Homilia do Cardeal-Patriarca no dia de Natal: “A Palavra de Deus encerra o sentido
do mundo, do homem e da história”
(26/12/2008) A procura de Deus constitui a página mais densa, mesmo dramática, da
história da humanidade. O desejo de Deus é constitutivo da natureza humana e está
na origem da religião que, por sua vez, se tornou elemento decisivo na elaboração
das culturas. Mas algo de traumático aconteceu no início da história humana - que
é a história da liberdade humana - que tornou difícil a realização desse desejo. Este
tornou-se interrogação sobre a existência de Deus, concretizou-se em fé obscura e
exigente, adensou-se na busca de sinais da Sua presença no universo e na história,
desabrochou no anseio de escutar uma palavra que viesse d’Ele, ousou exprimir-se no
desejo de conhecer e contemplar o Seu rosto. Neste caminho dramático, muitos não passaram
da interrogação sobre a Sua existência e acabaram por negá-l’O. A Sagrada Escritura,
livro sagrado de judeus e cristãos, é a epopeia desta busca de Deus pela humanidade,
em que Deus mostrou que também procurava o homem e lhe falou. Se Deus verdadeiramente
falou, os que O procuram anseiam por escutá-l’O e encontrar nessa palavra o sinal
de que Deus existe e ama o homem; ao revelar-Se lhes aponta o caminho do reencontro,
o caminho da vida. A palavra da Escritura não nos diz apenas que Deus existe e nos
procura; diz-nos também um pouco de quem Deus é. Afinal podemos conhecê-l’O e conhecer
n’Ele o nosso mistério e o nosso destino. Neste desvelar progressivo de quem Deus
é, a Escritura dá-nos, tantas vezes e de tantos modos, duas notícias fundamentais
e decisivas: Deus é Palavra; Deus é amor. Se Deus é Palavra, é uma urgência comunicar,
de Se comunicar; fala, mas não se limita a falar; age e a Palavra exprime-se em tudo
o que faz; e podemos ouvi-la, não apenas escutando as palavras, mas acolhendo a mensagem
das suas obras. Mas porque o Deus Palavra é amor, a Palavra anuncia e edifica o amor,
alarga a comunhão de amor que Deus é à criação e à humanidade. 2. O Natal celebra
o ponto culminante desta busca do homem, que deseja conhecer o rosto de Deus, e do
desejo não menos intenso de Deus de construir com o homem uma comunhão de amor. Jesus
Cristo é o rosto de Deus, e podemos estabelecer com Ele uma comunhão de amor que nos
arrastará para a voragem do amor divino e nos conduzirá à verdade profunda da humanidade,
que só se encontrará definitivamente a si mesma, quando for comunhão de amor, amor
fraterno, contemplativo da grandeza e da dignidade do homem. Jesus Cristo é a Palavra
de Deus feita Homem. Porque Deus Se identifica com a Sua Palavra, em Jesus Cristo
contemplamos o rosto de Deus, resplendor da Sua Glória. “E o Verbo fez-Se carne e
habitou entre nós. Nós vimos a Sua glória, glória que lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). O facto de Jesus Cristo ser a Palavra
eterna de Deus feita Homem, abre-nos para a compreensão do mistério de Deus e da História
da Salvação: * Antes de mais, diz-nos que a Palavra de Deus é Pessoa e não apenas
a voz profética com que Deus se foi comunicando aos homens. Quando Deus fala, diz-Se
completamente na Sua Palavra. Este é um mistério que ultrapassa a capacidade humana
de compreender. Na nossa experiência humana, a palavra também é importante para comunicar
a nossa verdade interior, mas não nos identificamos com as palavras que dizemos nem
nos esgotamos nelas. Talvez numa palavra de amor, profunda e sincera, o ser humano
se aproxime desta experiência de se identificar com a sua palavra e o testemunho silencioso
de fé e de fidelidade sejam a expressão humana que mais exprimem o mistério da pessoa.
