O novo contexto da luta pela vida : nota pastoral da conferência episcopal portuguesa
na sequência do referendo de 11 de Fevereiro
(16/2/2007) Reunida em Assembleia extraordinária, após o habitual retiro, a Conferência
Episcopal Portuguesa, na sequência do referendo de 11 de Fevereiro, decidiu propor
algumas reflexões pastorais aos cristãos e à sociedade em geral. 1. Apesar de
a maioria dos eleitores não se ter pronunciado, o resultado favorável ao “Sim” é sinal
de uma acentuada mutação cultural no povo português, que temos de enfrentar com realismo,
pois indicia o contexto em que a Igreja é chamada a exercer a sua missão. Manifestou-se
uma cultura que não está impregnada de valores éticos fundamentais, que deveriam inspirar
o sentido das leis, como é o do carácter inviolável da vida humana, aliás consagrado
na nossa Constituição. Esta mutação cultural tem várias causas, nomeadamente: a mediatização
globalizada das maneiras de pensar e das correntes de opinião; as lacunas na formação
da inteligência, que o sistema educativo não prepara para se interrogar sobre o sentido
da vida e as questões primordiais do ser humano; o individualismo no uso da liberdade
e na busca da verdade, que influencia o conceito e o exercício da consciência pessoal;
a relativização dos valores e princípios que afectam a vida das pessoas e da sociedade.
Reconhecemos, também, que esta realidade social, em muitas das suas manifestações,
tem posto a descoberto, em vários aspectos, alguma fragilidade do processo evangelizador,
mormente em relação aos jovens. A nossa missão pastoral, por todos os meios ao nosso
alcance, tem de visar este fenómeno da mutação cultural, pois só assim ajudaremos
a que os grandes valores éticos continuem presentes na compreensão e no exercício
da liberdade. 2. Congratulamo-nos com a vasta e qualificada mobilização, verificada
nas últimas semanas, em volta da defesa do carácter inviolável da vida humana e da
dignidade da maternidade. É um sinal positivo de esperança. É importante que permaneça
activa, que encontre a estrutura organizativa necessária, para continuar a participar
neste debate de civilização. O debate do referendo esteve centrado na justeza
de um projecto de lei que, ao procurar despenalizar, acaba por legalizar o aborto.
A partir de agora o nosso combate pela vida humana tem de visar, com mais intensidade
e novos meios, os objectivos de sempre: ajudar as pessoas, esclarecer as consciências,
criar condições para evitar o recurso ao aborto, legal ou clandestino. Esta luta deveria
empenhar, progressivamente, toda a sociedade portuguesa: Estado, Igrejas, movimentos
e grupos e restante sociedade civil. E os caminhos para se chegar a resultados positivos
são, a nosso ver: a alteração de mentalidades, a formação da consciência, a ajuda
concreta às mães em dificuldade. 3. A mudança de mentalidade interpela a nossa
missão evangelizadora, de modo particular a evangelização dos jovens, das famílias
e dos novos dinamismos sociais. Toda a missão da Igreja tem de ser, cada vez mais,
pensada para um novo contexto da sociedade. São necessárias criatividade e ousadia,
na fidelidade à missão da Igreja e às verdades evangélicas que a norteiam. Faz
parte dessa missão evangelizadora o esclarecimento das consciências. A Igreja respeita
a consciência, o mais digno santuário da liberdade. Não a ameaça, nem atemoriza, mas
quer ajudar a esclarecê-la com a verdade, pois só assim poderá exprimir a sua dignidade.
