HOMILIA DE BENTO XVI NA MISSA CRISMAL DE QUINTA-FEIRA SANTA DE 2009
Amados irmãos e irmãs!
No Cenáculo, na noite anterior à sua paixão, o Senhor
rezou pelos discípulos reunidos ao seu redor, estendendo ao mesmo tempo o olhar para
a comunidade dos discípulos de todos os séculos, para "aqueles que vão acreditar em
Mim por meio da sua palavra" (Jo 17, 20). Na oração pelos discípulos de todos os tempos,
Ele viu-nos também a nós e rezou por nós. Ouçamos o que pede para os Doze e para nós
aqui reunidos: "Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me
enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo. Eu consagro-Me por eles, para que
também eles sejam consagrados na verdade" (Jo 17, 17s). O Senhor pede a nossa santificação,
a santificação na verdade. E envia-nos para continuarmos a sua própria missão. Mas
há, nesta oração, uma palavra que chama a nossa atenção; parece-nos pouco compreensível.
Jesus diz: "Eu consagro-Me por eles". Que significa? Porventura não é Jesus por natureza
"o Santo de Deus", como Pedro confessou na hora decisiva de Cafarnaum (cf. Jo 6, 69)?
Como pode agora consagrar-Se, isto é, santificar-Se a Si mesmo?
Para o compreendermos,
temos de esclarecer, sobretudo, o que querem dizer, na Bíblia, as palavras "santo"
e "consagrar/santificar". "Santo": com esta palavra, descreve-se em primeiro lugar
a natureza do próprio Deus, o seu modo de ser muito particular, divino, que é próprio
só d’Ele. Só Ele é o verdadeiro e autêntico Santo no sentido originário. Qualquer
outra santidade deriva d’Ele, é participação no seu modo de ser. Ele é a Luz puríssima,
a Verdade e o Bem sem mancha. Por isso, consagrar alguma coisa ou alguém significa
dar tal coisa ou pessoa em propriedade a Deus, tirá-la do âmbito daquilo que é nosso
e inseri-la na atmosfera d’Ele, de tal modo que deixe de pertencer às nossas coisas
para ser totalmente de Deus. Consagração é, pois, tirar do mundo e entregar ao Deus
vivo. Aquela coisa ou pessoa deixa de pertencer a nós ou a si mesma, mas é imersa
em Deus. Este ato de privar-se duma coisa para entregá-la a Deus, chamamo-lo também
sacrifício: já não será propriedade minha, mas d’Ele. No Antigo Testamento, a entrega
duma pessoa a Deus, isto é, a sua "santificação" coincide com a sua ordenação sacerdotal,
e assim se define também em que consiste o sacerdócio: é uma passagem de propriedade,
um ser tirado do mundo e dado a Deus. E, com isto ficam agora patentes as duas direções
que fazem parte do processo da santificação/consagração: sair dos contextos da vida
do mundo e "ser posto à parte" para Deus. Mas por isto mesmo não é uma segregação;
antes, ser entregue a Deus significa ser posto a representar os outros. O sacerdote
é subtraído às ligações mundanas e dado a Deus, e precisamente assim, a partir de
Deus, está disponível para os outros, para todos. Quando Jesus diz "Eu consagro-Me",
faz-Se simultaneamente sacerdote e vítima. Por conseguinte, Bultmann tem razão ao
traduzir a afirmação "Eu consagro-Me" por "Eu sacrifico-Me". Compreendemos nós
agora o que acontece quando Jesus diz "Eu consagro-Me por eles"? Isto é o ato sacerdotal
em que Jesus – o Homem Jesus, que forma um só com o Filho de Deus – Se entrega ao
Pai por nós. É a expressão do fato que Ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. Consagro-Me,
sacrifico-Me: esta palavra abismal, que nos permite lançar um olhar no íntimo do coração
de Jesus Cristo, deveria ser sempre de novo objeto da nossa reflexão. Nela se encerra
todo o mistério da nossa redenção. E nela está contida também a origem do sacerdócio
da Igreja.
Só agora podemos compreender até ao fundo a oração que o Senhor
apresentou ao Pai pelos discípulos, por nós. "Consagra-os na verdade": isto é a integração
dos apóstolos no sacerdócio de Jesus Cristo, a instituição do seu sacerdócio novo
para a comunidade dos fiéis de todos os tempos. "Consagra-os na verdade": esta é a
verdadeira oração de consagração pelos apóstolos. O Senhor pede que o próprio Deus
os atraia a Si, para dentro da sua santidade. Pede que Ele os subtraia a si mesmos
e os tome como sua propriedade, a fim de que, a partir d’Ele, possam desempenhar o
serviço sacerdotal pelo mundo. Esta oração de Jesus aparece duas vezes, de forma ligeiramente
modificada. Temos de ouvir as duas com muita atenção, para começar a entender, pelo
menos vagamente, a realidade sublime que aqui se está a verificar: "Consagra-os na
verdade" e – Jesus acrescenta – "a tua palavra é a verdade". Por conseguinte os discípulos
são atraídos para o íntimo de Deus por meio da sua imersão na palavra de Deus. A palavra
de Deus é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma
no ser de Deus. Sendo assim, como se está a realizar isto na nossa vida? Somos verdadeiramente
permeados pela palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais
de quanto o seja o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la?
De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um
timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento? Ou não sucede antes que o nosso pensamento
se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Porventura não são tantas
vezes as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos? No fim de
contas, não ficamos porventura na superficialidade de tudo o que, habitualmente, se
impõe ao homem de hoje? Deixamo-nos verdadeiramente purificar no nosso íntimo pela
palavra de Deus? Friedrich Nietzsche zombou da humildade e da obediência como sendo
virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou
a ufania e a liberdade absoluta do homem. Ora bem, existem caricaturas duma humildade
falsa e duma submissão errada, que não queremos imitar. Mas há também a soberba destrutiva
e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência. Sabemos nós
aprender de Cristo a reta humildade, que corresponde à verdade do nosso ser, e aquela
obediência que se submete à verdade, à vontade de Deus? "Consagra-os na verdade. A
tua palavra é a verdade": esta palavra da integração no sacerdócio ilumina a nossa
vida e chama-nos a tonarmo-nos sem cessar discípulos daquela verdade que se manifesta
na palavra de Deus.
Creio que, na interpretação desta frase, podemos dar ainda
mais um passo. Não disse Cristo de Si mesmo: "Eu sou a verdade" (cf. Jo 14, 6)? E
não é porventura Ele a Palavra viva de Deus, à qual todas e cada uma das outras palavras
fazem referência? Assim, consagra-os na verdade quer dizer, fundamentalmente: torna-os
um só comigo, Cristo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de fato, em última
análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo. E,
por conseguinte, o sacerdócio dos discípulos só pode ser participação no sacerdócio
de Jesus. Portanto o nosso ser sacerdotes nada mais é que um novo modo de unificação
com Cristo. Esta foi-nos substancialmente concedida para sempre no Sacramento. Mas
este novo timbre do ser pode tornar-se para nós um juízo de condenação, se a nossa
vida não se desenvolve entrando na verdade do Sacramento. A tal propósito, as promessas
que hoje renovamos dizem que a nossa vontade assim se deve orientar: "Domino Iesu
arctius coniungi et conformari, vobismetipsis abrenuntiantes". Unir-se a Cristo supõe
a renúncia. Comporta não querermos impor a nossa estrada e a nossa vontade; não desejarmos
tornar-nos isto ou aquilo, mas abandonarmo-nos a Ele em todo o lado e modo como Ele
quiser servir-Se de nós. "Vivo, e contudo, já não sou eu que vivo, é Cristo que vive
em mim", disse São Paulo a tal propósito (cf. Gal 2, 20). No "sim" da Ordenação Sacerdotal,
fizemos esta renúncia fundamental a querer ser autônomos, à "auto-realização". Mas
é preciso dia após dia cumprir este grande "sim" nos múltiplos "sins" e nas pequenas
renúncias. Entretanto este "sim" dos pequenos passos, que juntos constituem o grande
"sim", só poderá realizar-se sem amargura nem autocomiseração, se Cristo for verdadeiramente
o centro da nossa vida; se cultivarmos uma verdadeira familiaridade com Ele. De fato,
então experimentaremos no meio das renúncias, que num primeiro momento podem causar
sofrimento, a alegria crescente da amizade com Ele, todos os pequenos e às vezes grandes
sinais do seu amor, que nos dá continuamente. "Aquele que se perde a si mesmo, encontra-se".
Se ousamos perder-nos a nós mesmos pelo Senhor, experimentaremos como é verdadeira
a sua palavra.
