Homilia do Santo Padre, Sábado Santo, Vigília Pascal
Queridos irmãos e irmãs!
Desde os tempos mais antigos a liturgia do dia de
Páscoa começa com as palavras: Resurrexi et adhuc tecum sum - ressuscitei e estou
sempre contigo; pusestes sobre mim a tua mão. A liturgia vê nisto a primeira palavra
do Filho dirigida ao Pai depois da ressurreição, depois da volta da noite da morte
no mundo dos vivos. A mão do Pai sustentou-O também nesta noite, e assim Ele pode
levantar-se, ressuscitar.
A palavra encontra-se no Salmo 138 e ali tem inicialmente
um significado distinto. Este Salmo é um canto de admiração pela onipotência e onipresença
de Deus, um canto de confiança naquele Deus que jamais nos deixa soltar das suas mãos.
E suas mãos são boas mãos. O orador imagina uma viagem através de todas as dimensões
do universo - que lhe acontecerá? «Se subir aos céus, lá Vos encontro, se descer aos
infernos, igualmente. Mesmo que me aposse das asas da aurora, e for morar nos confins
do mar, mesmo aí, a Vossa mão me conduz, e a vossa destra me segura. Se eu disser:
“ao menos as trevas me cobrirão...”, nem sequer as trevas serão bastante escuras para
Vós [...] tanto faz a luz como as trevas» (Sal 139[138], 8-12).
No dia de
Páscoa a Igreja nos diz: Jesus Cristo cumpriu para nós esta viagem através das dimensões
do universo. Na Carta aos Efésios lemos que Ele desceu nas regiões mais profundas
da terra e que Aquele que desceu é o mesmo que também subiu acima de todos os céus
para encher o universo (cf. 4,9-10). Deste modo a visão do Salmo tornou-se realidade.
Na escuridão impenetrável da morte Ele entrou como luz - a noite fez-se luminosa como
o dia, e a trevas tornaram-se luz. Por isso a Igreja justamente pode considerar a
palavra de agradecimento e de confiança como palavra do Ressuscitado dirigida ao Pai:
“Sim, viajei até as mais extremas profundezas da terra, no abismo da morte e trouxe
a luz; e agora estou ressuscitado e permaneço para sempre seguro das tuas mãos”. Mas
esta palavra do Ressuscitado ao Pai veio a ser também uma palavra que o Senhor dirige
a nós: “Ressuscitei e estou contigo para sempre”, diz a cada um de nós. Minha mão
de sustenta. Donde quer que possas cair, cairás em minhas mãos. Estou presente até
mesmo às portas da morte. Aonde ninguém pode mais acompanhar-te e onde nada podes
levar, ali eu te espero e transformo para ti as trevas em luz.
Esta palavra
do Salmo, lida como colóquio do Ressuscitado conosco, é ao mesmo tempo uma explicação
daquilo que acontece no Batismo. De fato, o Batismo é mais do que uma lavagem, ou
uma purificação. É mais do que a inserção numa comunidade. É um novo nascimento. Um
reinício da vida. A passagem da Carta aos Romanos, que acabamos de ouvir, diz com
palavras misteriosas que no Batismo fomos “enxertados” de forma semelhante com a morte
de Cristo. No Batismo nos doamos a Cristo - Ele nos assume em si, para que depois
não vivamos mais para nós mesmos, mas graças a Ele, com Ele e n’Ele; para que vivamos
com Ele e, assim, para os outros. No Batismo abandonamos a nós mesmos, depomos a nossa
vida em suas mãos, para poder dizer com S. Paulo: “Não sou quem vivo, é Cristo que
vive em mim”. Se nos damos deste modo, aceitando uma espécie de morte do nosso eu,
então isto significa também que o confim entre morte e vida faz-se permeável. Tanto
desde lado como além da morte estamos com Cristo e, por isso, daquele momento em diante,
a morte não é mais um verdadeiro confim. Paulo no-lo diz de forma clara na sua Carta
aos Filipenses: “Para mim o viver é Cristo. Mas se permaneço nesta vida, ainda posso
trazer fruto. Assim, vejo-me apertado entre estas duas coisas: ser libertado - ou
seja, justiçado - e ser com Cristo, seria bem melhor; mas permanecer nesta vida é
mais necessário para vós” (cf. 1,21ss). Deste ou do outro lado do confim da morte
ele está com Cristo - não existe mais uma verdadeira diferença. Sim, é certo: “Por
detrás e na frente tu me envolves. Estou sempre nas tuas mãos”. Aos Romanos Paulo
escreveu: “Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo [...]
Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rom 14,7ss).
