ignacio Rodríguez, assistente do Prepósito
da Companhia de Jesus para a América Latina Setentrional, que concedeu com exclusividade
uma entrevista ao Programa Brasileiro.
Por que é importante recordar esses
20 anos? Pe. Rodríguez:- Pelo testemunho que Ignácio Illacuria e seus
companheiros nos deram de sua experiência cristã e de seu compromisso com o povo salvadorenho,
que vivia naquele momento uma situação muito crítica de guerra e de injustiça cometidas
há décadas; e eles se comprometeram em ajudar esse povo e em buscar melhores condições
sociais. E neste empenho foram extraordinários, porque deram sua vida neste empenho.
Vale a pena recordar por este motivo, porque podem nos dar a todos uma luz para a
nossa ação e vivência cristã hoje.
Tratou-se de um evento que não envolveu
somente El Salvador e os jesuítas. Podemos dizer que há uma dimensão que vale para
toda a Igreja e para toda a América Latina? Pe. Rodríguez:- Creio que
sim, porque aquilo que fizeram neste lugar tão particular, tão concreto, neste país
tão pequeno, penso que tenha um valor universal e, por isso, seu testemunho é uma
contribuição a toda a Igreja, porque foram homens que se comprometeram em expressar,
em buscar a verdade da sociedade, em viver profundamente seu compromisso cristão,
em defender os humildes, em buscar uma sociedade mais fraterna. Esses são valores
próprios do Evangelho, que interessam a toda a Igreja e que o mundo de hoje globalizado
tem que continuar buscando; do contrário, será um mundo desigual, onde poucos desfrutam
dos bens da criação e muitos sofrem e sobrevivem em meio a uma deterioração imensa
da vida, e isso não revela a dignidade dos seres humanos. Por isso, tem um valor universal
para toda a Igreja e, sem dúvida, muito particular para toda a América Latina. Eu
creio que a América Latina tenha neles o símbolo de homens que amaram suas terras,
amaram esse país e tentaram valorizar a população humilde, fiel, a redescobrir seus
valores e creio que isso seja algo, como latino-americanos, temos que descobrir a
riqueza do nosso povo humilde e sensível, que tem muito a contribuir para a construção
dos nossos países e de uma humanidade muito mais fraterna.
Como a América
Latina mudou nesses 20 anos? Pe. Rodríguez:- Creio que esses 20 anos
trouxeram do ponto de vista econômico e social um avanço em alguns países. Porém,
a meu ver, todos os países latino-americanos continuam buscando seu desenvolvimento
econômico e social e sua inclusão no panorama mundial. Creio que países como Chile,
Brasil, tenham tido melhoras significativas em porcentagem de população que pode participar
nos bens da cultura e nas possibilidades que a sociedade oferece hoje, mas que ainda
tem, todavia, setores sociais por incluir. Creio que outros países também melhoraram,
com índices um pouco mais baixos, porém ainda temos países na América Latina nesses
20 anos com situações muito difíceis, no Haiti, especialmente na América Central,
particularmente Nicarágua e Honduras. Todavia creio que esses 20 anos não resolveram
claramente como será o futuro da América Latina, esse futuro não será construído em
justiça, em desenvolvimento e paz social se os países latino-americanos continuarem
um pouco divididos entre si, cada um pensando em si. Creio que hoje outras partes
do mundo nos dão exemplo de unidade, de trabalho comum, de esforços conjuntos para
obter o desenvolvimento e, nesse sentido, resta muito por fazer na América Latina.
Ainda temos grande parte da nossa população com índices de pobreza e miséria muito
altos.
Onde o senhor estava naquele dia, como recorda o dia do atentado? Pe.
Rodríguez:- Naquele dia, 16 de novembro de 1989, eu estava fazendo os Exercícios
Espirituais de 30 dias durante um período de formação que nós jesuítas temos, que
se chama Terceira Provação. Eu estava no Canadá, era uma época de um inverno muito
rigoroso, e eu estava na Segunda Semana dos Exercícios Espirituais, precisamente era
o dia em que fazíamos a meditação que nos Exercícios se chama Meditação do Reino,
era o dia 16 de novembro, às seis da tarde, e nos encontramos para celebrar a eucaristia
e, no início, o instrutor da Terceira Provação, um padre canadense que se chamava
Pe. Bernard Carrier, nos disse que chegaram notícias da América Central, de San Salvador,
de que os jesuítas da Universidade, da UCAN, tinham sido assassinados. Precisamente
em 16 de novembro nós jesuítas recordamos também os mártires do Paraguai, jesuítas
que no século XVII foram mortos, que deram sua vida testemunhando a fé cristã, num
processo de evangelização nos povos guaranis. E a coincidência teve um impacto muito
forte, estávamos fazendo a Meditação do Reino para celebrar a festa dos mártires paraguaios
e nos encontramos com mártires modernos. Digo mártires porque foram homens que deram
sua vida, buscando a paz e a justiça, buscando que a sociedade salvadorenha fosse
mais evangélica, e através dela, também a sociedade latino-americana e mundial fosse
mais evangélica, mais fraterna, justa. Digo que são mártires porque derramaram seu
sangue movidos por esse compromisso de fé.
Que lição, como Igreja, podemos
tirar desse fato? Pe. Rodríguez:- É uma bela pergunta, porque é a pergunta
que testemunha a nossa fé cristã em um mundo como o de hoje, ou seja, esses homens
acolheram a mensagem do Evangelho, a mensagem do Senhor. E entenderam que o Evangelho
oferece ao mundo uma palavra, convidando-nos ao amor, ao amor que não é somente uma
relação sentimental, emocional entre duas pessoas ou entre um pequeno grupo de pessoas,
ou que não é meramente uma experiência a ser vivida de maneira comunitária. Claro
que é isso, mas é também um convite à sociedade. O Magistério da Igreja nos fala,
o papa nos fala da civilização do amor. E é nesse sentido, e eu creio que eles tenham
entendido, que esses jesuítas nos deram o testemunho de atender a esse chamado de
construir uma sociedade, de construir estruturas sociais que possam expressar o respeito
pela dignidade humana, o valor do ser humano, de cada ser humano, como cada pessoa
tem um rosto, um nome, uma história, uma vocação, um chamado de Deus. Portanto, a
proteção de cada vida humana é a tarefa do cristão e quando você encontra esses homens,
esses jesuítas, movidos pela fé, movidos pelo amor a Jesus, movidos pelo desejo de
comunicar o Evangelho e que tentam encarnar esse Evangelho na construção de um respeito
da dignidade humana em uma sociedade, é um testemunho que hoje não podemos esquecer,
porque os problemas, as dificuldades e as relações humanas e no concerne aos temas
da justiça, da fraternidade social, seguem vigentes. A última encíclica do Santo Padre,
Caritas in veritate, evidencia que os seres humanos ainda não vivem na fraternidade
e na justiça. (BF)