VISITA HISTÓRICA DE BENTO XVI À ONU: DIREITOS HUMANOS DEVEM FUNDAMENTAR-SE NA RAZÃO
NATURAL
Nova York, 18 abr (RV) - A viagem apostólica internacional de Bento XVI aos
EUA chega hoje a seu quarto dia. O Santo Padre iniciou as suas atividades celebrando
esta manhã, de forma privada, às 6h45 locais, a santa missa na capela da nunciatura
apostólica, em Washington.
Às 8h locais, o pontífice deixou a nunciatura transferindo-se
para o aeroporto militar da capital estadunidense, de onde partiu com destino a Nova
York, segunda e última etapa de sua viagem aos EUA. Às 10h45, Bento XVI chegou à ONU
para o esperado encontro na sede do organismo internacional.
Bento XVI foi
calorosamente recebido na entrada da ONU pelo secretário-geral, Ban Ki-moon, e pelo
presidente da Assembléia Geral, Kerim Srgjan. Após um encontro privado com o secretário-geral,
o Santo Padre se dirigiu à sala da Assembléia Geral, onde se encontrou com os representantes
das Nações Unidas.
Ao dar as boas-vindas ao Santo Padre, Ban Ki-moon disse
que o organismo é "uma instituição laica, com seis línguas oficiais, mas nenhuma religião
oficial. Não temos uma capela, mas uma sala de meditação".
Em seguida, recordou
as palavras do próprio papa sobre o terrível desafio da pobreza, sobre a não-proliferação
dos armamentos nucleares e sobre o caminho rumo ao desarmamento, ressaltando assim
a consonância que existe entre as posições da Santa Sé e as da ONU. Segundo Ban Ki-moon,
ambas seguem "o princípio segundo o qual aqueles que têm um poder maior não o devem
utilizar para violar os direitos humanos de outros".
Ban Ki-moon recordou também
o compromisso de Bento XVI em favor do meio ambiente e de seus apelos em favor do
diálogo entre religiões e culturas. "Santidade, esses são os objetivos que temos em
comum e somos gratos por suas orações, ao mesmo tempo em que procedemos em nosso caminho
para realizá-los", concluiu.
O papa se dirigiu ao presidente da Assembléia,
Kerim Srgjan, e ao secretário-geral, Ban Ki-moon, agradecendo pelas palavras de boas-vindas
e pelo convite de visitar a sede da ONU. Saudou ainda os embaixadores e os diplomatas
dos Estados-membros e todos os presentes.
Logo depois, o papa propôs as suas
reflexões sobre a finalidade e a missão da ONU. Espera-se dessa instituição, disse
o pontífice, que leve avante a inspiração que guiou a sua fundação, ou seja, de ser
um "centro para a harmonização dos atos das nações no perseguir os fins comuns", como
a paz e o desenvolvimento.
Como o papa João Paulo II disse em 1995, a organização
deveria ser "centro moral, na qual todas as nações do mundo se sintam em sua casa,
desenvolvendo a consciência comum de ser, por assim dizer, uma 'família de nações'".
Bento
XVI recordou os princípios fundadores da organização: o desejo de paz, a busca da
justiça, o respeito pela dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e assistência.
Esses princípios, disse, expressam as justas aspirações do espírito humano e constituem
os ideais que deveriam ser subjacentes às relações internacionais.
Como os
meus predecessores Paulo VI e João Paulo II observaram aqui mesmo, trata-se de temas
que a Igreja Católica e a Santa Sé acompanham com atenção e com interesse, porque
vêem que problemas e conflitos concernentes à comunidade mundial podem ser sujeitos
a uma regulamentação comum.
As Nações Unidas encarnam a aspiração a "um grau
superior de orientação internacional", inspirado e governado pelo princípio da subsidiariedade
e, portanto, capaz de responder às perguntas da família humana mediante regras internacionais
vinculadoras e através de estruturas capazes de harmonizar o cotidiano desdobramento
da vida dos povos.
Isso é ainda mais necessário num tempo em que experimentamos
o paradoxo de um consenso multilateral que continua em crise por causa da sua subordinação
às decisões de poucos, ao mesmo tempo em que os problemas do mundo exigem intervenções
na forma de ação coletiva por parte da comunidade internacional.
