LEIA NA ÍNTEGRA MENSAGEM DE BENTO XVI PARA O DIA MUNDIAL DA PAZ
Cidade do Vaticano, 11 dez (RV) – Mensagem de Sua Santidade Bento XVI para
a celebração do Dia Mundial da Paz, 1º de janeiro de 2009.
COMBATER A
POBREZA, CONSTRUIR A PAZ 1. Desejo, também no início deste novo ano, fazer
chegar os meus votos de paz a todos e, com esta minha Mensagem, convidá-los a reflectir
sobre o tema: Combater a pobreza, construir a paz. Já o meu venerado antecessor João
Paulo II, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, sublinhara as repercussões
negativas que acaba por ter sobre a paz a situação de pobreza em que versam populações
inteiras. De facto, a pobreza encontra-se frequentemente entre os factores que favorecem
ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos, por sua vez, alimentam
trágicas situações de pobreza. « Vai-se afirmando (...), com uma gravidade sempre
maior – escrevia João Paulo II –, outra séria ameaça à paz: muitas pessoas, mais ainda,
populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza. A disparidade entre
ricos e pobres tornou-se mais evidente, mesmo nas nações economicamente mais desenvolvidas.
Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade, visto que as condições
em que se encontra um grande número de pessoas são tais que ofendem a sua dignidade
natural e, consequentemente, comprometem o autêntico e harmónico progresso da comunidade
mundial ».1
2. Neste contexto, combater a pobreza implica uma análise atenta
do fenómeno complexo que é a globalização. Tal análise é já importante do ponto de
vista metodológico, porque convida a pôr em prática o fruto das pesquisas realizadas
pelos economistas e sociólogos sobre tantos aspectos da pobreza. Mas a evocação da
globalização deveria revestir também um significado espiritual e moral, solicitando
a olhar os pobres bem cientes da perspectiva que todos somos participantes de um único
projecto divino: chamados a constituir uma única família, na qual todos – indivíduos,
povos e nações – regulem o seu comportamento segundo os princípios de fraternidade
e responsabilidade.
Em tal perspectiva, é preciso ter uma visão ampla e articulada
da pobreza. Se esta fosse apenas material, para iluminar as suas principais características,
seriam suficientes as ciências sociais que nos ajudam a medir os fenómenos baseados
sobretudo em dados de tipo quantitativo. Sabemos porém que existem pobrezas imateriais,
isto é, que não são consequência directa e automática de carências materiais. Por
exemplo, nas sociedades ricas e avançadas, existem fenómenos de marginalização, pobreza
relacional, moral e espiritual: trata-se de pessoas desorientadas interiormente, que,
apesar do bem-estar económico, vivem diversas formas de transtorno. Penso, por um
lado, no chamado « subdesenvolvimento moral » 2 e, por outro, nas consequências negativas
do « superdesenvolvimento ».3 Não esqueço também que muitas vezes, nas sociedades
chamadas « pobres », o crescimento económico é entravado por impedimentos culturais,
que não permitem uma conveniente utilização dos recursos. Seja como for, não restam
dúvidas de que toda a forma de pobreza imposta tem, na sua raiz, a falta de respeito
pela dignidade transcendente da pessoa humana. Quando o homem não é visto na integridade
da sua vocação e não se respeitam as exigências duma verdadeira « ecologia humana
»,4 desencadeiam-se também as dinâmicas perversas da pobreza, como é evidente em alguns
âmbitos sobre os quais passo a deter brevemente a minha atenção.
Pobreza
e implicações morais
3. A pobreza aparece muitas vezes associada, como
se fosse sua causa, com o desenvolvimento demográfico. Em consequência disso, realizam-se
campanhas de redução da natalidade, promovidas a nível internacional, até com métodos
que não respeitam a dignidade da mulher nem o direito dos esposos a decidirem responsavelmente
o número dos filhos 5 e que muitas vezes – facto ainda mais grave – não respeitam
sequer o direito à vida. O extermínio de milhões de nascituros, em nome da luta à
pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres dentre os seres humanos.
