2008-03-20 15:20:23

Páscoa, a festa do povo sacerdotal: há a ilusão que o futuro do homem «está exclusivamente nas suas mãos» - lamentou o Patriarca de Lisboa na homilia da Missa Crismal


(20/3/2008) No quadro das celebrações pascais esta é, de modo especial, a Festa da Igreja, Povo Sacerdotal. Um Povo que o Senhor escolheu, que gerou no seu sangue, guia como Bom Pastor, renova e faz crescer com a graça da Páscoa, continuamente actualizada pela força do Espírito Santo. Celebramos, hoje, essa poderosa acção da graça de Cristo ressuscitado e dos meios sacramentais, instrumentos da sua acção eficaz na Igreja.
Um dos mais graves erros da cultura contemporânea, marcada por uma visão do homem considerado auto-suficiente na sua auto-realização, é minimizar ou mesmo negar a necessidade que o homem tem da força de Deus para se realizar a si mesmo, na ilusão de que o futuro do homem está, exclusivamente, nas suas mãos, fruto do seu poder e engenho. Este demasiado optimismo humano pode penetrar na Igreja e nos critérios da acção pastoral, como se o crescimento do Reino de Deus, da Igreja como novo Povo de Deus, dependesse, sobretudo, da nossa acção humana, esquecendo o que o Senhor disse aos discípulos: “Sem Mim nada podereis”. Conceber a nossa acção pastoral a partir desta convicção, significa necessariamente conceber a nossa acção humana como caminho da acção do Espírito de Deus, e dar primazia aos meios sacramentais da graça, que hoje se nos impõem com a força da Acção Litúrgica.
2. Esta força criadora da Páscoa exprime a plenitude do poder sacerdotal de Jesus, morto e ressuscitado. Em Cristo toda a intervenção de Deus na história concentra-se no Seu poder sacerdotal, que Ele exerce na Igreja através da força do Seu Espírito que lhe comunica. O Espírito em acção é o Espírito de Cristo ressuscitado. Por isso, o Senhor é o único Sacerdote, porque basta a Sua capacidade de mediação entre Deus e os homens, e é o Sacerdote definitivo, porque a mediação que realiza é também entre o tempo e a eternidade, entre a Igreja peregrina e a Igreja escatológica.
A acção de Cristo ressuscitado na Igreja, através do Espírito, é tão forte e decisiva, que a une a Si, a faz participar da Sua plenitude sacerdotal, a identifica com Ele e com a Sua acção, tornando-a sacramento da Sua mediação salvífica para toda a humanidade. A maior dignidade dos cristãos é serem membros desse Povo Sacerdotal, unidos a Jesus Cristo sumo e eterno Sacerdote. Essa dignidade fora anunciada e prometida pelo profeta Isaías no texto que escutámos há pouco: “Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor e tereis o nome de ministros do nosso Deus” (Is. 61,6). Por isso, o Apocalipse pode proclamar essa promessa realizada, pondo em realce o mistério da Igreja: “Àquele que nos ama e pelo Seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, Seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos” (Apc. 1,6).
A Igreja é o fruto e a manifestação explícita da fecundidade sacerdotal de Cristo. Ele é a cabeça do Povo Sacerdotal. E para que este Povo seja sacerdotal, na expressão viva da sua fé, Cristo exerce continuamente essa primazia. Por isso, ele constitui Apóstolos, sacerdotes porque membros do Povo Sacerdotal, sacerdotes porque exercem, na pessoa de Cristo, o Seu poder sacerdotal em favor de todo o Povo. É uma interacção entre Cristo e a Igreja: não há Povo Sacerdotal sem a acção contínua de Cristo, Sumo Sacerdote, através do sacerdócio apostólico, a que chamamos sacerdócio ministerial; nem este tem sentido sem ser na Igreja e para a Igreja. Esta, na sua qualidade de Povo Sacerdotal, é o lugar da convergência e da sintonia entre o sacerdócio de todos os fiéis e o sacerdócio ministerial em que alguns fiéis foram investidos, para serviço de Jesus Cristo e bem de toda a Igreja. Neste dia em que tradicionalmente lembramos, de modo particular, os sacerdotes, devemos fazê-lo evocando todo o Povo Sacerdotal, pois o sacerdócio ministerial é, apenas, mais uma expressão da dignidade sacerdotal a que foi elevada toda a Igreja ao identificar-se com Cristo Sacerdote.
3. As celebrações pascais fazem-nos tomar consciência das expressões deste sacerdócio do Povo de Deus, com a mediação do sacerdócio ministerial, antes de mais, a Eucaristia. A paixão, morte e ressurreição são a grande expressão do sacerdócio de Cristo. Aí Ele foi sacerdote e vítima do sacrifício oferecido, oferente e oferta, louvor perfeito da humanidade devido a Deus nosso criador. Esta oferta de Cristo tornou-se perene, porque a Igreja pode oferecer, com Cristo, como Cristo Se oferece. Na Eucaristia, exprime-se plenamente o Cristo redentor: precisou de nos redimir, para com Ele podermos oferecer o Seu próprio sacrifício, actualizado por nós, na nossa dor, no nosso ardor pelo Reino de Deus, na nossa solidariedade e compaixão por todos os homens.