Esta verdade iluminadora das consciências provém de um sadio exercício da razão,
no quadro da cultura; é-nos revelada por Deus, que vem ao encontro do ser humano;
é património de uma comunidade, cuja tradição viva é fonte de verdade, enquadrando
a dimensão individual da liberdade e da busca da verdade. Para os católicos, a verdade
revelada, transmitida pela Igreja no quadro de uma tradição viva, é elemento fundamental
no esclarecimento das consciências. Aos católicos que, no aceso deste debate,
se afastaram da verdade revelada e da doutrina da Igreja, convidamo-los a examinarem,
no silêncio e tranquilidade do seu íntimo, as exigências de fidelidade à Igreja a
que pertencem e às verdades fundamentais da sua doutrina. Aos fiéis católicos
lembramos, neste momento, que o facto de o aborto passar a ser legal, não o torna
moralmente legítimo. Todo o aborto continua a ser um pecado grave, por não cumprimento
do mandamento do Senhor, “não matarás”. Apelamos aos médicos e profissionais de
saúde para não hesitarem em recorrer ao estatuto de “objectores de consciência” que
a Lei lhes garante. Às mulheres grávidas que se sintam tentadas a recorrer ao
aborto, aos pais dos seus filhos, pedimos que não se precipitem. A decisão de abortar
é, na maior parte dos casos, tomada em grande solidão e sofrimento. Um filho que,
no início, aparece como um problema, revela-se, tantas vezes, como a solução das suas
vidas. Tantas mulheres que abortaram sentem, mais tarde, que se pudessem voltar atrás
teriam evitado o acto errado. Abram-se com alguém, reflictam, em diálogo, na gravidade
da sua decisão. 4. Mas há uma resposta urgente a dar ao drama do aborto: criar
ou reforçar estruturas de apoio eficaz e amigo às mulheres a braços com uma maternidade
não desejada e que consideram impossível levar até ao seu termo. Estudos recentes
mostram que a maior parte das mulheres nessas circunstâncias, se fossem ajudadas não
recorreriam ao aborto. É um dever de todos nós, de toda a sociedade, criar essas estruturas
de apoio. Uma das novidades da campanha do referendo foi o facto de muitos defensores
do “Sim” – a começar pelo Governo da Nação, que se quis comprometer numa questão que
não é de natureza estritamente política – afirmarem ser contra o aborto, quererem
acabar com o aborto clandestino e diminuir o número de abortos. Registamos esse objectivo,
mas pensamos que o único caminho eficaz e verdadeiramente humano é avançarmos significativamente
na formação da juventude e no apoio à maternidade e à família. Não poderemos esquecer
que, no quadro social actual, a maternidade se tornou mais difícil. No actual contexto
das nossas sociedades ocidentais só se chegará a uma política equilibrada de natalidade
com um apoio eficaz à maternidade, com particular atenção à maternidade em circunstâncias
difíceis e, por vezes, dramáticas. No que à Igreja diz respeito, continuaremos
a incluir esta acção de acolhimento e ajuda às mães entre as nossas prioridades. Mas
para que esta acção seja eficaz, precisa-se da convergência de todos, Estado e sociedade
civil. Demo-nos as mãos para acabar com o aborto e tornar a lei, que agora se vai
fazer, numa lei inútil. 5. A busca de uma solução, a médio e a longo prazo, tem
de passar, também, por uma política de educação que forme para a liberdade, na responsabilidade,
concretizada numa correcta educação da sexualidade. Esta constitui um dos dinamismos
mais ricos e complexos do ser humano, onde se exprimem a dimensão relacional e a vocação
para o amor e para a comunhão. Uma vivência desregrada da sexualidade é uma das principais
causas das disfunções sociais e da infelicidade das pessoas. A sã educação da sexualidade
há-de abrir para a gestão responsável da própria fecundidade, através de um planeamento
familiar sadio, que respeite e integre as opções morais de cada um. Quando a geração
de um filho não for fruto de irreflexão, mas de um acto responsável, estará resolvido,
em grande parte, o problema do aborto. 6. A luta pela vida, pela dignificação
de toda a vida humana, é uma das mais nobres tarefas civilizacionais. Não será o novo
contexto legal que nos enfraquecerá no prosseguimento desta luta. A Igreja continuará
fiel à sua missão de anúncio do Evangelho da vida em plenitude e de denúncia dos atentados
contra a vida. Fátima, 16 de Fevereiro de 2007