Queridos
batizados, esta é a novidade do Batismo: nossa vida pertence a Cristo, não mais a
nós mesmos. Mas precisamente por isso não estamos mais sós nem mesmo na morte, mas
estamos com Ele que vive sempre. No Batismo, junto com Cristo, já fizemos a viagem
cósmica até as profundezas da morte. Acompanhados por Ele, mais, acolhidos por Ele
no seu amor, nos libertamos do medo. Ele nos envolve e nos leva, aonde quer que formos
- Ele que é a mesma Vida.
Volvamos ainda à noite do Sábado Santo. No Credo
professamos a respeito do caminho de Cristo: “Desceu à mansão dos mortos”. Quê acontece
então? Visto que não conhecemos o mundo da morte, podemos representar este processo
de superação da morte somente com imagens que permanecem sempre pouco apropriadas.
Porém, com toda a sua insuficiência, elas nos ajudam a entender algo do mistério.
A liturgia aplica à descida de Jesus na noite da morte a palavra do Sal 24 [23]: “Levantai,
ó pórticos, os vossos dintéis, levantai-vos, ó pórticos eternos!” A porta da morte
está fechada, ninguém dali pode voltar para trás. Não existe uma chave para esta porta
férrea. Cristo, porém, possui a chave. A sua Cruz abre de par em par as portas da
morte, as portas irrevogáveis. Elas agora não são mais infranqueáveis. A sua Cruz,
a profundidade do seu amor é a chave que abre esta porta. O amor d’Aquele que, sendo
Deus, fez-se homem para poder morrer - este amor tem a força para abrir esta porta.
Os ícones pascoais da Igreja oriental mostram como Cristo entra no mundo dos mortos.
A sua veste é luz, porque Deus é luz. “A noite é clara como o dia, as trevas são como
a luz” (cf. Sal 139 [138],12). Jesus que entra no mundo dos mortos leva os estigmas:
as suas feridas, os seus padecimentos tornaram-se potência, são amor que vence a morte.
Ele encontra Adão e todos os homens que esperam na noite da morte. À sua vista parece
até ouvir a oração de Jonas: “Clamei a vós do meio da morada dos mortos, e ouvistes
a minha voz” (Jn 2,3). O Filho de Deus na encarnação fez-se uma só coisa com o ser
humano - com Adão. Mas só naquele momento, em que cumpre o extremo ato de amor descendo
na noite da morte, Ele termina cumprindo o caminho da encarnação. Mediante a sua morte
Ele pega Adão pela mão, todos os homens que aguardam e os leva à luz.
Contudo,
agora, pode-se perguntar: Mas o que significa esta imagem? Que novidade realmente
aconteceu ali através de Cristo? Sendo a alma do homem por si própria imortal desde
a criação, qual foi a novidade trazida por Cristo? Sim, a alma é imortal, porque o
homem de forma singular está na memória e no amor de Deus, mesmo depois da sua caída.
Mas a sua força não basta para elevar-se até Deus. Não temos asas que poderiam levar-nos
até aquela altura. Porém, nada pode contentar o homem eternamente, se não o estar
com Deus. Uma eternidade sem esta união com Deus seria uma condenação. O homem não
consegue alcançar a cima, mas anela o alto: “Clamei a vós...” Só o Cristo ressuscitado
pode elevar-nos para cima até a união com Deus, ali onde nossas forças não podem chegar.
Ele carrega realmente a ovelha perdida sobre os seus ombros e a leva para casa. Vivemos
agarrados ao seu Corpo, e em comunhão com o seu Corpo alcançamos o coração de Deus.
E só assim a morte é vencida, somos livres e nossa vida é esperança.
Este
é o júbilo da Vigília Pascoal: nós somos livres. Mediante a ressurreição de Jesus
o amor revelou-se mais forte do que a morte, mais forte do que o mal. O amor O fez
descer e é, ao mesmo tempo, a força pela qual Ele sobe. A força através da qual leva-nos
consigo. Unidos ao seu amor, levados sobre as asas do amor, como pessoas que amam
descemos juntos com Ele nas trevas do mundo, sabendo que precisamente assim também
subimos com Ele. Rezemos, portanto, nesta noite: Senhor, mostra hoje também que o
amor é mais forte do que o ódio. Que é mais forte do que a morte. Desce também nas
noites e na mansão dos mortos deste nosso tempo moderno e segura pela mão aqueles
que esperam. Leva-os para a luz! Fica também comigo nas minhas noites escuras e conduz-me
para fora! Ajuda-me, ajuda-nos a descer contigo na escuridão daqueles que estão à
espera, que das profundezas gritam por ti! Ajuda-nos a levar-lhes a tua luz! Ajuda-nos
a chegar ao “sim” do amor, que nos faz descer e por isso mesmo subir junto contigo!
Amém.