Texto integral da homilia do cardeal T. Bertone na dedicação da igreja da SS. Trindade,
12 de Outubro, em Fátima
Amados Irmãos e Irmãs,
«Em união com [Cristo], também vós sois integrados
na construção para vos tornardes, no Espírito Santo, morada de Deus» (Ef 2, 22). Estas
palavras da Carta aos Efésios, há pouco escutadas, falam duma construção em acto e
indicam claramente a sua finalidade: é a morada de Deus. Eu fui enviado, e aqui estou,
para vos confirmar no vosso glorioso destino: Também vós sois integrados nesta construção
«cujo arquitecto e construtor é Deus» (Heb 11, 10). Se porventura tudo isto aparecesse
aos vossos olhos meramente como uma promessa, e não uma obra em acto. Ou então, se
todo o mundo se levantasse para vos chamar à razão, dizendo: Resignai-vos, pobres
iludidos; não se encontra rasto nem vestígios de um Deus à procura de casa por estes
lados! Eis o que tenho a dizer-vos: Não o perscruteis com os olhos porque ainda não
enxergam, nem vos resigneis à voz das sereias do mundo porque recusam o canto novo
do amor de Deus a nós manifestado. Apoiai-vos, antes, «sobre o alicerce dos Apóstolos
e dos Profetas, que tem Cristo como pedra angular» (Ef 2, 20). Ora, um dia alguém
perguntou a Jesus Cristo como era possível Deus manifestar-Se a nós e não ao mundo;
e Ele explicou: «Quem Me ama guardará a minha palavra e meu Pai o amará; Nós viremos
a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14, 23). Sobre este alicerce, assenta a consoladora
certeza: Deus escolheu-nos para sua morada.
Em espírito, detenho-me nos umbrais
da minúscula morada do Altíssimo, assinalada com o Sangue de Cristo Redentor, que
é cada um de vós aqui presente ou em comunhão connosco pelos meios de comunicação
social: em ti, quero adorar o meu Deus e abraçar o irmão ou irmã na graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, no amor do Pai e na comunhão do Espírito Santo. Dilectos fiéis
pela unção baptismal e crismal recebida que nos irmana no Corpo místico de Cristo,
veneráveis irmãos no episcopado e no sacerdócio, queridos peregrinos de Nossa Senhora
de Fátima, a todos transmito a cordial saudação de Sua Santidade Bento XVI e a sua
Bênção paterna.
Em particular, saúdo o Senhor D. António Augusto dos Santos
Marto, devotado Pastor desta diocese de Leiria-Fátima que, à vista dos inumeráveis
filhos que não gerou mas lhe batem à porta, não hesitou em ampliar a sua tenda (cf.
Is 54, 1-2) para melhor os acolher com este majestoso templo que hoje dedicamos à
Santíssima Trindade. A alegria desta hora e a nossa gratidão é devida de modo especial
a seu venerando predecessor, o Senhor D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, que há
três anos abençoava o início dos trabalhos tornando-se firme defensor e garante da
prossecução dos mesmos. Seu fiel intérprete e incansável promotor é o benemérito Reitor
do Santuário de Fátima, Monsenhor Luciano Gomes Paulo Guerra, que se empenhou de alma
e coração nesta iniciativa movido pela sua grande devoção a Nossa Senhora. Desejo
saudar ainda os idealizadores, os projectistas e as várias empresas que se encarregaram
da edificação da igreja e os artistas que cuidaram do seu embelezamento, como este
imponente mosaico diante de vós com o Céu que desce até nós, a revelação da meta para
onde tende o caminho de cada um. Por fim, um sentido obrigado aos peregrinos de Nossa
Senhora de Fátima, a cuja generosidade se fica a dever a cobertura das despesas com
a sua construção. Que Deus vos pague! O vosso coração exulte de alegria no Senhor,
porque «a alegria do Senhor é a vossa fortaleza» (cf. Ne 8, 10)!
