Paris, 12 set (RV) - O acontecimento chave da tarde deste primeiro dia da visita
do papa à França foi o seu encontro com o mundo da cultura, no Colégio dos Bernardinos,
filhos espirituais de São Bernardo de Claraval.
O falecido cardeal Jean-Marie
Lustiger, quando era arcebispo de Paris, quis que esse colégio fosse um centro de
diálogo entre a Sabedoria cristã e as correntes culturais, intelectuais e artísticas
da sociedade. É em si emblemático, como Bento XVI mesmo ressaltou, a escolha desse
Colégio para esse encontro com o mundo da cultura.
Estavam presentes cerca
de 700 representantes do mundo da cultura francesa, entre eles membros do Instituto
de França, acadêmicos, pesquisadores, escritores (Daniel Pennac, François Cheng e
Jonathan Littel), artistas, atores, diretores de cinema, compositores, diretores de
teatro, de museus, personalidades da mídia, editores, responsáveis por associações
e manifestações culturais, a ministra da Cultura, assim como ministros de outras pastas,
os ex-presidentes Giscard d’Estaing e Jacques Chirac, representantes da Unesco...
o prefeito de Paris, Bertrand Delanoe, e líderes muçulmanos, como Dalil Bubaker, reitor
da grande mesquita de Paris.
Também participaram o filósofo Régis Debray, o
chef Alain Passart, assim como os historiadores Emmanuel Le Roy Ladurie e Max Gallo,
só para citar alguns nomes da seleta assembléia.
O papa escolheu como tema
do seu encontro com o mundo da cultura as origens da teologia ocidental e as raízes
da cultura européia.
Para entrar de cheio no assunto, Bento XVI falou da origem
do monaquismo: os mosteiros, disse ele, eram o lugar em que os monges “procuravam
Deus” na confusão dos tempos em que nada parecia resistir. Os monges queriam empenhar-se
em encontrar o que vale e permanece sempre, ou seja, queriam encontrar a própria Vida.
Neste sentido, os monges eram escatológicos, mas não no sentido que se interessassem
só pelo fim do mundo ou pela própria morte, mas no sentido existencial, ou seja, atrás
das coisas provisórias buscavam o definitivo.
Mas como os monges eram cristãos,
nessa procura de Deus eles não partiam da estaca zero, da escuridão absoluta. Tinham
a Palavra, a Sagrada Escritura. Como a busca de Deus exigia a cultura da palavra,
faz parte do mosteiro a biblioteca que indica os caminhos para a palavra, a escola,
a erudição, tudo isto em função da Palavra com “P” maiúsculo. O homem aprende, por
meio das palavras, a Palavra.
Na lógica da sua explanação, o papa quis dar
outro passo: ele disse que a Palavra que abre o caminho da procura de Deus é ela mesma
este caminho, é uma Palavra que se refere à comunidade. A Palavra não conduz a um
caminho só individual de uma imersão mística, mas introduz na comunhão com os que
caminham na fé. É necessário, portanto, não só refletir sobre a Palavra, mas também
lê-la de modo justo.
Bento XVI explicou que a Palavra, a Bíblia, as Sagradas
Escrituras, formadas por tantos livros que foram aparecendo num arco de tempo de mais
de um milênio, com todas as suas diversidades nos mostram que a Palavra de Deus chega
a nós somente através da palavra humana, ou seja, Deus nos fala através dos homens,
das suas palavras e da sua história:
“Dito em expressões modernas: a unidade
dos livros bíblicos e o caráter divino das suas palavras não são captáveis de um ponto
de vista puramente histórico... A Escritura precisa de interpretação, precisa da comunidade
em que ela se formou e onde ela é vivida. Existem dimensões de sentido da Palavra
e das palavras que se descobrem unicamente na comunhão vivida desta Palavra que criou
a história. Através da percepção crescente da pluralidade destes sentidos, a Palavra
não é desvalorizada, mas aparece, ao contrário, em toda a sua grandeza e dignidade".
É
por isto, explicou Bento XVI, que o cristianismo não é, em sentido clássico, apenas
uma religião do livro. O cristianismo percebe nas palavras a Palavra, o próprio Logos,
que estende o seu mistério através de tal multiplicidade. Esta estrutura particular
da Bíblia é um desafio sempre novo para cada geração. Segundo a sua natureza, ela
exclui tudo o que hoje é chamado de fundamentalismo. “Sempre e só na unidade dinâmica
do conjunto, os muitos livros formam um Livro, revelam-se na palavra e na história
humana a Palavra de Deus e o agir de Deus no mundo.