Deste processo de sermos imersos na Verdade, em Cristo, faz
parte a oração, na qual nos exercitamos na amizade com Ele e aprendemos a conhecê-Lo:
o seu modo de ser, de pensar, de agir. Rezar é fazer estrada em comunhão pessoal com
Cristo, expondo diante d’Ele a nossa vida diária, os nossos sucessos e os nossos falimentos,
as nossas fadigas e as nossas alegrias: é simplesmente apresentarmo-nos a nós mesmos
diante d’Ele. Mas, para que isto não se torne um autocontemplar-se, é importante aprendermos
continuamente a orar rezando com a Igreja. Celebrar a Eucaristia quer dizer rezar.
Celebramos no justo modo a Eucaristia, se, com o nosso pensamento e com o nosso ser,
penetramos nas palavras que a Igreja nos propõe. Nelas está presente a oração de todas
as gerações, que nos tomam consigo ao longo do caminho para o Senhor. E, como sacerdotes,
somos na celebração eucarística aqueles que, com a sua oração, abrem estrada à oração
dos fiéis de hoje. Se estivermos interiormente unidos às palavras da oração, se nos
deixarmos guiar e transformar por elas, então também os fiéis encontram o acesso a
tais palavras. Então tornamo-nos todos verdadeiramente "um só corpo e uma só alma"
com Cristo.
Ser imersos na verdade e, deste modo, na santidade de Deus significa
para nós também aceitar o caráter exigente da verdade; contrapor-se, tanto nas coisas
grandes como nas pequenas, à mentira, que de modo tão variado está presente no mundo;
aceitar a fadiga da verdade, porque a sua alegria mais profunda está presente em nós.
Quando falamos de ser consagrados na verdade, também não devemos esquecer que, em
Jesus Cristo, verdade e amor são uma coisa só. Ser imersos n’Ele significa ser imersos
na sua bondade, no amor verdadeiro. O amor verdadeiro não se adquire a baixo preço,
pode ser até muito exigente. Opõe resistência ao mal, para levar ao homem o verdadeiro
bem. Se nos tornamos um só com Cristo, aprendemos a reconhecê-Lo precisamente nos
doentes, nos pobres, nos pequenos deste mundo; tornamo-nos então pessoas que servem,
que reconhecem os irmãos e irmãs d’Ele e, nestes, encontramo-Lo a Ele mesmo.
"Consagra-os
na verdade" – tal é a primeira parte daquela frase de Jesus. Mas depois acrescenta:
"Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados de verdade", isto
é, verdadeiramente (cf. Jo 17, 19). Penso que esta segunda parte encerre um específico
significado. Nas religiões do mundo, existem variados modos rituais de "santificação",
de consagração duma pessoa humana. Mas todos estes ritos podem permanecer algo de
simplesmente formal. Cristo pede para os discípulos a verdadeira santificação, que
transforme o seu ser, que os transforme a eles mesmos; que não fique uma forma ritual,
mas seja um tornar-se verdadeiramente propriedade do Deus santo. Poderemos também
dizer: Cristo pediu para nós o Sacramento que nos toca nas profundezas do nosso ser.
Mas pediu também que esta transformação em nós dia após dia se traduza em vida; que
no nosso quotidiano e na nossa vida concreta de cada dia sejamos verdadeiramente permeados
pela luz de Deus.
Na vigília da minha Ordenação Sacerdotal, há 58 anos, abri
a Sagrada Escritura, porque queria ainda receber uma palavra do Senhor para aquele
dia e para o meu caminho futuro como sacerdote. O meu olhar deteve-se neste texto:
"Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade". Então dei-me conta: o Senhor
está a falar de mim, e está a falar a mim. É isto mesmo que amanhã sucederá comigo.
Em última análise, não somos consagrados através de ritos, embora haja necessidade
de ritos. O banho, onde o Senhor nos imerge, é Ele próprio – a Verdade em pessoa.
Ordenação Sacerdotal significa ser imersos n’Ele, na Verdade. Fico a pertencer de
modo novo a Ele e, deste modo, aos outros, "para que venha o seu Reino". Queridos
amigos, nesta hora da renovação das promessas, queremos pedir ao Senhor que nos faça
tornar homens de verdade, homens de amor, homens de Deus. Peçamos-Lhe para nos atrair
cada vez mais para dentro d’Ele, a fim de que nos tornemos verdadeiramente sacerdotes
da Nova Aliança. Amém.