2009-08-11 15:28:42

Renovar a fé no mistério da Igreja:
"a Igreja é de Jesus Cristo, não é propriedade nossa": card. Georges Cottier (artigo da revista "30 Giorni")


Na primavera passada, os “mal-entendidos que surgiram à volta de alguns gestos e palavras do Papa”, a carta que este enviou aos bispos a propósito do levantar da excomunhão aos bispos lefebvrianos e “as polémicas referentes a casos que de algum modo implicavam a Igreja, como o dolorosíssimo episódio do Brasil” (da criança abusada que abortou e a posição do respectivo arcebispo) sugeriram ao cardeal Georges Cottier, dominicano, 87 anos, teólogo emérito da Casa Pontifícia, uma interessante reflexão pessoal, publicada na revista católica italiana “30 Giorni”. Dada a actualidade das suas considerações, apresentamos aqui hoje amplos extractos. RealAudioMP3

“Uma primeira impressão é que, mesmo entre os cristãos, há muita gente que já não sabe o que é a Igreja. É um paradoxo: o mistério da Igreja como objecto de fé foi o tema central do Concílio Vaticano II, e agora verificou-se uma crise precisamente sobre este ponto. É um paradoxo que nos convida a reflectir sobre o modo como Deus conduz a Sua Igreja.
"A coisa mais elementar a reconhecer é precisamente isto: que a Igreja é Sua, é d’Ele. Ecclesiam suam – assim se intitulava a primeira encíclica de Paulo VI. No Credo, confessamos a Igreja como mistério de fé. Quer dizer que estamos no âmbito da graça. Quer dizer que a Igreja é dom de Deus e não criação do homem. Quer dizer que a Igreja não é propriedade nossa, mas é a Igreja de Jesus Cristo. É Ele que a conduz e a faz viver com a palavra, com a graça sacramental e com aquela linfa que circula e que se chama caridade. Estamos na Igreja enquanto recebemos o dom de Cristo. É Ele que nos irmana. (…)

"Se temos a pretensão de sermos nós a guiar e a construir a Igreja, fazemos coisas despropositadas ou inúteis. Fico sempre impressionado com a quantidade de projectos promovidos pelos cristãos que frequentemente dão pouquíssimos frutos. Quando a Igreja quis indicar um patrono para a obra das missões, não escolheu um grande evangelizador. Escolheu Teresinha do Menino Jesus, que escrevia de si: “Quando actuo com caridade, é Jesus que age em mim”.
"É este o mistério da Igreja, que aflora também no modo em que tem lugar o testemunho de Jesus ressuscitado. Quem experimenta a libertação interior dada pelo Espírito Santo difunde gratuitamente nos outros este dom. O testemunho não é resultado de uma nossa capacidade ou aplicação. É por isso que o testemunho mais límpido e comovente é o que as testemunhas dão sem disso se aperceberem. Ao passo que quem insiste demasiado sobre a sua actividade de testemunha, como se fosse uma função a desempenhar, muitas vezes aquilo que tem em vista é fabricar para si mesmo uma personagem.

"Na Carta aos Romanos, e também na primeira aos Coríntios, São Paulo recorda-nos que o anúncio evangélico não assenta na sapiência de um discurso. Ao mesmo tempo, mostra-se atento às condições concretas dos destinatários a que se dirige. (…) Este discernimento, esta atenção respeitosa das situações em jogo é conatural ao testemunho cristão. Evitemos de equivocar o convite do Apóstolo a anunciar a Palavra “a tempo e fora de tempo”, como fazem algumas seitas protestantes, que em vez de procurar intervir com sentido da oportunidade, se comprazem em agir com provocações radicais, criando assim problemas a todos, sobretudo nos países de maioria muçulmana, ou nas terras de missão.
"A novidade do anúncio cristão, há que a oferecer de maneira humilde e respeitadora em relação aos destinatários do mesmo. Não é uma questão de oportunismo táctico - estratégico. É uma consequência do facto de que a verdade que os cristãos anunciam é um dom, não é algo de sua propriedade. Nunca mais hei-de esquecer as observações de uma senhora de um país do Leste europeu que, chegada a Roma depois do fim do comunismo, tinha encontrado a fé. Era uma pessoa culta. Para a ajudar, sugeri-lhe que seguisse cursos de Teologia, a um certo nível. Um dia, disse-me que alguns dos professores lhe faziam recordar os do ambiente comunista em que tinha vivido: gente que fazia belos discursos sobre coisas em que evidentemente já não acreditava.
"O cardeal Charles Journet, meu pai e mestre, repetia sempre que a fronteira da Igreja passa pelos nossos corações. A pretensão de demonstrar com os nossos argumentos a verdade da fé, quando o coração não é habitado pela caridade, pode suscitar escândalo e objecções. Sente-se uma frieza, um alheamento do coração que acaba por afastar os outros mais do que os nossos pecados e infidelidades."
 
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"Nestes meses falou-se da solidão do Papa, da incapacidade dos seus colaboradores, dos limites que tinham vindo ao de cima na actividade da Sé apostólica. Também sobre estes temas, o debate pareceu condicionado por generalizados equívocos de fundo.
"Um certo “limite” é conatural à Igreja. Quando Jesus sobe ao Céu deixando os apóstolos guiados por Pedro como suas testemunhas, Ele bem sabe que Pedro é um homem com todos os seus limites, que de facto as páginas do Evangelho não tratam de esconder. Ao longo da história os Papas não foram todos génios nem, muito menos, todos santos. Mas também isto nos faz ver que a Igreja é obra de Deus. Que, na pequena barca, cheia de pecadores, está o Senhor. É Ele que pode aplacar as tempestades e tranquilizar os que têm medo. (…) Se a Igreja fosse obra dos homens que a guiam, desde há muito que teria acabado. Aliás, a Igreja sempre se subtraiu à tentação de se considerar uma cidadela de puros e santos. (…)

"Nos últimos tempos, muitos insistiram sobre uma alegada dificuldade que o Papa teria em comunicar com clareza o sentido das suas decisões. Pessoalmente, tive muitas vezes ocasião de experimentar a lucidez comunicativa de Joseph Ratzinger, assim como a sua disponibilidade para escutar as razões dos outros. Todos têm tido ocasião de ver que o Papa sabe muito bem fazer-se entender, por exemplo quando improvisa falando aos jovens e aos padres, ou quando, num tom muito pessoal, escreveu aos bispos a carta de 10 de Março. Por outro lado, há porventura quem exaspere os alarmes sobre as divisões na Igreja.
"Não tenhamos medo da diferença de opiniões, não a exorcizemos. Mesmo na Cúria Romana, sobre muitas coisas, nem todos pensam da mesma maneira. Ninguém pode ter como ideal um sistema totalitário onde há um que pensa por todos e os outros se empenham em calar a boca. É sempre útil, e sinal de vitalidade, o confronto entre os diversos modos de ver as coisas. Se não se reconhece isto, acaba-se por chegar a subscrever declarações em apoio ou em discordância com o Papa, dando-se início ao jogo de contrapor os “fidelíssimos” aos adversários. Como se na Igreja pudesse haver partidos pró ou contra o Papa.
"Nós não somos os “fans” do Papa. Ele é o sucessor de Pedro, a divina Providência qui-lo assim como é. E nós estimamo-lo assim como é, porque por detrás d’Ele vemos Jesus. É isto que quer dizer sermos católicos.”








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