O papa ressaltou
a necessidade de que todos os responsáveis internacionais ajam conjuntamente e demonstrem
uma prontidão em atuar em boa fé, no respeito da lei e na promoção da solidariedade
em relação às regiões mais remotas do planeta. Penso de modo particular nos países
da África e de outras partes do mundo, que permanecem à margem de um autêntico desenvolvimento
integral e, por isso, correm o risco de experimentar somente os efeitos negativos
da globalização.
No contexto das relações internacionais, é necessário reconhecer
o papel superior que desempenham as regras e as estruturas intrinsecamente ordenadas
a promover o bem comum e, portanto, a defender a liberdade humana. Tais regras não
limitam a liberdade; pelo contrário, a promovem, quando proíbem comportamentos e atos
que atuam contra o bem comum, criam obstáculo para o seu efetivo exercício e, por
isso, comprometem a dignidade de toda pessoa humana.
Em nome da liberdade,
deve existir uma correlação entre direitos e deveres, com a qual toda pessoa é chamada
a assumir a responsabilidade das próprias escolhas, feitas conseqüentemente ao entrar
em relação com os outros.
Outro aspecto importante que o papa ressaltou diz
respeito ao modo como foram aplicados por vezes os resultados das descobertas da pesquisa
científica e tecnológica.
Apesar dos enormes benefícios que a humanidade pode
adquirir delas, alguns aspectos de tal aplicação representam uma clara violação da
ordem da criação, a ponto de não somente contradizer o caráter sagrado da vida, mas
a própria pessoa humana e a família serem despojadas de sua identidade natural.
Do
mesmo modo, prosseguiu Bento XVI, a ação internacional voltada a preservar o meio
ambiente e a proteger as várias formas de vida sobre a terra não deve garantir somente
um uso racional da tecnologia e da ciência, mas deve também redescobrir a autêntica
imagem da criação. Isso jamais requer uma escolha a ser feita entre ciência e ética:
trata-se, sobretudo, de adotar um método científico que seja verdadeiramente respeitoso
dos imperativos éticos.
Em seguida, Bento XVI destacou o tema do princípio
da subsidiariedade. A ajuda por parte da comunidade internacional não significa uma
limitação de soberania, exige diálogo e reconciliação, observou ele. Todo Estado tem
o dever primário de proteger a sua população de violações graves e contínuas dos direitos
humanos, bem como das conseqüências de crises humanitárias, provocadas tanto pela
natureza quanto pelo homem.
Se os Estados não são capazes de garantir análoga
proteção, a comunidade internacional deve intervir com os meios jurídicos previstos
pela Carta das Nações Unidas e por outros instrumentos internacionais. A ação da comunidade
internacional e de suas instituições jamais deve ser interpretada como uma imposição
indesejada e uma limitação de soberania.
Pelo contrário, observou o Santo Padre,
é a indiferença ou a falta de intervenção que produzem dano real. Aquilo que é necessário
é uma busca mais profunda de modos de prevenir e controlar os conflitos, explorando
todo possível caminho diplomático e dando atenção e encorajamento aos mais sutis sinais
de diálogo ou de desejo de reconciliação.
Outro tema importante do discurso
do Santo Padre aos representantes das nações foi a importância da justa visão da pessoa
humana. Tal princípio deve invocar a idéia da pessoa como imagem do Criador, o desejo
de uma absoluta e essencial liberdade.
Como sabemos, frisou o papa, a fundação
da ONU coincide com a profunda rejeição experimentada pela humanidade quando foi abandonada
a referência ao significado da transcendência e da razão natural e, conseqüentemente,
foram gravemente violadas a liberdade e a dignidade do homem.
Quando isso acontece,
estão ameaçados os fundamentos objetivos dos valores que inspiram e governam a ordem
internacional e estão ameaçadas as bases daqueles princípios congênitos e invioláveis
formulados e consolidados pelas Nações Unidas. A referência à dignidade humana
conduz ao tema sobre o qual fomos convidados a concentrar-nos este ano, que marca
os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Reconhecer o fundamento religioso
é necessário por sua universalidade e para salvaguardar os direitos, apesar dos contextos
sociopolíticos particulares contrastantes.
O documento foi o resultado de uma
convergência de tradições religiosas e culturais, todas motivadas pelo desejo comum
de colocar a pessoa humana no centro de instituições, leis e intervenções da sociedade
e de considerar a pessoa humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da
ciência.