Contra tal presunção, fala o dado seguinte: enquanto, em 1981, cerca de 40% da população
mundial vivia abaixo da linha de pobreza absoluta, hoje tal percentagem aparece substancialmente
reduzida a metade, tendo saído da pobreza populações caracterizadas precisamente por
um incremento demográfico notável. O dado agora assinalado põe em evidência que existiriam
os recursos para se resolver o problema da pobreza, mesmo no caso de um crescimento
da população. E não se há-de esquecer que, desde o fim da segunda guerra mundial até
hoje, a população da terra cresceu quatro mil milhões e tal fenómeno diz respeito,
em larga medida, a países que surgiram recentemente na cena internacional como novas
potências económicas e conheceram um rápido desenvolvimento graças precisamente ao
elevado número dos seus habitantes. Além disso, dentre as nações que mais se desenvolveram,
aquelas que detêm maiores índices de natalidade gozam de melhores potencialidades
de progresso. Por outras palavras, a população confirma-se como uma riqueza e não
como um factor de pobreza.
4. Outro âmbito de preocupação são as pandemias,
como por exemplo a malária, a tuberculose e a SIDA, pois, na medida em que atingem
os sectores produtivos da população, influem enormemente no agravamento das condições
gerais do país. As tentativas para travar as consequências destas doenças na população
nem sempre alcançam resultados significativos. E sucede além disso que os países afectados
por algumas dessas pandemias se vêem, ao querer enfrentá-las, sujeitos a chantagem
por parte de quem condiciona a ajuda económica à actuação de políticas contrárias
à vida. Sobretudo a SIDA, dramática causa de pobreza, é difícil combatê-la se não
se enfrentarem as problemáticas morais associadas com a difusão do vírus. É preciso,
antes de tudo, fomentar campanhas que eduquem, especialmente os jovens, para uma sexualidade
plenamente respeitadora da dignidade da pessoa; iniciativas realizadas nesta linha
já deram frutos significativos, fazendo diminuir a difusão da SIDA. Depois há que
colocar à disposição também das populações pobres os remédios e os tratamentos necessários;
isto supõe uma decidida promoção da pesquisa médica e das inovações terapêuticas e,
quando for preciso, uma aplicação flexível das regras internacionais de protecção
da propriedade intelectual, de modo que a todos fiquem garantidos os necessários tratamentos
sanitários de base.
5. Terceiro âmbito, que é objecto de atenção nos programas
de luta contra a pobreza e que mostra a sua intrínseca dimensão moral, é a pobreza
das crianças. Quando a pobreza atinge uma família, as crianças são as suas vítimas
mais vulneráveis: actualmente quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é constituída
por crianças. O facto de olhar a pobreza colocando-se da parte das crianças induz
a reter como prioritários os objectivos que mais directamente lhes dizem respeito,
como por exemplo os cuidados maternos, o serviço educativo, o acesso às vacinas, aos
cuidados médicos e à água potável, a defesa do ambiente e sobretudo o empenho na defesa
da família e da estabilidade das relações no seio da mesma. Quando a família se debilita,
os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças. Onde não é tutelada a dignidade
da mulher e da mãe, a ressentir-se do facto são de novo principalmente os filhos.
6.
Quarto âmbito que, do ponto de vista moral, merece particular atenção é a relação
existente entre desarmamento e progresso. Gera preocupação o actual nível global de
despesa militar. É que, como já tive ocasião de sublinhar, « os ingentes recursos
materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos, na
realidade, são desviados dos projectos de desenvolvimento dos povos, especialmente
dos mais pobres e necessitados de ajuda. E isto está contra o estipulado na própria
Carta das Nações Unidas, que empenha a comunidade internacional, e cada um dos Estados
em particular, a ‘‘promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança
internacional com o mínimo dispêndio dos recursos humanos e económicos mundiais para
os armamentos'' (art. 26) ».6
Uma tal conjuntura, longe de facilitar, obstaculiza
seriamente a consecução dos grandes objectivos de desenvolvimento da comunidade internacional.
Além disso, um excessivo aumento da despesa militar corre o risco de acelerar uma
corrida aos armamentos que provoca faixas de subdesenvolvimento e desespero, transformando-se
assim, paradoxalmente, em factor de instabilidade, tensão e conflito. Como sensatamente
afirmou o meu venerado antecessor Paulo VI, « o desenvolvimento é o novo nome da paz
».7 Por isso, os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais
profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências
com uma corajosa autocrítica. Se se chegar a uma melhoria das relações, isso deverá
consentir uma redução das despesas para armamentos. Os recursos poupados poderão ser
destinados para projectos de desenvolvimento das pessoas e dos povos mais pobres e
necessitados: o esforço despendido em tal direcção é um serviço à paz no seio da família
humana.
7. Quinto âmbito na referida luta contra a pobreza material diz respeito
à crise alimentar actual, que põe em perigo a satisfação das necessidades de base.