Bento XVI ressaltou que
toda a dramaticidade deste tema é iluminado nos escritos de São Paulo, quando ele
diz que é necessário transcender a letra, pois a letra mata, e o Espírito dá vida,
vivifica, e dá liberdade. Mas também aqui, sublinhou o papa, é preciso ler São Paulo
na sua inteireza. E explicou:
“O Espírito libertador não é simplesmente a própria
idéia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor
que nos indica a estrada. Com a palavra sobre o Espírito e sobre a liberdade se abre
um vasto horizonte, mas, ao mesmo tempo, se põe um claro limite ao arbítrio e à subjetividade,
um limite que obriga de maneira inequívoca o indivíduo, como a comunidade, e cria
um laço superior ao da letra do texto: o ligame da inteligência e do amor... Esta
tensão entre o ligame e a liberdade... apresenta-se à nossa geração como um desafio
face aos dois pólos que são, de um lado, o arbitrário subjetivo, do outro, o fanatismo
fundamentalista. Se a cultura européia de hoje compreendesse a liberdade como ausência
total de laços, seria fatal e favoreceria inevitavelmente o fanatismo e o arbítrio.
A ausência de laços e o arbitrário não são a liberdade, mas a sua destruição”.
Sempre
tendo presente o “ora et labora”, reza e trabalha, de São Bento, o papa partiu, então,
para o segundo termo do lema: o “labora”, o trabalha. Bento XVI explicou que no mundo
grego, o trabalho físico era considerado como coisa de escravo, pois na concepção
grega, o sábio, o homem verdadeiramente livre se consagrava unicamente às coisas do
espírito. Mas a tradição judaica, seguida pelo monaquismo, era bem diferente: Deus,
vivo e verdadeiro, é também o Criador: sujou as mãos com a criação da matéria. Deus
trabalha e continua a agir na e sobre a história dos homens. Ele entra como Pessoa
na gestação laboriosa da história. Deus é o criador do mundo e a criação ainda não
está acabada; a semelhança do homem com Deus está justamente aqui, em ser co-artífice
do mundo com Deus.
O papa partira da consideração que o monaquismo era um “procurar
Deus”, numa atitude verdadeiramente filosófica que consiste em olhar para além das
realidades penúltimas e colocar-se à busca das realidade últimas, que são verdadeiras.
E para que esta busca seja possível é necessário que exista num primeiro tempo, num
primeiro momento, um movimento interior que suscita não somente a vontade de procurar,
mas que torna também crível o fato que nesta Palavra se encontra um caminho de vida,
no qual Deus vai ao encontro do homem para permitir que o homem vá ao Seu encontro.
Noutras palavras, é necessário o anúncio aberto da Palavra, que não pode ser entendido
como propaganda: a fé deve ser comunicada aos outros; o Deus em quem acreditamos,
uno e verdadeiro revelou-se no decorrer da história de Israel e, ultimamente, em seu
Filho, dando, assim, a resposta aos problemas do homem e do mundo.
O papa
concluiu o seu denso discurso ao mundo da cultura francesa indicando a pregação de
São Paulo no Areópago de Atenas onde os sábios formavam como que um tribunal competente
em matéria de religião e se opunham à intrusão de divindades estrangeiras: Paulo diz
a este tribunal: “percorrendo a cidade e considerando os objetos do vosso culto, encontrei
também um altar com esta inscrição: «Ao Deus desconhecido». O que adorais sem o conhecer,
eu vo-lo anuncio”. “Paulo, disse Bento XVI, não anuncia deuses desconhecidos. O anúncio
d’Aquele que os homens ignoram, mas que conhecem: é este Desconhecido-Conhecido que
os homens procuram. E se nós não anunciamos o Deus Desconhecido-Conhecido, a razão
humana não pode desabrochar plenamente e descobrir que Ele mesmo se revelou. Vejamos
como o papa cocluiu a sua reflexão:
“A situação atual é diferente da que Paulo
encontrou em Atenas, mas, apesar da diferença, em muitos pontos ela é também muito
análoga: Nossas cidades não estão mais cheias de altares e de imagens que representam
diversas divindades. Para muitos, Deus se tornou realmente o grande Desconhecido.
Mas como então atrás das numerosas imagens dos deuses estava escondida e presente
a demanda do Deus desconhecido, assim também a atual ausência de Deus é tacitamente
atormentada pela demanda que se refere a Ele. Procurar Deus e deixar-se encontrar
por Ele: isto não é menos necessário hoje do que no passado. Uma cultura meramente
positivista que relegasse ao campo subjetivo como não científica a pesquisa acerca
de Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais altas
e, portanto, uma derrota do humanismo com conseqüências graves”. (PL)