Os direitos humanos são sempre mais apresentados como linguagem comum
e substrato ético das relações internacionais. Ao mesmo tempo, a universalidade, a
indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos servem como garantias para
a salvaguarda da dignidade humana.
Todavia, observou Bento XVI, é evidente
que os direitos reconhecidos e delineados na Declaração se aplicam a cada um em virtude
da origem comum da pessoa, a qual permanece sendo o ponto mais alto do desígnio criador
de Deus para o mundo e para a história. Tais direitos estão baseados na lei natural
inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações.
Remover
os direitos humanos desse contexto significaria restringir o seu âmbito e ceder a
uma concepção relativista, segundo a qual o significado e a interpretação dos direitos
poderiam variar e a sua universalidade seria negada em nome de contextos culturais,
políticos, sociais e até mesmo religiosos diferentes. Entretanto, continuou o papa,
não se deve permitir que tal ampla variedade de pontos de vista obscureça o fato de
que não somente os direitos são universais, mas o é também a pessoa humana, sujeito
desses direitos.
A vida da comunidade mostra claramente que o respeito pelos
direitos e as garantias que lhe são próprias são as medidas do bem comum, que servem
para avaliar a relação entre justiça e injustiça, desenvolvimento e pobreza, segurança
e conflito.
A promoção dos direitos humanos permanece sendo a estratégia mais
eficaz para eliminar as desigualdades entre países e grupos sociais, bem como para
um aumento da segurança. O bem comum que os direitos humanos ajudam a alcançar não
se pode realizar simplesmente com a aplicação de procedimentos corretos e nem mesmo
diante de um simples equilíbrio entre direitos contrastantes, observou o pontífice.
O
mérito da Declaração Universal é ter permitido a diferentes culturas, expressões jurídicas
e modelos institucionais convergir em torno de um núcleo fundamental de valores e,
portanto, de direitos.
Bento XVI prosseguiu dizendo que hoje, porém, é necessário
redobrar os esforços diante das pressões para reinterpretar os fundamentos da Declaração
e comprometer a sua unidade íntima, de modo a facilitar um distanciamento da proteção
da dignidade humana para satisfazer simples interesses, muitas vezes interesses particulares.
A
Declaração foi adotada como "concepção comum a ser perseguida" (preâmbulo) e não pode
ser aplicada por partes separadas, segundo tendências ou escolhas seletivas que correm
simplesmente o risco de contradizer a unidade da pessoa humana.
Quando são
apresentados simplesmente em termos de legalidade, os direitos correm o risco de se
tornar frágeis proposições separadas da dimensão ética e racional, que é o seu fundamento
e finalidade.
Pelo contrário, a Declaração Universal reforçou a convicção de
que o respeito pelos direitos humanos está radicado principalmente na justiça, que
não muda, na qual se baseia também a força vinculadora das proclamações internacionais.
Tal aspecto é muitas vezes não observado quando se tenta privar os direitos da sua
verdadeira função em nome de uma estéril perspectiva utilitarista.
Bento XVI
ressaltou o desafio do discernimento, isto é, a capacidade de distinguir o bem do
mal. Confiar o discernimento de modo exclusivo aos Estados singularmente pode, por
vezes, ter conseqüências que excluem a possibilidade de uma ordem social respeitosa
da dignidade e dos direitos da pessoa.
As Nações Unidas, disse o Santo Padre,
podem contar com os resultados do diálogo entre religiões e usufruir da disponibilidade
dos fiéis de colocar as suas experiências a serviço do bem comum. A sua tarefa é propor
uma visão da fé não em termos de intolerância, de discriminação e de conflito, mas
em termos de respeito total da verdade, da consciência, dos direitos e da reconciliação.
Obviamente,
os direitos humanos devem incluir o direito à liberdade religiosa, inclusive como
expressão de uma dimensão que é, ao mesmo tempo, individual e comunitária, uma visão
que manifesta a unidade da pessoa, embora distinguindo claramente entre a dimensão
de cidadão e a de fiel.
O Santo Padre concluiu seu denso discurso afirmando
que as Nações Unidas permanecem sendo um lugar privilegiado no qual a Igreja está
comprometida a levar a sua experiência "em humanidade", desenvolvida ao longo dos
séculos entre povos de todas as raças e culturas, e a colocá-la à disposição de todos
os membros da comunidade internacional. (RL/BF)