Com o presente
rito da dedicação, esta igreja torna-se o trono da divina graça onde poderá alcançar
misericórdia quem dele se aproximar confiadamente à procura de um auxílio oportuno
(cf. Heb 4, 16). De facto, as palavras «graça» e «misericórdia» campeiam numa visão
concedida à Irmã Lúcia no dia 13 de Junho de 1929, cuja realidade (prescindindo naturalmente
das coordenadas de tempo e espaço insignificantes, por quanto sabemos, em Deus) poderá
doravante ser celebrada e adorada aqui. Dir-se-ia que a Santíssima Trindade aguardava
em Fátima por este tributo de gratidão e louvor pela sua incessante intervenção salvífica
na história. Eis a descrição da vidente numa carta que dirigiu ao Sumo Pontífice Pio
XII, em 22 [vinte e dois] de Outubro de 1940: Na capela do convento de Tuy, «estando
uma noite só, ajoelhei-me entre a balaustrada no meio da capela a rezar, prostrada,
as Orações do Anjo. (…) A única luz era a da lâmpada. De repente iluminou-se toda
a capela com uma luz sobrenatural e sobre o altar apareceu uma cruz de luz que chegava
até ao tecto. Em uma luz mais clara, via-se na parte superior da cruz uma face de
homem com corpo até à cinta, sobre o peito uma pomba de luz e pregado na cruz o corpo
de outro homem. Um pouco abaixo da cinta, suspenso no ar, via-se um cálice e uma Hóstia
grande, sobre a qual caíam algumas gotas de sangue que corriam pelas faces do crucificado
e duma ferida do peito. Sob o braço direito da cruz estava Nossa Senhora (…), com
o seu Imaculado Coração na mão. Sob o braço esquerdo, umas letras grandes, como se
fossem de água cristalina que corresse para cima do Altar, formavam estas palavras:
“Graça e Misericórdia”». Até aqui a visão da Irmã Lúcia, que comenta: «Compreendi
que me era mostrado o Mistério da Santíssima Trindade, e recebi luzes sobre este Mistério
que não me é permitido revelar» (Memórias e Cartas da Irmã Lúcia, edição do P. António
Maria Martins SJ, Porto 1973, pp. 463-464).
Dado que a ela não lhe foi permitido
revelar, a nós só nos resta contemplar com os olhos da fé o ícone grandioso que nos
deixou, onde sobressai a cruz como história trinitária (cf. Bruno Forte, Trinità come
storia, Milão 51993, pp. 35-42): o Crucificado entrega ao Pai, na hora da cruz, o
Espírito que o Pai Lhe tinha dado e que Lhe será devolvido em plenitude no dia da
ressurreição. A Sexta-feira Santa, dia da entrega que o Filho faz de Si mesmo ao Pai
e que o Pai faz do Filho à morte pelos pecadores, é o dia em que o Espírito é entregue
pelo Filho a seu Pai, para que o Crucificado fique abandonado, longe de Deus, em companhia
dos pecadores. É a hora da morte em Deus, quando tem lugar o abandono do Filho por
parte do Pai, embora sempre na sua grande comunhão de amor eterno; facto este que
se consuma na entrega do Espírito Santo ao Pai e que torna possível o supremo exílio
do Filho na alteridade do mundo, o seu tornar-Se «maldição» na terra dos amaldiçoados
por Deus, para que estes, juntamente com Ele, possam entrar na alegria da reconciliação
pascal.
Lê-se na Carta aos Efésios: «Foi em Cristo Jesus que vós, outrora
longe de Deus, vos aproximastes d’Ele, graças ao sangue de Cristo. Cristo é, de facto,
a nossa paz. (…) Por Ele, nós podemos, uns e outros, aproximar-nos do Pai, num único
Espírito» (2, 13-14.18). De facto, «o homem foi criado para ser integrado em Cristo
e, consequentemente, na vida da Santíssima Trindade. Qualquer que seja o afastamento
do homem pecador de Deus é sempre menos profundo do que o distanciar-Se do Filho relativamente
ao Pai no seu despojamento quenótico (Fil 2, 7) e do que a miséria do “abandono” (Mt
27, 46). Este é, na economia da redenção, precisamente o aspecto da distinção das
pessoas na Santíssima Trindade, que por outro lado permanecem perfeitamente unidas
na identidade de uma mesma natureza e de um amor infinito» (Comissão Teológica Internacional,
Doc. Questões de cristologia, 1980, IV-D. 8). Se, na cruz, o Filho entrega o Espírito
ao Pai entrando no abismo do abandono de Deus, na ressurreição o Pai dá o Espírito
ao Filho, assumindo n’Ele e com Ele o mundo na infinita comunhão divina. A alteridade
e a comunhão dos Três resplandece em plenitude nos acontecimentos da cruz e da ressurreição.