A Eucaristia é a expressão decisiva do Povo Sacerdotal: nela, a Igreja une-se ao seu Senhor, descobre-O sempre de novo como seu Pastor e Redentor. Porque oferece o mesmo sacrifício, identifica-se com Ele, torna-se o Seu corpo. Bento XVI afirma, citando Santo Agostinho: “O pão que vedes sobre o altar, santificado com a Palavra de Deus, é o Corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é Sangue de Cristo. Com estes (sinais), Cristo Senhor quis confiar-nos o seu Corpo e o seu Sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os receberdes bem, vós mesmos sois aquele que recebestes. Assim, tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo” .
Na Eucaristia, o Povo Sacerdotal vive a síntese e percebe a diferença na complementaridade entre o sacerdócio ministerial e a qualidade sacerdotal de toda a Igreja. Para nós sacerdotes, ela define o nosso ministério e proclama a nossa exigência de santidade e de fidelidade a Jesus Cristo de quem somos ministros e que tornamos presente na Sua oferta sacrificial e de louvor, e com a qual partilhamos o dom do pão repartido. Aprender a celebrar a Eucaristia, guiar, como pastor, todo o povo para celebrar cada vez melhor e identificar a nossa vida com Cristo, que tornamos presente, é desafio de toda a nossa vida.
4. Esta qualidade sacerdotal da Igreja exprime-se, depois, na celebração de todos os meios de graça, sacramentos e sacramentais, instrumentos da acção santificadora do Espírito de Cristo. O Povo Sacerdotal nasce, cresce, descobre a vida nova, caminha para a plenitude da Pátria Celeste, celebrando estes sinais sacramentais, que brotam da Páscoa de Jesus. Como esta celebração de hoje nos mostra, todos conduzem à Eucaristia, marcam o ritmo de um caminho de santidade e mantêm viva a esperança da glória celeste. Ao celebrá-los, acreditamos e afirmamos que a Igreja é obra do Espírito de Cristo e não apenas da nossa capacidade humana. Sobretudo nós, os sacerdotes, não podemos cair nessa confusão de considerarmos a eficácia do nosso ministério fruto das nossas acções humanas. Nunca esqueçamos a palavra do Senhor: “Sem Mim nada podeis fazer”.
A primeira destas realidades sacramentais é a Palavra de Deus, que nos pode fazer entrar na intimidade de Deus, escutando o Seu Verbo eterno. É importante o ministério do sacerdote conduzindo as pessoas e as comunidades nessa escuta da Palavra, que é prévia à celebração de todos os sacramentos e sacramentais. Isso exige de nós que vivamos da Palavra, que a escutemos com empenho e com fé, que nunca a anunciemos sem a ter escutado pessoalmente, que nunca a substituamos pela nossa simples palavra humana. Se escutarmos acuradamente a Palavra, não só presidiremos bem a todos os sacramentos, mas conduziremos todo o Povo Sacerdotal a descobrir a grandeza e a dignidade de os poder celebrar e, através deles, se identificar mais profundamente com Cristo, Seu Senhor.
5. É por isso que na celebração da Páscoa a Palavra é rainha; com a eficácia do Verbo criador, realiza eficazmente a salvação que anuncia, de modo particular os sacramentos da iniciação cristã: o Baptismo, a Confirmação, a Eucaristia. Chamamos-lhe de iniciação cristã, porque realizam a consagração e a identificação com Cristo, ponto de partida permanente da fidelidade cristã. Eles afirmam a Eucaristia como a plenitude de todos os dons, de toda a acção do Espírito; para ela convergem, os dons de Deus e o nosso esforço de fidelidade na busca da salvação. A Eucaristia é a plenitude da iniciação cristã .
A nossa Diocese tem vindo, há vários meses, a preparar um documento que nos ajude a repor a nossa acção pastoral nesta perspectiva sobrenatural da edificação da Igreja, através dos sacramentos e começámos, exactamente, pela iniciação cristã. Ao longo dos séculos, nas diversas adaptações pastorais, nem sempre se salvaguardou esta centralidade dos sacramentos da iniciação, que preparam e encaminham para a Eucaristia. Há um longo caminho a realizar, de catequese, de esclarecimento dos fiéis, mas com a firmeza da verdade e orientados pelo Magistério da Igreja, expresso quer nos preceitos canónicos, quer nas orientações litúrgicas. Todos sabemos que isto depende muito dos sacerdotes, da sua obediência pastoral, da humildade de não impor a sua maneira de ver, tantas vezes pragmática, à orientação da Igreja. Todos em conjunto, em presbitério, do mesmo modo que procuramos o melhor caminho, havemos de, todos unidos, percorrê-lo, na certeza de que só assim seremos dignos ministros de Jesus Cristo, para bem de todo o Povo Sacerdotal.
Sé Patriarcal, 20 de Março de 2008
D. JOSÉ POLICARPO, Cardeal-Patriarca de Lisboa








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