Tal crise é caracterizada não tanto pela insuficiência de alimento, como sobretudo
pela dificuldade de acesso ao mesmo e por fenómenos especulativos e, consequentemente,
pela falta de um reajustamento de instituições políticas e económicas que seja capaz
de fazer frente às necessidades e às emergências. A má nutrição pode também provocar
graves danos psicofísicos nas populações, privando muitas pessoas das energias de
que necessitam para sair, sem especiais ajudas, da sua situação de pobreza. E isto
contribui para alargar a distância angular das desigualdades, provocando reacções
que correm o risco de tornar-se violentas. Todos os dados sobre o andamento da pobreza
relativa nos últimos decénios indicam um aumento do fosso entre ricos e pobres. Causas
principais de tal fenómeno são, sem dúvida, por um lado a evolução tecnológica, cujos
benefícios se concentram na faixa superior da distribuição do rendimento, e por outro
a dinâmica dos preços dos produtos industriais, que crescem muito mais rapidamente
do que os preços dos produtos agrícolas e das matérias primas na posse dos países
mais pobres. Isto faz com que a maior parte da população dos países mais pobres sofra
uma dupla marginalização, ou seja, em termos de rendimentos mais baixos e de preços
mais altos.
Luta contra a pobreza e solidariedade global 8. Uma
das estradas mestras para construir a paz é uma globalização que tenha em vista os
interesses da grande família humana.8 Mas, para guiar a globalização é preciso uma
forte solidariedade global 9 entre países ricos e países pobres, como também no âmbito
interno de cada uma das nações, incluindo ricas. É necessário um « código ético comum
»,10 cujas normas não tenham apenas carácter convencional mas estejam radicadas na
lei natural inscrita pelo Criador na consciência de todo o ser humano (cf. Rm 2, 14-15).
Porventura não sente cada um de nós, no íntimo da consciência, o apelo a dar a própria
contribuição para o bem comum e a paz social? A globalização elimina determinadas
barreiras, mas isto não significa que não possa construir outras novas; aproxima os
povos, mas a proximidade geográfica e temporal não cria, de per si, as condições para
uma verdadeira comunhão e uma paz autêntica. A marginalização dos pobres da terra
só pode encontrar válidos instrumentos de resgate na globalização, se cada homem se
sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações
dos direitos humanos ligadas com elas. A Igreja, que é « sinal e instrumento da íntima
união com Deus e da unidade de todo o género humano »,11 continuará a dar a sua contribuição
para que sejam superadas as injustiças e incompreensões e se chegue a construir um
mundo mais pacífico e solidário.
9. No campo do comércio internacional e das
transacções financeiras, temos hoje em acção processos que permitem integrar positivamente
as economias, contribuindo para o melhoramento das condições gerais; mas há também
processos de sentido oposto, que dividem e marginalizam os povos, criando perigosas
premissas para guerras e conflitos. Nos decénios posteriores à segunda guerra mundial,
o comércio internacional de bens e serviços cresceu de forma extraordinariamente rápida,
com um dinamismo sem precedentes na história. Grande parte do comércio mundial interessou
os países de antiga industrialização, vindo significativamente juntar-se-lhes muitos
países que sobressaíram tornando-se relevantes. Mas há outros países de rendimento
baixo que estão ainda gravemente marginalizados dos fluxos comerciais. O seu crescimento
ressentiu-se negativamente com a rápida descida verificada, nos últimos decénios,
nos preços dos produtos primários, que constituem a quase totalidade das suas exportações.
Nestes países, em grande parte africanos, a dependência das exportações de produtos
primários continua a constituir um poderoso factor de risco. Quero reiterar aqui um
apelo para que todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado
mundial, evitando exclusões e marginalizações.
10. Idêntica reflexão pode fazer-se
a propósito do mercado financeiro, que toca um dos aspectos primários do fenómeno
da globalização, devido ao progresso da electrónica e às políticas de liberalização
dos fluxos de dinheiro entre os diversos países. A função objectivamente mais importante
do mercado financeiro, que é a de sustentar a longo prazo a possibilidade de investimentos
e consequentemente de desenvolvimento, aparece hoje muito frágil: sofre as consequências
negativas de um sistema de transacções financeiras – a nível nacional e global – baseadas
sobre uma lógica de brevíssimo prazo, que busca o incremento do valor das actividades
financeiras e se concentra na gestão técnica das diversas formas de risco. A própria
crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas
puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo.