A cruz mostra a Trindade que faz seu o exílio próprio do mundo sujeito ao pecado,
para que, na Páscoa, este exílio entre na pátria da comunhão trinitária.
Tal
poderia ser a interpretação da visão recebida pela Irmã Lúcia, na qual a Santíssima
Trindade dá significado e luz a vários elementos que foram sobressaindo nas sucessivas
aparições: os preanunciados desígnios de graça e misericórdia; o cálice e a hóstia
que sangra, trazidos pelo Anjo aos pastorinhos; a cruz, termo da peregrinação dos
mártires; à sua sombra os Corações de Jesus e de Maria solidários e unidos, oferecendo
seus méritos pela conversão dos pobres pecadores; o corpo e o sangue de Cristo horrivelmente
ultrajados e Deus muito ofendido; o Coração Imaculado da Virgem Mãe, tão triste mas
oferecendo-Se como refúgio e caminho seguro até Deus; a luz da graça divina, tanta
luz que irradia das suas mãos maternas e penetra no mais íntimo da alma dos pastorinhos
fazendo-os verem-se em Deus que era aquela Luz; eles, aliás, viram-se dentro da luz
que espargia aquela Senhora vestida toda de branco, mais brilhante que o sol. A mesma
graça imploro da Virgem Mãe para os peregrinos de Fátima que entrem pelas portas deste
templo que hoje benzemos e dedicamos à Santíssima Trindade. Neste edifício de
culto, há partes especialmente santas: o lugar onde o celebrante preside in persona
Christi, o ambão onde se lê a Palavra de Deus, o confessionário, o sacrário onde se
conserva a presença eucarística, etc. Contudo, a parte principal é o altar como monumento
estável, mesa do sacrifício e da ceia pascal do Senhor. Uma vez que sobre o altar
se celebra a Eucaristia, memorial que torna presente o sacrifício de Cristo, e do
altar se toma o corpo e o sangue de Cristo para os distribuir aos fiéis, aquele é
considerado sinal do próprio Cristo, Cristo que é simultaneamente nosso templo, vítima
e altar da Nova Aliança. Ora, na visão da Santíssima Trindade, a Irmã Lúcia indica
o altar como o ponto onde a eternidade pousa na terra: «Sobre o altar, apareceu uma
cruz de luz…Sob o braço esquerdo, umas letras grandes, como se fossem de água cristalina
que corresse para cima do Altar, formavam estas palavras: “Graça e Misericórdia”».
Sabeis agora, amados irmãos e irmãs, que a penúltima hora da história é a Cruz, onde
a humanidade encontra o único Passador que tem para a sua hora última, ou seja, a
do trespasse para o seio da Trindade. O Passador é Jesus Cristo e… «nenhum outro,
pois não existe debaixo do Céu outro nome, dado aos homens, pelo qual tenhamos de
ser salvos» (Act 4, 12).
Concluo com estas palavras do Acto de Consagração
da humanidade feito por João Paulo II no dia 25 de Março de 1984 : «Desejamos, juntamente
com toda a Igreja, unir-nos à consagração que, por nosso amor, o vosso Filho fez de
Si mesmo ao Pai: “Eu consagro-Me por eles – foram as suas palavras – para eles serem
também consagrados na verdade” (Jo 17, 19). Queremos unir-nos ao nosso Redentor, nesta
consagração pelo mundo e pelos homens, a qual, no seu Coração divino, tem o poder
de alcançar o perdão e de conseguir a reparação. A força desta consagração permanece
por todos os tempos e abrange todos os homens, os povos e as nações; e supera todo
o mal, que o espírito das trevas é capaz de despertar no coração do homem e na sua
história e que, de facto, despertou nos nossos tempos. (…) Vós, Serva do Senhor, que
obedecestes da maneira mais plena ao chamamento divino, ajudai-nos a viver na verdade
da consagração de Cristo por toda a família humana do mundo contemporâneo». Amen.