PAIXÃO DO SENHOR: "SEM A FÉ EM DEUS O SOFRIMENTO SE TORNA IMENSAMENTE MAIS ABSURDO",
DIZ FREI CANTALAMESSA
Cidade do Vaticano, 10 abr (RV) - Hoje, Sexta-feira Santa, a Igreja celebra
a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador. Esta tarde, o Santo Padre presidiu,
na Basílica de São Pedro, ao rito da Paixão do Senhor, com a adoração da Santa Cruz.
O
rito da Paixão do Senhor consiste na proclamação da Palavra de Deus, a apresentação
e adoração da Cruz, e a comunhão dos fiéis. Durante a Liturgia da Palavra, é lida
a narração da Paixão segundo o Evangelho de São João.
Após a Liturgia da Palavra,
teve lugar a homilia da celebração, feita pelo pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero
Cantalamessa.
O frade capuchinho fez a sua homilia propondo algumas passagens
dos escritos de São Paulo sobre o mistério da morte de Cristo, que estamos celebrando.
Recordando o Ano paulino em andamento – no bimilenário do nascimento do Apóstolo dos
Gentios – Frei Cantalamessa afirmou que ninguém melhor que São Paulo pode ajudar-nos
a compreender o significado e alcance de tal mistério.
O religioso ressaltou
que "a morte de Cristo tem um alcance universal: 'O amor de Cristo nos compele, considerando
que, se um só morreu por todos, logo todos morreram' (2 Cor 5, 14). Sua morte deu
um sentido novo à morte de cada homem e mulher".
Aos olhos de Paulo, a cruz
assume uma dimensão cósmica. Frei Cantalamessa lembrou que "a antiga tradição desenvolverá
o tema da cruz como árvore cósmica que, com o braço vertical, une céu e terra e, com
o braço horizontal, reconcilia entre si os diversos povos do mundo".
Evento
cósmico e ao mesmo tempo personalíssimo, observou o pregador da Casa Pontifícia: "me
amou e se entregou por mim" (Gal 2, 20). Cada homem, escreve o Apóstolo, é um "daquele
por quem Cristo morreu" (Rom 14, 15).
"Paulo plantou a cruz no centro da Igreja
como mastro principal no centro do navio; tornou-a fundamento e centro de gravidade
de tudo. Fixou para sempre o quadro do anúncio cristão. Os evangelhos, escritos depois
dele, seguiram o esquema, fazendo do relato da paixão e morte de Cristo a base sobre
a qual tudo está orientado."
A finalidade do Ano paulino – observou o frade
capuchinho – não é tanto conhecer melhor o pensamento do Apóstolo, é mais, como recordou
em muitas ocasiões o Santo Padre, aprender de Paulo como responder aos desafios atuais
da fé. O pregador da Casa Pontifícia identificou num desses desafios, talvez o mais
aberto e mais conhecido até hoje, um slogan publicitário escrito nos meios de transporte
público de Londres e de outras cidades européias: "Deus provavelmente não existe.
Portanto deixe de se preocupar e aproveite a vida".
"O elemento de maior preocupação
desse slogan não é a premissa 'Deus não existe', mais a conclusão: 'Aproveite a vida!'
A mensagem subliminar é que a fé em Deus impede de desfrutar a vida, é inimiga da
alegria. Sem essa, existiria mais felicidade no mundo! Paulo nos ajuda a dar uma resposta
a este desafio, explicando a origem e o sentido de cada sofrimento, a partir do sofrimento
de Cristo."
Porque "era necessário que Cristo padecesse para entrar em sua
glória"? (Lc 24, 26). A necessidade não é de ordem natural, mas sobrenatural, observou
Frei Cantalamessa, acrescentando que nos países de antiga fé cristã se associa quase
sempre a idéia de sofrimento e de cruz à de sacrifício e expiação.
São Paulo
escreve que Deus predeterminou Cristo "a servir como instrumento de expiação" (Rm
3, 25), mas tal expiação não opera sobre Deus para aplacá-lo, mas sobre o pecado para
eliminá-lo. "Pode-se dizer que é Deus mesmo, não o homem, que expia o pecado... a
imagem é mais a da remoção de uma mancha corrosiva ou a neutralização de um vírus
letal que a de uma ira aplacada pela punição".
O pregador da Casa Pontifícia
evidenciou que Paulo leva a sério o pecado, não o banaliza: "O pecado é, para ele,
a causa principal da infelicidade do homem, isto é, a rejeição de Deus, não Deus!
Isso prende a criatura humana na 'mentira' e na 'injustiça' (Rm 1, 18 ss; 3, 23),
condena o próprio cosmo material à 'vaidade' e à 'corrupção' (Rm 8, 19 ss.) e é a
causa última também dos males sociais que afligem a humanidade".
Fazem-se análises
sem fim da crise econômica em ação no mundo e de suas causas, mas quem ousa meter
o machado na raiz e falar do pecado? – perguntou-se o religioso.
"O Apóstolo
define a avareza insaciável uma 'idolatria' (Col 3,5) e aponta na desenfreada ganância
de dinheiro 'a raiz de todos os males' (1 Tm 6, 10). Podemos dizer que está errado?"
– insistiu Frei Cantalamessa.
"Por que tantas famílias perderam tudo, massas
de operários que permanecem sem trabalho, se não pela sede insaciável de lucro por
parte de alguns? A elite financeira e econômica mundial se tornou uma locomotiva louca
que avançava em curso desenfreado, sem pensar no restante do trem que ficou parado
à distancia sobre os trilhos. Estávamos andando todos na 'contramão'."
O religioso
observou que o sofrimento permanece sendo, certamente, um mistério para todos, especialmente
o sofrimento dos inocentes, mas sem a fé em Deus ele se torna imensamente mais absurdo.
O
pregador da Casa Pontifícia concluiu afirmando que "a cruz de Cristo é motivo de esperança
para todos, e o Ano paulino, uma ocasião de graça também para aqueles que não acreditam,
mas buscam. Uma coisa fala a favor deles diante de Deus: o sofrimento! Como o restante
da humanidade, os ateus também sofrem na vida, e o sofrimento, uma vez que o Filho
de Deus tomou sobre si, tem um poder redentor quase sacramental. É um canal, escreve
João Paulo II na 'Salvifici doloris', através do qual a energia salvífica da cruz
de Cristo é oferecida à humanidade".
Frei Cantalamessa encerrou citando uma
comovente oração feita na liturgia desta Sexta-feira Santa, logo após o convite a
rezar "por aqueles que não acreditam em Deus":
"Deus onipotente e eterno, tu
colocaste no coração do homem uma profunda nostalgia de ti, e só quando te encontramos
vivemos a paz: faze que, superando cada obstáculo, reconheçamos os sinais da tua bondade
e, estimulados pelo testemunho da nossa vida, tenhamos a alegria de crer em ti, um
verdadeiro Deus e Pai de todos os homens. Através de Cristo, nosso Senhor."
Concluída
a homilia, a Liturgia da Paixão prosseguiu com a Oração universal e a adoração da
Santa Cruz e se encerrou com a santa Comunhão. (RL)