2007-11-20 13:22:27

BISPO DO PORTO, ENTREVISTADO PELA RÁDIO VATICANO
A 10.11.07, NA CONCLUSÃO DA VISITA AD LIMINA


Pacheco Gonçalves [P.G] RealAudioMP3 – Ao concluir esta intensa semana de visita à Sede de Pedro e ao Santo Padre, quais são, senhor D. Manuel Clemente, as suas impressões e reflexões?
D. Manuel Clemente [D.M.C]. – Em termos de “impressões”: excelentes! A começar pelas climatéricas: tivemos aqui um Outono romano brilhante, esplendoroso mesmo, e isso também ajudou com certeza a sentirmo-nos cá muito bem. Depois, pelo acolhimento que tivemos nos diversos locais onde nos dirigimos, onde conversámos e onde fomos passando. Também nas casas em que ficámos, com uma menção muito particular para o Colégio Português em Roma, que foi inexcedível na sua simpatia, no seu acolhimento. As “reflexões”, também assim em termos genéricos, vão no próprio sentido de uma “visita ad limina”, ou seja, de nos encontrarmos - nós, bispos de diversas dioceses (portuguesas, no caso) – com este centro da vida católica, onde as questões particulares são de algum modo alargadas nas questões gerais da Igreja, e por isso podemos também aferir aquilo que andamos a pensar e a fazer com aquelas que são as grandes linhas da Igreja universal, neste momento.

P.G. – No encontro conclusivo, em conjunto, com o Santo Padre [sábado, 10 de Novembro], tiveram ocasião de ouvir a sua palavra de interpelação, encorajamento, exortação. Do discurso do Papa, o que é que mais ressalta?
D.M.C. – Da parte do Papa Bento XVI há uma grande insistência – que não é, obviamente, desta visita só, mas desde o princípio do seu pontificado – naquilo a que nós poderíamos chamar o realismo cristológico e eclesiológico. Ou seja, na realidade-Jesus Cristo, como única realidade que explica a vida da Igreja, e depois na realidade da Igreja como manifestação de Jesus Cristo no mundo. E esta insistência do Papa, que nós já conhecemos desde a sua primeira Encíclica, para não falar do seu primeiro discurso, da sua primeira homilia, depois da eleição, também aqui apareceu. O que leva a uma outra questão, que é aquela que todos nós temos entre mãos, com certeza, nas nossas dioceses em Portugal, e na nossa do Porto em particular, que é a da reconfiguração, da redefinição da comunidade cristã. Ou seja, se a realidade fundamental que a Igreja tem para si, tem para apresentar, é Cristo, Cristo vivo. Se essa realidade de Cristo se manifesta naquilo que o apóstolo Paulo já chamava de “corpo de Cristo, que é a Igreja”, então como é que, em cada comunidade cristã, qualquer pessoa pode ter o contacto vivo com Cristo vivo.
No discurso que nos fez, o Papa voltou a citar aquilo que diz também na sua primeira Encíclica, isto é, que “no princípio de qualquer caminho cristão, não há uma ideia, não há uma abstracção, mas há uma experiência, e a experiência é o encontro com Cristo vivo, através da Igreja, que é o Seu corpo. Ora bem: como é que nós, em cada comunidade cristã, podemos proporcionar tal experiência? O Papa volta a retomar este tema, e ainda bem que o retomou. Eu julgo que é este o grande problema, tanto pastoral como doutrinal. Tive ocasião, na visita particular que fiz como Bispo do Porto, com os senhores Bispos Auxiliares, ao Santo Padre, na passada quinta-feira [8 de Novembro], de também levar a conversa (e ele deixou-a levar, de bom grado) para este ponto da reconfiguração, da redefinição, da comunidade cristã. Porque nós sabemos que hoje em dia as mediações tradicionais da fé, que eram a família e a paróquia – mas uma paróquia muito definida, territorialmente aconchegada, diria mesmo – isto hoje há não é bem assim. As famílias, enfim, fazem o que podem, e muitas delas fazem muito, mas em muitos casos elas já não servem de mediação desta fé no Cristo vivo, que nelas se sinta presente. E nas nossas paróquias - também percorridas por gente das mais diversas proveniências, que hoje está e daqui a um ano já não está, porque mudou de sítio, porque mudou de profissão – também se põem problemas graves: como é que elas podem transmitir essa tal experiência de Cristo vivo que, como diz o Papa, está no fundamento de qualquer caminho de fé. Bem, este é um problema que nós temos entre mãos. Repito: é um problema pastoral, porque tem a ver com aquilo que nós fazemos, como é que nós organizamos os nossos esforços e as nossas tentativas. Mas também é um problema doutrinal, porque sem experiência comunitária, não há experiência do Deus de Jesus Cristo - um Deus uno e trino, que portanto só na comunidade se apanha.

P.G. – Emergem em todas as suas considerações, a sua sensibilidade e preocupação de pastor, de bispo. Concretamente, desde Março passado, de Bispo do Porto. Um período de quase oito meses, ocupados antes de mais em tomar contacto, ouvir as pessoas, conhecer a realidade local. Passado este período, que “retrato” da diocese se vai delineando no seu espírito? E ainda: parece-lhe possível esboçar desde já algumas perspectivas de acção para a diocese, no seu conjunto?
D.M.C. – Com certeza! Eu dizia, na minha apresentação à diocese do Porto, que a procuraria “conhecer, amar e servir”. Esse conhecimento, vou-o fazendo: dediquei-me, dedico-me a ele, quotidianamente. Lembro-me que a seguir à Páscoa e até ao Verão percorri uma a uma as 34 vigararias da diocese, no sentido de me reunir com os respectivos párocos, o que foi extremamente importante, quer para mim, quer – julgo eu – também para eles, porque nos conhecemos pessoalmente. Cada um deles disse o que era a sua paróquia, ou melhor dizendo as suas paróquias, que é o caso mais comum: como é que elas se caracterizam, quer sociologicamente, quer pastoralmente. Estes contactos foram depois complementados por contactos pessoais das mais diversas instâncias: pessoas que estão ligadas à vida social, como à vida universitária, à vida cultural e económica, da região do Porto, já não especificamente em termos de diocese. Depois, também o contacto com as pessoas que me procuraram e que eu mesmo vou encontrando (ando muito a pé pela cidade, e isso proporciona, de maneira inesperada, muitos encontros…). Tudo isso vai dando uma ideia. Além daquelas que são as minhas visitas habituais, semanais, às várias comunidades cristãs, por motivo do sacramento do Crisma ou por outros motivos. E então o que é que poderei dizer, para já, da diocese do Porto? Para já, que é uma realidade muito densa, muito densa. O que é que quero dizer com isto? Que não é linear. É muito compacta, de variadíssimas combinações. E tem um laicado fortíssimo. Eu reparo que são milhares as pessoas que na diocese do Porto, quer no que diz respeito à Palavra – concretamente ao serviço da catequese, quer no que diz respeito à liturgia – desde a música até ao serviço do altar, quer no que diz respeito à caridade – o que nós temos de obra social na diocese do Porto é imenso! – e também as conferências vicentinas. São milhares de pessoas que semanalmente praticam o cristianismo e integram a actividade da Igreja nestes três factores fundamentais da Palavra, da Liturgia e da Caridade. Portanto, é uma realidade – repito o adjectivo – extraordinariamente densa. É uma realidade que nalguns casos já implica e manifesta uma formação específica muito grande. Reparo isso particularmente no campo da liturgia, do canto e da música. É uma coisa espantosa! Eu não sei se encontraremos por esta nossa Europa fora o que encontramos na diocese do Porto, certamente fruto de muito trabalho, ao longo de décadas, na formação destes agentes pastorais – chamemos-lhes assim – no campo da liturgia e da música sacra; mas também nos outros campos, na catequese, com certeza. Muita gente com alguma formação teológica, às vezes até com uma formação teológica razoável, mesmo entre o laicado, quer em Teologia, quer em Ciências Religiosas. É uma diocese que, em termos de organizações, de associações laicais, se contam pelas muitíssimas dezenas, aos diversos níveis, quer locais, quer diocesanos, quer de movimentos e associações, que extravasam a vida da diocese, mas estão lá presentes. É uma diocese que tem um clero que eu chamo heróico… porque é escasso para as necessidades. Já disse que o mais vulgar é que os párocos sejam párocos de mais do que uma paróquia, às vezes grandes paróquias. Em muitos casos já com uma idade que ultrapassa os 70 anos e até os 80 (temos na diocese do Porto párocos na casa dos 90!). É por isso que eu sublinho este adjectivo “heróico”. É um clero que desenvolve, com uma generosidade imensa, uma actividade de acompanhamento básico e sacramental da vida do povo de Deus. Mas que tem que ser necessariamente mais ajudado, mais apoiado, e – enfim – com a ajuda de Deus, especialmente, mais completado, em número, nos tempos que aí vêm. Portanto, é uma diocese que tem todas estas realidades em si, que eu intitulei como “densa”, mas que tem muitas outras linhas de envolvimento. No que diz respeito ao clero – quer em termos de presbíteros, de sacerdotes, quer em termos de diaconado permanente (agora renovou-se a respectiva formação – tem que ser muito, muito reforçado, porque as perspectivas quantitativas não são muito animadoras para os próximos anos, como sabemos. Nós temos neste momento uns 24 ou 25 seminaristas, no Seminário Maior, para os próximos sete anos. Ora nos próximos sete anos, atendendo à idade que tem o clero, possivelmente deixarão de poder trabalhar uns 30, 40, 50?… - não sabemos. O que é uma grande desproporção. Temos a ajuda, preciosa, do clero religioso, mas temos que trabalhar muito nisso. Como também em relação às vocações religiosas, porque a vida religiosa feminina, em concreto na nossa diocese, também tem este grande desafio do seu rejuvenescimento. Já tenho tido várias entrevistas com superioras religiosas que me vêm dizer que bem gostariam de desenvolver mais trabalho, mas, pelo contrário, têm é que fechar casas, comunidades, porque já não têm religiosas em número suficiente. Ora esta componente da vida religiosa é fundamental para uma diocese, porque elas têm um potencial carismático sem o qual a Igreja não viveria bem. Portanto, muito trabalho! Nas famílias, no apoio à famílias. Nós temos também, na diocese do Porto, aquilo que eu julgo que não tem muita comparação fora do Porto, com todo o respeito pelo que se faz noutros sítios: temos cerca de 40 centros diocesanos de preparação para o matrimónio, na diocese, espalhados por várias vigararias, e que fazem um trabalho, muito muito consistente, ao longo do ano, na formação dos novos casais. É preciso que seja depois complementado no acompanhamento dos casais já constituídos das famílias, quer em relação à sua própria consistência - a manutenção da vida conjugal, quer em relação à educação dos filhos, quer em relação a um acompanhamento dos familiares idosos, que é hoje uma problemática imensa, que também precisa de ser muito apoiada, essa realidade familiar. Portanto, trabalho não falta, graças a Deus…
  P.G. – O Senhor Bispo tem vindo a publicar “Notas episcopais” a propósito de diversas ocorrências: a assistência hospitalar, a padroeira da diocese, o aniversário da visita de João Paulo II e respectiva intervenção sobre a dignidade do trabalho e do trabalhador… Dir-se-ia que o senhor D. Manuel privilegia este tipo de comunicação: simples, breve, directa, muito concreta, a propósito de alguma coisa. Isto tem a ver com, digamos, uma “estratégia” de comunicação?
D.M.C. – “Tem, tem que ver com uma “estratégia”, se a quiser chamar assim. Tem a ver sobretudo com uma convicção, ou seja: a sociedade, a cultura que nós integramos, não tem muito tempo nem muita disponibilidade para absorção de documentos longos, e muito menos se não tiverem uma relação imediata com a actualidade. Nós sabemos que é assim, é um traço característico da nossa cultura e da nossa sociedade. Eu próprio gostaria, e gosto, de ler documentos longos (estou-me a lembrar dos tempos do Papa João Paulo II – as suas Encíclicas ou Exortações Apostólicas, que às vezes tinham diversas dezenas de páginas), mas todos nós sabemos que é difícil, porque com o ritmo do dia a dia, um documento longo, o que é que lhe acontece? Acontece que fica de lado, à espera de oportunidade, e depois a oportunidade não surge, porque imediatamente se coloca por cima deles mais outros tantos que chegaram. Portanto, hoje em dia eu julgo que, se quisermos ter assim um diálogo inspirador – evangélico, no caso – com a sociedade, temos que estar muito atentos ao acontecimento, à efeméride, As pessoas são muito sensíveis às efemérides. Mesmo quando não se lembram delas, se nós as realçamos, depois facilmente aderem. Por isso eu tenho este propósito, que de alguma maneira já tenho exercitado uma meia dúzia de vezes desde que entrei na diocese, de aproveitar ou um acontecimento que ocorreu e que importa relembrar, ou qualquer coisa que acontece, para fazer uma curta iluminação que eu procuro que seja evangélica, ou seja: o que é que, como cristãos, temos a dizer em relação a isso; ou o que é que, como diocese, vamos fazer a partir daqui. E já sei que, se ultrapasso muito as 2-3 páginas, acontece o tal caso que eu temia: fica de lado à espera de tempo, e depois nunca mais vem o tempo. Eu julgo que isso é uma constante da cultura contemporânea, e é nesse sentido que eu me procuro também adaptar”.

P.G. – Ainda neste campo da comunicação. É bem conhecida a presença televisiva, semanal, do Senhor D. Manuel Clemente. Isso fez com que muita gente, na diocese do Porto, o conhecesse já [antes da sua vinda para o Porto], e o apreciasse muito. Creio que tem conseguido, apesar de tudo, prosseguir esta sua intervenção nesse programa religioso da Igreja. Como é que vive esta actividade, como é que a situa no conjunto da sua missão episcopal?
D. M. C. – “Eu julgo que hoje a missão da Igreja em geral, e dos Bispos em particular, é prioritariamente uma missão de evangelização. Todos nós, bispos e padres, concretamente os párocos, sabemos muito bem que, se não temos cuidado, somos completamente absorvidos pela administração corrente das coisas da Igreja, das coisas eclesiásticas. Mas isso seria um grande mal, seria um enorme mal, de péssimas consequências em termos de evangelização, que é a nossa primeira obrigação. Eu creio que todos nós, que somos pastores da Igreja, a nossa vocação, o chamamento que sentimos que a Igreja nos fez foi no sentido da evangelização. Isso tem que ser prioritário. Eu mantenho já há anos – na televisão já vai para 10 anos, porque começou em 98 – um pequeno apontamento semanal, como foi lembrado, que visa unicamente o quê? Visa… a catequese. Aquilo é catequese: são pequenos pontos de referência, ou em relação a santos (lembro-me que quando foi o ano do jubileu, em relação aos jubileus), depois em relação aos Papas do século XX (que depois foi até publicado em livro), quer em relação a outros tópicos, como agora tenho tratado. A rubrica chama-se actualmente “O passado do presente”, ou seja, acerca de qualquer coisa que estejamos a viver – um tempo litúrgico, um acontecimento : ver por que é que nós estamos a viver assim esse tempo, esse acontecimento. É de catequese que se trata. Mas - lá está! – pegando na actualidade, e iluminando-a, ilustrando-a, com a sua densidade evangélica e eclesial. É catequese! Eu acho que isso se insere prioritariamente na actividade de um bispo e, utilizando um grande meio de comunicação como é a televisão, que permite que qualquer pessoa possa aceder a ele. A mesma coisa digo em relação àquele programa semanal na Rádio Renascença, que é a propósito do Evangelho desse domingo: alguma iluminação para a vida das pessoas. Depois também a lembrança de algum documento do Magistério, que seja importante reter ou divulgar. E depois mais um pormenor ou outro. Quando nós vamos a números, no que diz respeito por exemplo a este programa da Rádio – não quer dizer que uma vez ou outra não tenha sido tentado a pôr uma pausa nisso!... – mas o que é certo é que chegamos a ser ouvido por cem mil pessoas. Disseram-me há tempos que 10 % delas são jovens entre os 18 e os 25 anos, ao domingo de manhã. Como é que nós podemos desperdiçar uma oportunidade destas para chegar até quem habitualmente não chegaríamos?! Porque nós não podemos esquecer que, mesmo numa diocese como o Porto, em que o censo de 2001 deu uma percentagem de praticantes de cerca de 20 %... Mas… os 80 % que não praticam?... Nós estamos para estes 20 % ou estamos para todos? A grande maioria são os que não praticam. Portanto, se eles não vêm à comunidade cristã, nós – e em particular o Bispo – tem que lhes chegar. E chega-lhes através da rádio e através da televisão. E é isso que me tem estimulado. E depois, em relação ao Porto, aconteceu uma coisa muito interessante: já estou a bater nos 60 anos, e nunca vivi no Porto… portanto, chego a uma realidade completamente nova em termos pessoais, mas não tão nova assim, porque é vulgaríssimo eu chegar às comunidades cristãs, ao sábado, ao domingo ou noutros dias de semana, e as pessoas imediatamente lidarem comigo como se me conhecessem há muito tempo. E realmente conhecem-me, semanalmente… Isso dá uma sintonia pessoal, que em termos pastorais, e para aquilo que eu julgo deve ser um bispo – o primeiro animador pastoral de uma diocese – deve ser, em termos pastorais, muito conveniente”.

P.G. – A propósito também de outra actividade que o prende algum tempo da semana, que é a questão do ensino. O Senhor D. Manuel tem conseguido ainda prosseguir a suas presença de professor na Universidade Católica. Aqui, por exemplo, na Itália, há o caso de alguns teólogos e professores universitários que entretanto foram nomeados Bispos e que têm conseguido prosseguir, de algum modo, certa actividade intelectual, pelo menos através de publicações regulares, o que supõe que continuam a dar tempo à investigação, ao estudo e à escrita. Aliás o próprio Santo Padre, com a publicação do “Jesus de Nazaret”… Segundo foi dito, “aproveita os tempos livres”… O que quer dizer que reserva uma parte do seu tempo diário ou semanal para escrever, para reflectir, para estudar… e publicar. No caso do Senhor D. Manuel Clemente, como situa esta sua actividade de professor, em relação à sua missão de Bispo?
D.M.C. – “Digamos que as motivações foram várias. Há um lastro, com certeza, que vem de trás: eu, neste momento, se não sou o professor mais antigo da Faculdade de Teologia, em Portugal, ando por aí perto. Porque comecei a leccionar em meados dos anos 70… e já vamos a aproximar-nos dos finais desta década. É, portanto, uma actividade lectiva de várias décadas já, e também com alguma passagem a escrito. Mas isso só por si não chegaria, devo dizer. O que foi – e é – determinante é a necessidade que eu sinto de a Igreja estar presente no mundo universitário. E sei, por experiência própria, como uma coisa é dizê-lo, outra coisa é estar lá. Ou seja, que é estimulante, para a vida universitária, e não só da Universidade Católica, mesmo para alguma presença esporádica nas universidades do Estado, ou outras (como tem acontecido no meu caso, até com provas universitárias ou com um ou outra conferência). O estar lá mostra que isso é muito importante para a vida da Igreja. Como estar noutros sectores da Pastoral, que eu procurarei desenvolver, sempre que isso me seja possível. Aliás, numa sociedade como a nossa, a sociedade portuguesa, que é uma sociedade laica, em que a maior parte das realidades não são confessionais, para estar é preciso também alguma habilitação académica, que no meu caso tenho, e por isso sou procurado, e devo aproveitar essa porta que me é aberta, para estar presente. Recordo-me, enfim, do saudoso Papa João Paulo II: até à sua vinda para Roma, em 1978, nunca deixou a sua actividade docente na Universidade de Lublin, apesar de ser cardeal e arcebispo de Cracóvia. Claro está que no meu caso é uma coisa extremamente reduzida, pouco mais do que simbólica: vou um dia por semana, às oito e meia da manhã, quando ainda não há qualquer outra espécie de encontro marcado, dar uma aula, única, de História da Igreja em Portugal (no caso). Mas isso é o suficiente para dizer, à Universidade Católica em particular, e ao mundo cultural do Porto em geral, que este sector, o sector da Cultura e o sector da Universidade é um sector prioritário para a evangelização e que, se qualquer um de nós, clérigo ou leigo que esteja habilitado a fazê-lo, não se deve dispensar de o fazer, porque esse é um meio fundamental, não só para a evangelização, mas também para a nova evangelização: utilizar aquilo que, em referência paulina, poderíamos dizer os novos areópagos.”

P.G. – Precisamente em relação a esse sector específico que é o da História – história da Igreja, mas também História em geral. Tanto quanto sei, o senhor D. Manuel dedicou uma parte do seu interesse, de estudo e investigação histórica, ao séc. XIX, com toda a sua complexidade, nomeadamente analisando a presença (e as ausências) dos homens da Igreja, leigos ou pastores, numa sociedade que aparecia como crescentemente hostial à Igreja e à fé católica. Teve (e tem), portanto, ocasião, com uma sua competência específica, de anotar e analisar o que é uma presença nova da igreja numa sociedade que já não é uma cristandade monolítica, em que, apesar de tudo, emergem algumas figuras que são capazes de abrir uma brecha e de tentar ao mesmo tempo, numa grande fidelidade à Igreja e à fé, um verdadeiro “diálogo” com o chamada “mundo moderno”, com outras perspectivas e outras abordagens, evitando aquele muro contra muro que radicaliza as duas posições. Em relação a toda esta problemática, ainda hoje tão actual, que se lhe oferece dizer?
 D. M. C. – “Mais uma vez faço referência àquilo que tem sido o meu percurso pessoal… enfim, como tentativa, naturalmente. Recordo-me que, quando acabei o meu curso – primeiro História, depois Teologia, e depois passei aqui um semestre em Roma à volta das questões da metodologia da História religiosa – eu punha a questão: dentro do campo da Teologia, o que é que é mais oportuno, o que é que é mais “interessante”, até (como já era sacerdote) em termos pastorais. E veio ao de cima esta temática da presença da Igreja no mundo contemporâneo. Ou seja: como é que uma estrutura tão larga, tão vasta e, em alguns casos, tão pesada, como é a da Igreja Católica, se adoptou ao mundo que deixou de ser o mundo confessional. Porque nós, até ao século XIX, no caso como o nosso em Portugal – mas, enfim, em todo o mundo latino de uma maneira geral, e não só – a estrutura da sociedade e da política coincidia, idealmente e em grande parte, com a estrutura eclesiástica propriamente dita. Ora, o que é próprio do mundo contemporâneo em que nós vivemos, é que não seja assim. Em que de algum modo se respeita melhor aquela distinção que o próprio Jesus fez entre o “dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus”.
E como é que esta mudança aconteceu? Aconteceu com muitos contrastes, com muitas polémicas, já no final do séc. XVIII, com a Revolução Francesa, e depois em todo o séc. XIX, com as Revoluções liberais, e o séc. XX com a secularização cada vez mais espessa. Por que é que eu utilizo o termo “espesso”? É porque se percebe que cada uma das realidades - sociais, políticas, culturais e até profissionais, da vida de todos os dias – se percebe que são domínios que não têm referência religiosa imediata. É por isso que são “espessos”, e às vezes até “opacos”, em relação ao sentido religioso. Isto é, digamos assim, de maneira muito tosca, o drama e a questão contemporânea, em termos de fé. Ora, houve católicos, houve crentes - quer clérigos quer leigos - que foram percebendo isto: que não anatematizaram rapidamente demais o mundo contemporâneo, mas, pelo contrário, começaram a perceber que era dentro destes próprios dinamismos do mundo moderno e contemporâneo que havia que apresentar a verdade evangélica. E isto levou-me a que, depois, nos meus trabalhos de doutoramento, me tivesse debruçado sobre a primeira tentativa, a primeira organização que em Portugal aconteceu, depois da implantação do Liberalismo, para reapresentar o cristianismo em termos aceitáveis por essa sociedade: por isso fiz uma tese sobre a “Sociedade Católica”, que é uma instituição dos anos 40 do século XIX. Depois debrucei-me sobre a segunda fase deste movimento católico contemporâneo, que tem uma grande radicação no Porto, e isto aproximou-me muito de figuras que foram meus… “pré-diocesanos”, sobretudo essa grande figura do Conde de Samodães, a partir dos anos 70 da Acção Católica. E depois veio até aos nossos dias, através da Acção Católica, nos anos 30, e agora tudo isto que são os Movimentos da presença laical na Igreja e no mundo, desde o Concílio Vaticano II até à actualidade. Portanto, esta é uma temática que me interessa profundamente, porque eu julgo que nela nós encontramos o melhor que se fez de reflexão e de prática católicas, no sentido de isso que disse: reapresentar a verdade evangélica numa sociedade que é muito diferente. E não digo que é pior, digo que é “diferente” daquela que existia no século XVIII”.

P.G. – Precisamente agora, nesta assembleia episcopal que fizeram aqui em Roma, houve uma referência às próximas celebrações do centenário da implantação da República em Portugal: desde já o episcopado se mostra atento e interessado em aprofundar a questão, aproveitando a ocasião para reflectir sobre o modo como a Igreja agiu e reagiu, e o que é que isso representa de interpelação para os tempos de hoje. Tem já alguma ideia a propósito de tudo isto?
D.M.C. – “Sim, sim, ideias, e até alguma coisa em concreto. Ou seja: em Portugal - que é assim, como país, com fronteiras definidas, o mais antiga da Europa – a memória tem muita importância. Conhecida ou não conhecida, quase geneticamente, a memória em Portugal tem muita importância. Cria quer conceito, quer preconceito, em relação seja ao que for. E nós temos agora, muito proximamente, o centenário da República. E só o formularmos isto, como acabou de fazer e eu agora repeti – “o centenário da República” – já levanta imediatamente, na memória das pessoas, mais ou menos erudita, reacções divergentes: ou de grande aceitação, ou de grande rejeição, muitas vezes em bloco. Aliás, muitas das questões que se puseram no princípio do séc. XX, à volta da República, em Portugal, ainda hoje estão aí… Basta abrir os jornais, ouvir as polémicas acerca da presença da Igreja na sociedade, acerca de qual é o papel que o Estado deve ter em relação à Igreja Católica, e mesmo [em relação] às outras confissões religiosas, em relação ao lugar que a Igreja e qualquer referência religiosa explícita deva ter na vida pública e até na vida política, enfim, tudo isto são questões que estão absolutamente na ordem do dia. Por isso eu acho – aliás como dizia o Presidente da Conferência Episcopal, D. Jorge Ortiga, na abertura desta Assembleia que tivemos – que é a altura de nós aproveitarmos para fazermos algum aprofundamento de ideias, de reflexões, e ver melhor o que é que esteve – e está – em causa, quando se fala da presença da Igreja na sociedade, em Portugal, nos últimos 100 anos - quase todos na República. Com serenidade, com distinção das coisas, com uma abordagem particularizada de cada acontecimento, de cada evento. Eu pertenço (até já fui director) ao Centro de Estudos de História religiosa na Universidade Católica Portuguesa, e nesse âmbito (para falar apenas nesse âmbito), há algumas iniciativas em curso, em colaboração com outras Universidades, não só nas comemorações oficiais do 5 de Outubro, na sua vertente cultural, quer até em publicações que se venham a fazer acerca do assunto. Portanto, não tornar a componente “Igreja”, nestas comemorações, assim num reduto específico, mas fazer uma partilha com outras instituições culturais portuguesas que também se interessam sobre o assunto (e todos nos devemos interessar). Não tanto numa perspectiva passadista – embora, com certeza, o passado tenha o seu lugar, e de que maneira! – mas também numa perspectiva actual e prospectiva - o tal “passado do presente” e em vistas do futuro: tentar deslindar o que é que esteve em causa, para melhor nos entendermos, como Igreja, numa sociedade secular e plural”.

P.G. – O senhor D. Manuel Clemente é também presidente da Comissão Episcopal da Cultura. O que acaba de dizer tem que ver precisamente com uma pastoral da cultura: com uma abordagem respeitosa e positiva dos fenómenos culturais, com toda a sua variedade e complexidade. Deste ponto de vista, o que é que pensa da actual situação, em Portugal?
D.M.C. – “O que eu penso, em termos culturais, é que existe persistência, alguma persistência, de coisas passadas, até de preconceitos, aquilo que nós ainda hoje notamos como algum laicismo, até com alguma dureza em termos da sua apresentação pública, alguma incompreensão do lugar da religião na sociedade… Bem, isso são questões que vêm do passado e que precisam de ser deslindadas, como eu dizia atrás. Aproveitemos então este centenário da República para o fazermos da melhor maneira. Depois, há uma certa falta de conhecimento. Isso tem a ver com certeza com a vida das pessoas, que hoje é muito atarefada, muito apressada, muito dispersa, também com um nível de escolaridade que ainda deixa muito a desejar em termos do que devia ser, mas em que precisamos de investir, precisamos de investir – repito – em termos modernos, com apontamentos às vezes breves, mais ou menos sugestivos, e em que se possa proporcionar às pessoas uma informação suficiente para depois elas poderem tomar posições culturais de uma maneira mais certa e mais séria. Depois também a presença, enfim, nos debates e naquilo que a nova evangelização exige. Para utilizar aquela formulação de João Paulo II – como a nova expressão e até novos métodos de apresentação da verdade evangélica.
No âmbito da Comissão Episcopal da Cultura – e concretamente do Secretariado nacional da Pastoral da Cultura (onde nós temos muito boa ocasião de aproveitar de um sacerdote muito culto e muito bem colocado no movimento cultural português, que é o padre José Tolentino), vamos fazendo o quê? Nós temos a preocupação de estabelecer uma rede, não só nas dioceses, mas também nas congregações religiosas e nas associações, de referentes culturais: pessoas que promovem actividades - nesses âmbitos que têm a ver com a evangelização da cultura e a evangelização na cultura – com esta nova linguagem, com estas novas expressões. Esta rede, nós vamo-la consolidando. Fazemos encontros periódicos com todos estes referentes diocesanos e de congregações e associações. Vamos a ver se conseguimos também ir estabelecendo uma rede de Centros culturais, nas diversas dioceses e outras realidades eclesiais onde este diálogo, este debate cultural se mantém e se incentiva.
Temos depois, também a atribuição anual de um Prémio da Cultura, da parte da Igreja. Já fizemos três atribuições, que tiveram o seu impacto: uma vez a um poeta, Fernando Echevarria; a segunda vez a um cientista, o padre Luís Archer; e agora a terceira, a um cineasta, o Manuel de Oliveira (a atribuição já foi feita; a entrega propriamente dita do Prémio será, se Deus quiser, no mês de Dezembro, na cidade do Porto). E isso tem um certo impacto porque é, da parte da Igreja (de uma instância da Conferência Episcopal Portuguesa), o reconhecimento da relevância, em termos de cultura e relação Evangelho-cultura, de uma personalidade e, em alguns casos, de uma carreira. E também temos feito, sempre no âmbito da Comissão Episcopal da Cultura, alguma reflexão – que procuramos que seja consistente – sobre realidades que julgamos dever ser atendidas.
 E a realidade a que nós nos dedicámos, durante dois-três anos, em reflexões, em debates, em encontros, é a dos tempos livres. Hoje em dia, como cultura comum, como mentalidade das pessoas, como expectativa geral, o tempo livre tem uma importância extraordinária! Só que põe, em termos evangélicos, uma outra questão: até que ponto o “tempo livre” representa uma libertação do tempo? Sobre este tema, nós vamos, dentro em breve, não só produzir, como publicar, o resultados destas nossas reflexões e debates ao longo de três anos, que serão apresentados à Igreja portuguesa e à sociedade portuguesa que queira também reflectir sobre este assunto. Devo dizer, aliás, que ainda ontem [sexta-feira, 9 de Novembro] tive aqui, em Roma, uma reunião com o Pontifício Conselho para a Cultura, com o seu novo responsável, Mons. Ravasi, e ele ficou até surpreendido, dizendo que é um tema da maior importância e que até aqui não tinha sido tratado, que ele soubesse, por outra realidade, por outra instituição congénere, a nível episcopal. É isso o que nós vamos fazer”.

P.G. - Atravessar os Palácios pontifícios para a visita ao Santo Padre e aos diferentes dicastérios leva a pensar na situação especial que ainda hoje assume a Sede Apostólica e a Cidade/Estado do Vaticano, com uma dimensão também diplomática, com certo poder, mesmo “político”, juntamente com a missão mais espiritual e evangélica que é própria da Igreja. Vão longe os tempos do “Papa-Rei”, imerso no jogo das políticas locais e internacionais como senhor dos Estados Pontifícios. Foram precisas dezenas de anos e a assinatura dos Tratados de Latrão para que se pudesse admitir que a perda do poder temporal acabava por favorecer o exercício da autêntica missão do Papa e da Igreja. Questões da máxima actualidade, que repõem a articulação de um “são laicismo” com uma intervenção livre, corajosa, “profética”, da Igreja. Como vê toda esta problemática, no concreto da situação histórica que vive a Europa e Portugal?

D.M.C. - “É uma questão vastíssima, que vai desde o Estado pontifício à presença da Igreja na sociedade e na política. Seria – e é, certamente – um tema que dá para uma enormíssima conversa, porque a Igreja Católica é, no mundo - todos os observadores o verificam – um caso, não digo “sui generis”, mas absolutamente único: não existe outra coisa assim, uma realidade religiosa que, como tal, tenha um centro tão activo, e esteja tão presente em todos os continentes, directa ou indirectamente, e também nas instâncias políticas, nacionais e internacionais. É um caso único, não temos mais nada assim. Se nós olharmos – sem sairmos aqui da nossa Europa ocidental – para todas as instituições que já tivemos e deixámos de ter, pois a única que sobra, com esta envergadura, com este tamanho e com esta duração, é a Igreja Católica. Isto tem a ver com uma verdade antes de mais teológica: na tradição católica do cristianismo (que como nós sabemos não esgota toda a tradição cristã), o papel que encontramos nos escritos do Novo Testamento, dado por Jesus a Pedro e desempenhado por Pedro, manteve-se e foi-se fortalecendo e definindo cada vez melhor ao longo dos séculos. Isto é: na perspectiva católica do cristianismo, além das realidades locais, das Igrejas, das comunidades, da vivência de cada um, das famílias, das paróquias, das dioceses, das ordens religiosas, há uma realidade conjunta que é protagonizada de maneira muito especial por Pedro e pelos seus Sucessores. Isto dá à compreensão católica do cristianismo uma dimensão supranacional, uma dimensão transversal, de raiz, que se foi desenvolvendo ao longo dos tempos. Esse desenvolvimento passou, desde o séc. VIII até ao séc. XIX, por esta outra realidade territorial aqui em Itália, de maior ou menor dimensão, que se chamaram Estados Pontifícios. Desde 1870, e sobretudo desde os Acordos de Latrão entre a Santa Sé e o Estado italiano, resumem-se a este pequeníssimo Estado do Vaticano, no entanto é uma realidade internacional, assim reconhecida, que dá ao Papa e aos organismos centrais da Igreja autonomia para exercerem o seu ministério. Os Estados pontifícios, mesmo nesta sua expressão quase simbólica, territorialmente falando, devem ser vistos como meio para facilitar essa tal missão, esse tal papel transnacional que o ministério de Pedro tem para os católicos (mas também para os não-católicos). Recordo-me que aqui há uns anos, estando aqui em Roma, um Embaixador me dizia que qualquer embaixador de qualquer país do mundo, católico ou mesmo não-cristão, deseja passar pela embaixada junto da Santa Sé, porque é uma instância internacional, ao nível da Organização das Nações Unidas, ou até a maior nível em alguns casos, onde se podem encontrar representações diplomáticas de todo o mundo para, de uma maneira tanto quanto descomprometida, tratarem daqueles problemas que interessam à vida internacional e a que o Papa, e a Santa Sé, como portadores da mensagem evangélica, são particularmente atreitos. É isto que é básico, e que nós experimentamos aqui.
Depois, como Estado pontifício, como Santa Sé, nesta sua expressão territorial, por ser já tão longeva, mantém já em si uma série de sinais do que foi este passado, aliás sinais que a Santa Sé põe ao serviço de todos. Eu não sei se há alguma outra instância política a este nível; a este nível não haverá nenhuma, de certeza, mas mesmo a nível mais nacional, que tenha tanto à disposição de toda a gente todo esse património guardado, como acontece aqui na Santa Sé. A basílica de São Pedro não é do Papa, é de todos os cristãos que lá vão e até dos não-cristãos, no tempo que lá quiserem passar. Aquilo é a sua casa. Portanto, é um serviço que também transmite o que de melhor a cultura e a arte foi fazendo ao longo dos séculos e que assim, através deste serviço da Santa Sé, é oferecido a todos os que dele queiram usufruir, desse passado”.

P.G. - A visita “ad limina” realiza-se a nível da Conferência Episcopal, mas é significativo que não falte o encontro pessoal de cada Bispo residencial (e Auxiliares) com o Santo Padre. A história da Igreja mostra a importância de figuras de bispos que deixaram a sua marca na vida das suas comunidades locais, influência que irradiava na Igreja universal. Há quem pense que se corre o risco de as Conferências episcopais chamarem a si certo dirigismo, em detrimento da responsabilidade pessoal do Bispo na sua Igreja local. Neste momento de profunda comunhão eclesial com os irmãos no episcopado português e com o Papa (e seus directos colaboradores), como vê, como “sente” esta questão?
D.M.C. – Há uma razão, digamos assim, eclesiológica, no que respeita à doutrina da Igreja sobre si própria, como Igreja, e outra que nós poderíamos chamar pessoal e sacramental. No que diz respeito à parte eclesiológica é preciso ver que, segundo a eclesiologia católica como foi formulada no Concílio Vaticano II e com a mais antiga referência, a Igreja existe em qualquer Igreja particular, local, onde haja um apóstolo, que lhe dê também por aí essa continuidade com a Igreja de Jesus Cristo, com a Igreja dos apóstolos, enfim, com os outros ministros sagrados, com tudo aquilo que faz parte da vida da Igreja, nos seus diversos aspectos litúrgico-sacramentais, de anúncio do Evangelho, de prática da caridade. Onde estes elementos existem, existe uma Igreja local, e nessa Igreja local ou particular existe toda a Igreja de Cristo. Agora, esta Igreja local está ligada, por essa mesma apostolicidade, através do seu Bispo, ao conjunto dos Bispos do mundo, sucessores dos apóstolos, e àquele que é o sucessor de Pedro, e que Jesus fez, enfim, o cimento da unidade entre os seus irmãos, como todos nós conhecemos a frase de Jesus ao mesmo Pedro: “Confirma os teus irmãos, na fé”. E por isso também existe a dimensão universal da Igreja, à volta do Sucessor de Pedro. Uma coisa não se opõe à outra, mas estas são as duas instâncias, para falar assim, em que a Igreja existe. E por isso qualquer católico sabe que, quando vai à Missa, ouve o presidente pedir pela Igreja, em união com o seu Bispo e com o Papa.
Entretanto acontecem estas realidades nacionais, políticas, étnicas, culturais e por aí fora, que são as nações, que são os países, ou as regiões grandes dentro dos países. E é natural que os Bispos das dioceses presentes nessas regiões ou nesses países também se encontrem para tratarem em comum das coisas que a todos dizem respeito. Tanto mais que hoje em dia a circulação das pessoas é muito grande, muito mais do que foi no passado. Uma Igreja como é a nossa em Portugal, seja concretamente a Igreja do Porto, ou a Igreja de Lisboa, ou por aí fora, as pessoas são bastante “trans-diocesanas, como também são bastante “trans-paroquiais”. Também por aí é importante que nós tenhamos, enfim, um entendimento comum das coisas que comuns são. E por isso as Conferências Episcopais têm um papel importantíssimo. Enfim, eu, nestes oito anos que levo de bispo, teria sido muito diferente o que eu fiz e o que eu pensei se não tivesse reunido quatro vezes por ano com os meus colegas bispos de todo o país, debruçado em conjunto sobre problemas que nos tocam a todos. E por isso as Conferências Episcopais são organismos de uma enorme importância para que esta acção que cada Bispo faz na sua diocese seja uma acção conjugado com o que fazem os seus irmãos das outras Igrejas – eu já nem digo “vizinhas”, porque hoje são quase interpenetradas pela própria população que se mexe de um lado para o outro, constantemente, e por notícias que são comuns e desafios que comuns também são. Depois, há também outro aspecto, a que eu chamei sacramental e pessoal. É que, quer no que diz respeito ao Sucessor de Pedro, quer no que diz respeito aos Bispos em cada diocese, nós entendemos, na tradição católica, que se pode falar de um verdadeiro sacramento: o sacramento da Ordem, a sucessão apostólica. E não é por acaso que Jesus não entrega este serviço de unidade e de comunhão, que é o dos apóstolos, não o entrega genericamente, mas sim àqueles homens nomeados um por um (aliás são os únicos que são nomeados, em termos de função, nos Evangelhos!). Depois, enfim, é em cada Bispo que esta missão “apostólica” se concretiza, naquela pessoa. Portanto, a Igreja não tem servidores assim abstractos, mas realizados, concretizados, por isso, sacramentalmente, pessoalmente, nesta ou naquela pessoa, o que melhor que ela possa e saiba, mas sobretudo com a mesma graça de Deus.








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