O nivelamento dos objectivos dos operadores financeiros globais para o brevíssimo
prazo reduz a capacidade de o mercado financeiro realizar a sua função de ponte entre
o presente e o futuro: apoio à criação de novas oportunidades de produção e de trabalho
a longo prazo. Uma actividade financeira confinada no breve e brevíssimo prazo torna-se
perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as
fases de euforia financeira.12
11. Segue-se de tudo isto que a luta contra
a pobreza requer uma cooperação nos planos económico e jurídico que permita à comunidade
internacional e especialmente aos países pobres individuarem e actuarem soluções coordenadas
para enfrentar os referidos problemas através da realização de um quadro jurídico
eficaz para a economia. Além disso, requer estímulos para se criarem instituições
eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover
uma cultura da legalidade. Por outro lado, não se pode negar que, na origem de muitos
falimentos na ajuda aos países pobres, estão as políticas vincadamente assistencialistas.
Investir na formação das pessoas e desenvolver de forma integrada uma cultura específica
da iniciativa parece ser actualmente o verdadeiro projecto a médio e longo prazo.
Se as actividades económicas precisam de um contexto favorável para se desenvolver,
isto não significa que a atenção se deva desinteressar dos problemas do rendimento.
Embora se tenha oportunamente sublinhado que o aumento do rendimento pro capite não
pode de forma alguma constituir o fim da acção político-económica, todavia não se
deve esquecer que o mesmo representa um instrumento importante para se alcançar o
objectivo da luta contra a fome e contra a pobreza absoluta. Deste ponto de vista,
seja banida a ilusão de que uma política de pura redistribuição da riqueza existente
possa resolver o problema de maneira definitiva. De facto, numa economia moderna,
o valor da riqueza depende em medida determinante da capacidade de criar rendimento
presente e futuro. Por isso, a criação de valor surge como um elo imprescindível,
que se há- de ter em conta se se quer lutar contra a pobreza material de modo eficaz
e duradouro.
12. Colocar os pobres em primeiro lugar implica, finalmente, que
se reserve espaço adequado para uma correcta lógica económica por parte dos agentes
do mercado internacional, uma correcta lógica política por parte dos agentes institucionais
e uma correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional.
Hoje os próprios organismos internacionais reconhecem o valor e a vantagem das iniciativas
económicas da sociedade civil ou das administrações locais para favorecer o resgate
e a integração na sociedade daquelas faixas da população que muitas vezes estão abaixo
do limiar de pobreza extrema mas, ao mesmo tempo, dificilmente se consegue fazer-lhes
chegar as ajudas oficiais. A história do progresso económico do século XX ensina que
boas políticas de desenvolvimento são confiadas à responsabilidade dos homens e à
criação de positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados. Particularmente
a sociedade civil assume um papel crucial em todo o processo de desenvolvimento, já
que este é essencialmente um fenómeno cultural e a cultura nasce e se desenvolve nos
diversos âmbitos da vida civil.13
13. Como observava o meu venerado antecessor
João Paulo II, a globalização « apresenta-se com uma acentuada característica de ambivalência
»,14 pelo que há- de ser dirigida com clarividente sabedoria. Faz parte de tal sabedoria
ter em conta primariamente as exigências dos pobres da terra, superando o escândalo
da desproporção que se verifica entre os problemas da pobreza e as medidas predispostas
pelos homens para os enfrentar. A desproporção é de ordem tanto cultural e política
como espiritual e moral. De facto, tais medidas detêm-se frequentemente nas causas
superficiais e instrumentais da pobreza, sem chegar às que se abrigam no coração humano,
como a avidez e a estreiteza de horizontes. Os problemas do desenvolvimento, das ajudas
e da cooperação internacional são às vezes enfrentados sem um verdadeiro envolvimento
das pessoas, mas apenas como questões técnicas que se reduzem à preparação de estruturas,
elaboração de acordos tarifários, atribuição de financiamentos anónimos. Inversamente,
a luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade
e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades por percursos de autêntico
progresso humano.
Conclusão 14. Na Encíclica Centesimus annus, João
Paulo II advertia para a necessidade de « abandonar a mentalidade que considera os
pobres – pessoas e povos – como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem
consumir tudo o que os outros produziram ». « Os pobres – escrevia ele – pedem o direito
de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de
trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos ».15 No mundo
global de hoje, resulta de forma cada vez mais evidente que só é possível construir
a paz, se se assegurar a todos a possibilidade de um razoável crescimento: de facto,
as consequências das distorções de sistemas injustos, mais cedo ou mais tarde, fazem-se
sentir sobre todos. Deste modo, só a insensatez pode induzir a construir um palácio
dourado, tendo porém ao seu redor o deserto e o degrado. Por si só, a globalização
não consegue construir a paz; antes, em muitos casos, cria divisões e conflitos. A
mesma põe a descoberto sobretudo uma urgência: a de ser orientada para um objectivo
de profunda solidariedade que aponte para o bem de cada um e de todos. Neste sentido,
a globalização há-de ser vista como uma ocasião propícia para realizar algo de importante
na luta contra a pobreza e colocar à disposição da justiça e da paz recursos até agora
impensáveis.