Também é verdade que quanto menos a palavra humana exprimir a pessoa que a diz, mais
débil é a mensagem de que é portadora. Só a palavra que exprime a pessoa é geradora
de comunhão de amor. Passa por aí a fronteira entre a verdade e a mentira, entre a
palavra que toca os corações e rasga novos sulcos de vida e a que é estéril e não
arrasta ninguém para novos horizontes de verdade. * Se Deus Se identifica com
a Sua Palavra, significa que Deus se diz, não apenas quando fala, por meio dos profetas,
mas sobretudo quando age. As obras da Palavra são comunicação de Deus. É por isso
que São João pode dizer de Jesus Cristo, Palavra incarnada: “Tudo se fez por meio
d’Ele e sem Ele nada foi feito”. As Suas palavras são mais do que as palavras de um
profeta: no que é, no que diz, no que faz, Ele é expressão de Deus. É a mensagem da
Carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de muitos modos falou antigamente aos nossos pais,
pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por Seu Filho, a quem fez
herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o Universo” (He. 1,1ss). Em
Jesus Cristo, Palavra incarnada, Deuz diz-Se completamente, tanto no segredo da intimidade
trinitária, como no sentido da criação e da história da salvação. Demos a palavra
a Sua Santidade Bento XVI na homilia da celebração de encerramento do recente Sínodo
dos Bispos sobre a Palavra de Deus: “Todas as coisas derivam da Palavra, são um produto
da Palavra. «No princípio havia a Palavra». No início o Céu falou. E assim a realidade
nasce da Palavra, é «creatura verbi». Tudo é criado a partir da Palavra e tudo é chamado
a servir a Palavra. Isto quer dizer que toda a criação, no final, é pensada para criar
o lugar de encontro entre Deus e a Sua criatura, um lugar onde o amor da criatura
corresponda ao amor divino, um lugar onde se desenvolva a história do amor entre Deus
e a Sua criatura. A História da Salvação não é um pequeno acontecimento, num planeta
pobre, na imensidão do Universo. Não é algo mínimo, que aconteceu por acaso num planeta
perdido. É o motor de tudo, o motivo da criação. Tudo é criado para que haja esta
história, o encontro entre Deus e a Sua criatura”. É por isso que Cristo, Palavra
eterna de Deus, encerra o sentido de todas as coisas e a plenitude de todas as coisas.
Ele revela-nos que o Universo e a Humanidade foram criados para se transformarem em
história de amor. Ele inaugura e anuncia o tempo definitivo, o verdadeiro rosto da
criação, os “novos Céus e a nova terra”. É n’Ele, na Sua Palavra, na Sua vida e na
Sua morte, que se vence o trauma do pecado e se dá a reviravolta definitiva da criação.
3. São João acrescenta que esta Palavra encarnada, que é Pessoa divina, é Filho,
porque é Palavra do Pai. Chamar Filho à Palavra, é um outro grau da revelação do mistério
de Deus. A Palavra não é a cópia de Deus que fala. A Palavra brota d’Ele; e quando
Deus se diz, ama aquele que diz, ama-se no que diz. Ser filho é isso: um outro ser
que brota dessa intensidade amorosa de quem se entrega na Palavra e que continua a
dizer-se na relação de amor que estabelece com esse Filho. Na verdade da criação,
está impresso este ritmo de Deus. Quando a palavra é dom da pessoa, ela é amada; quando
os seres humanos geram um filho, no amor, esse filho é a mais expressiva palavra que
pronunciaram. Mas também aqui Jesus Cristo rasgou horizontes novos: escutá-l’O é sermos
gerados de novo e tornarmo-nos filhos de Deus, “filhos no Filho”. E quando, a partir
de Jesus Cristo, ajudamos a gerar esses “novos filhos de Deus”, percebemos que essa
é a Palavra mais significativa que podemos pronunciar: ajudar a gerar novos filhos
de Deus, em Jesus Cristo, é a expressão máxima da nossa fecundidade. 4. Desejo-vos
um Santo Natal, com Jesus Cristo. Escutemo-l’O, porque Ele é a Palavra de Deus que
se humanizou; escutemo-l’O e perceberemos Deus e o Seu desígnio de amor, captaremos
o sentido último do Universo criado e mergulharemos com mais ardor nesta nossa história,
que está a germinar para se transformar em história de amor. Sé Patriarcal, 25
de Dezembro de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca