Renovar a fé no mistério da Igreja: "a Igreja é de Jesus Cristo, não é propriedade
nossa": card. Georges Cottier (artigo da revista "30 Giorni")
Na primavera passada, os “mal-entendidos que surgiram à volta de alguns gestos
e palavras do Papa”, a carta que este enviou aos bispos a propósito do levantar da
excomunhão aos bispos lefebvrianos e “as polémicas referentes a casos que de algum
modo implicavam a Igreja, como o dolorosíssimo episódio do Brasil” (da criança abusada
que abortou e a posição do respectivo arcebispo) sugeriram ao cardeal Georges Cottier,
dominicano, 87 anos, teólogo emérito da Casa Pontifícia, uma interessante reflexão
pessoal, publicada na revista católica italiana “30 Giorni”. Dada a actualidade das
suas considerações, apresentamos aqui hoje amplos extractos.
“Uma
primeira impressão é que, mesmo entre os cristãos, há muita gente que já não sabe
o que é a Igreja. É um paradoxo: o mistério da Igreja como objecto de fé foi o tema
central do Concílio Vaticano II, e agora verificou-se uma crise precisamente sobre
este ponto. É um paradoxo que nos convida a reflectir sobre o modo como Deus conduz
a Sua Igreja. "A coisa mais elementar a reconhecer é precisamente isto: que a
Igreja é Sua, é d’Ele. Ecclesiam suam – assim se intitulava a primeira encíclica de
Paulo VI. No Credo, confessamos a Igreja como mistério de fé. Quer dizer que estamos
no âmbito da graça. Quer dizer que a Igreja é dom de Deus e não criação do homem.
Quer dizer que a Igreja não é propriedade nossa, mas é a Igreja de Jesus Cristo. É
Ele que a conduz e a faz viver com a palavra, com a graça sacramental e com aquela
linfa que circula e que se chama caridade. Estamos na Igreja enquanto recebemos o
dom de Cristo. É Ele que nos irmana. (…)
"Se temos a pretensão de sermos nós
a guiar e a construir a Igreja, fazemos coisas despropositadas ou inúteis. Fico sempre
impressionado com a quantidade de projectos promovidos pelos cristãos que frequentemente
dão pouquíssimos frutos. Quando a Igreja quis indicar um patrono para a obra das missões,
não escolheu um grande evangelizador. Escolheu Teresinha do Menino Jesus, que escrevia
de si: “Quando actuo com caridade, é Jesus que age em mim”. "É este o mistério
da Igreja, que aflora também no modo em que tem lugar o testemunho de Jesus ressuscitado.
Quem experimenta a libertação interior dada pelo Espírito Santo difunde gratuitamente
nos outros este dom. O testemunho não é resultado de uma nossa capacidade ou aplicação.
É por isso que o testemunho mais límpido e comovente é o que as testemunhas dão sem
disso se aperceberem. Ao passo que quem insiste demasiado sobre a sua actividade de
testemunha, como se fosse uma função a desempenhar, muitas vezes aquilo que tem em
vista é fabricar para si mesmo uma personagem.
"Na Carta aos Romanos, e também
na primeira aos Coríntios, São Paulo recorda-nos que o anúncio evangélico não assenta
na sapiência de um discurso. Ao mesmo tempo, mostra-se atento às condições concretas
dos destinatários a que se dirige. (…) Este discernimento, esta atenção respeitosa
das situações em jogo é conatural ao testemunho cristão. Evitemos de equivocar o convite
do Apóstolo a anunciar a Palavra “a tempo e fora de tempo”, como fazem algumas seitas
protestantes, que em vez de procurar intervir com sentido da oportunidade, se comprazem
em agir com provocações radicais, criando assim problemas a todos, sobretudo nos países
de maioria muçulmana, ou nas terras de missão. "A novidade do anúncio cristão,
há que a oferecer de maneira humilde e respeitadora em relação aos destinatários do
mesmo. Não é uma questão de oportunismo táctico - estratégico. É uma consequência
do facto de que a verdade que os cristãos anunciam é um dom, não é algo de sua propriedade.
Nunca mais hei-de esquecer as observações de uma senhora de um país do Leste europeu
que, chegada a Roma depois do fim do comunismo, tinha encontrado a fé. Era uma pessoa
culta. Para a ajudar, sugeri-lhe que seguisse cursos de Teologia, a um certo nível.
Um dia, disse-me que alguns dos professores lhe faziam recordar os do ambiente comunista
em que tinha vivido: gente que fazia belos discursos sobre coisas em que evidentemente
já não acreditava. "O cardeal Charles Journet, meu pai e mestre, repetia sempre
que a fronteira da Igreja passa pelos nossos corações. A pretensão de demonstrar com
os nossos argumentos a verdade da fé, quando o coração não é habitado pela caridade,
pode suscitar escândalo e objecções. Sente-se uma frieza, um alheamento do coração
que acaba por afastar os outros mais do que os nossos pecados e infidelidades." ^^^^^^^^^^ "Nestes
meses falou-se da solidão do Papa, da incapacidade dos seus colaboradores, dos limites
que tinham vindo ao de cima na actividade da Sé apostólica. Também sobre estes temas,
o debate pareceu condicionado por generalizados equívocos de fundo. "Um certo
“limite” é conatural à Igreja. Quando Jesus sobe ao Céu deixando os apóstolos guiados
por Pedro como suas testemunhas, Ele bem sabe que Pedro é um homem com todos os seus
limites, que de facto as páginas do Evangelho não tratam de esconder. Ao longo da
história os Papas não foram todos génios nem, muito menos, todos santos. Mas também
isto nos faz ver que a Igreja é obra de Deus. Que, na pequena barca, cheia de pecadores,
está o Senhor. É Ele que pode aplacar as tempestades e tranquilizar os que têm medo.
(…) Se a Igreja fosse obra dos homens que a guiam, desde há muito que teria acabado.
Aliás, a Igreja sempre se subtraiu à tentação de se considerar uma cidadela de puros
e santos. (…)
"Nos últimos tempos, muitos insistiram sobre uma alegada dificuldade
que o Papa teria em comunicar com clareza o sentido das suas decisões. Pessoalmente,
tive muitas vezes ocasião de experimentar a lucidez comunicativa de Joseph Ratzinger,
assim como a sua disponibilidade para escutar as razões dos outros. Todos têm tido
ocasião de ver que o Papa sabe muito bem fazer-se entender, por exemplo quando improvisa
falando aos jovens e aos padres, ou quando, num tom muito pessoal, escreveu aos bispos
a carta de 10 de Março. Por outro lado, há porventura quem exaspere os alarmes sobre
as divisões na Igreja. "Não tenhamos medo da diferença de opiniões, não a exorcizemos.
Mesmo na Cúria Romana, sobre muitas coisas, nem todos pensam da mesma maneira. Ninguém
pode ter como ideal um sistema totalitário onde há um que pensa por todos e os outros
se empenham em calar a boca. É sempre útil, e sinal de vitalidade, o confronto entre
os diversos modos de ver as coisas. Se não se reconhece isto, acaba-se por chegar
a subscrever declarações em apoio ou em discordância com o Papa, dando-se início ao
jogo de contrapor os “fidelíssimos” aos adversários. Como se na Igreja pudesse haver
partidos pró ou contra o Papa. "Nós não somos os “fans” do Papa. Ele é o sucessor
de Pedro, a divina Providência qui-lo assim como é. E nós estimamo-lo assim como é,
porque por detrás d’Ele vemos Jesus. É isto que quer dizer sermos católicos.”