15. Desde sempre se interessou pelos pobres a doutrina social
da Igreja. Nos tempos da Encíclica Rerum novarum, pobres eram sobretudo os operários
da nova sociedade industrial; no magistério social de Pio XI, Pio XII, João XXIII,
Paulo VI e João Paulo II, novas pobrezas foram vindo à luz à medida que o horizonte
da questão social se alargava até assumir dimensões mundiais.16 Este alargamento da
questão social à globalidade não deve ser considerado apenas no sentido duma extensão
quantitativa mas também dum aprofundamento qualitativo sobre o homem e as necessidades
da família humana. Por isso a Igreja, ao mesmo tempo que segue com atenção os fenómenos
actuais da globalização e a sua incidência sobre as pobrezas humanas, aponta os novos
aspectos da questão social, não só em extensão mas também em profundidade, no que
se refere à identidade do homem e à sua relação com Deus. São princípios de doutrina
social que tendem a esclarecer os vínculos entre pobreza e globalização e a orientar
a acção para a construção da paz. Dentre tais princípios, vale a pena recordar aqui,
de modo particular, o « amor preferencial pelos pobres »,17 à luz do primado da caridade
testemunhado por toda a tradição cristã a partir dos primórdios da Igreja (cf. Act
4, 32-37; 1 Cor 16, 1; 2 Cor 8-9; Gal 2, 10). « Cada um entregue-se à tarefa que
lhe incumbe com a maior diligência possível » – escrevia em 1891 Leão XIII, acrescentando:
« Quanto à Igreja, a sua acção não faltará em nenhum momento ».18 Esta consciência
acompanha hoje também a acção da Igreja em favor dos pobres, nos quais vê Cristo,19
sentindo ressoar constantemente em seu coração o mandato do Príncipe da paz aos Apóstolos:
« Vos date illis manducare – dai-lhes vós mesmos de comer » (Lc 9, 13). Fiel a este
convite do seu Senhor, a Comunidade Cristã não deixará, pois, de assegurar o seu apoio
à família humana inteira nos seus impulsos de solidariedade criativa, tendentes não
só a partilhar o supérfluo, mas sobretudo a alterar « os estilos de vida, os modelos
de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades
».20 Assim, a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo,
no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades
dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir em seu socorro.
De facto, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma « combater a pobreza
é construir a paz ».
Vaticano, 8 de Dezembro de 2008.
TIPOGRAFIA VATICANA
1
Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, 1. 2 Paulo VI, Carta enc. Populorum
progressio, 19. 3 João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 28. 4
João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 38. 5 Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum
progressio, 37; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 25. 6 Bento
XVI, Carta ao Cardeal Renato Rafael Martino por ocasião do Seminário Internacional
organizado pelo Conselho Pontifício « Justiça e Paz » sobre o tema « Desarmamento,
desenvolvimento e paz. Perspectivas para um desarmamento integral » (10 de Abril de
2008): L'Osservatore Romano (13/IV/2008), p. 8. 7 Carta enc. Populorum progressio,
87. 8 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58. 9 Cf. João Paulo II,
Discurso na Audiência às Associações Cristãs de Trabalhadores Italianos [ACLI] (27
de Abril de 2002), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXV/1 [2002], 637. 10
João Paulo II, Discurso à Assembleia Plenária da Academia Pontifícia das Ciências
Sociais (27 de Abril de 2001), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIV/1 [2001],
802. 11 Concílio Ecum. Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, 1. 12 Cf. Conselho
Pontifício « Justiça e Paz », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 368. 13 Cf.
ibid., 356. 14 Discurso na Audiência a Dirigentes de Sindicatos de Trabalhadores
e de grandes Empresas (2 de Maio de 2000), 3: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIII/1
[2000], 726. 15 N. 28. 16 Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 3. 17
João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; cf. Carta enc. Centesimus
annus, 57. 18 Leão XIII, Carta enc. Rerum novarum, 45. 19 Cf. João Paulo II,
Carta enc. Centesimus annus, 58. 20 Ibid., 58.